Special Situations e Financiamento de Litígios

O caso da Gleba dos Apertados: Era um legal claim?

O texto discute o caso da Gleba dos Apertados, no qual um Fundo de Investimento em Direitos Creditórios adquiriu direitos creditórios oriundos de ações judiciais que estavam prescritos, resultando na responsabilização dos gestores e administradores fiduciários envolvidos.

1/10/2024

Nos últimos textos desta coluna, focamos nas questões contratuais envolvidas na negociação para o financiamento de litígios e na compra de direitos creditórios decorrentes desses processos. Hoje, vou discutir um caso que me chamou muita atenção, pois envolve um legal claim adquirido por um Fundo de Investimento em Direitos Creditórios, resultando na responsabilização dos prestadores de serviço dos fundos que compraram esse crédito. O caso é o da Gleba dos Apertados, que abordei em livro recém-lançado, em coautoria com Eli Loria, no qual exploramos os processos sancionadores julgados pela CVM1.

A discussão sobre a Gleba dos Apertados começou em 1896, quando o estado do Paraná ingressou com a Ação Ordinária de Reivindicação de Terras nº 696/49, para discutir a propriedade de terras no município de Paranavaí/PR (“Ação Reivindicatória”). Ao final do processo, o estado do Paraná sagrou-se vitorioso, com o reconhecimento de que as terras em Paranavaí pertenciam ao estado, e não aos moradores locais.

Apesar de o Juízo da Ação Reivindicatória ter dado ganho de causa para o estado do Paraná, somente ocorreu o início do processo de execução 50 anos após o trânsito em julgado daquela sentença. A demora do estado do Paraná para adotar as medidas cabíveis levou o Juízo responsável pela execução da sentença a reconhecer, em 1951, a prescrição do direito do estado do Paraná de desapropriar os possuidores dos seus terrenos2. A questão foi duramente debatida no judiciário, tendo somente transitado em julgado em 1999, com a declaração, pelo STJ, de que o direito do estado do Paraná de executar a sentença da Ação Reivindicatória estaria prescrito3.

Ocorre que o estado do Paraná atuou como se seu direito não tivesse prescrito, tendo, nas décadas de 1940 e 1950, desapropriado diversos moradores de Paranavaí usando força policial. Essa atuação levou os desapropriados a ajuizarem uma nova ação judicial, a Ação de Atentado nº 1095/57, que teve desfecho favorável para eles, reconhecendo as desapropriações como um ato ilícito do estado do Paraná4.

Embora tenham sido expulsos de suas casas, os moradores da Gleba dos Apertados não ajuizaram de pronto qualquer medida cabível, tendo, ao longo dos anos, cedido por diversas vezes seus direitos creditórios oriundos daquelas ações judiciais. Os adquirentes desses direitos creditórios, em muitos casos, ajuizaram ações judiciais pleiteando as indenizações ou pedindo para serem habilitados nas ações judiciais originalmente propostas, medidas que restaram infrutíferas.

As ações propostas pelos adquirentes dos direitos creditórios foram julgadas de modo improcedente, pois o Judiciário do Paraná entendeu que o direito à indenização também estava prescrito. Apesar disso, a discussão sobre a prescrição do direito à indenização relativamente à gleba dos apertados somente foi endereçada no STJ em 2015. Naquela oportunidade, foi destacado que o direito à indenização dos desapropriados teria prazo prescricional de 20 anos, contados da efetiva desapropriação do possuidor (o que, naquele caso, teria ocorrido em 1940 e não do trânsito em julgado da Ação Reivindicatória, que teria ocorrido em 1999)5.

Ocorre que alguns fundos de investimento adquiriram os direitos creditórios decorrentes das disputas judiciais da Gleba dos Apertados, o que levou a CVM a propor acusações, com objetivo de apurar eventuais irregularidades na atuação de gestores e administradores fiduciários. Segundo sustentado pela acusação, os prestadores de serviços essenciais não teriam sido diligentes ao permitirem que direitos creditórios sem validade jurídica e sem substância econômica fossem integralizados nas carteiras dos fundos de investimento, em desacordo com o art. 1º, §1º, da ICVM 444.

Nos casos julgados6, o Colegiado da CVM avaliou que seria necessário que os prestadores de serviço contratados pelos fundos adotassem as devidas medidas de análise e investigação das ações judiciais, de forma a compreender o estado daqueles direitos creditórios, quando da sua aquisição. Nos casos em questão, embora a integralização dos direitos creditórios nos fundos tivesse ocorrido com base em pareceres técnicos, contratados para avaliar a pertinência das aquisições, o Colegiado concluiu que tais documentos seriam insuficientes, pois não teriam efetivamente abordado todos os fatos e desdobramentos processuais, relevantes para a tomada de decisão.

Um ponto bastante destacado foi justamente a decisão proferida pelo STJ em 2015, que colocou fim a qualquer alegação de viabilidade jurídica dos pleitos indenizatórios propostos no caso Gleba dos Apertados. Inclusive, nenhum dos pareceres acima mencionados, contratados pelos administradores dos fundos, tratou do recurso julgado pelo STJ em 2015, criando a incorreta percepção de que ainda existiria margem para propositura de novas ações, envolvendo a suposta indenização devida e a (não) ocorrência da prescrição.

Assim, na visão da CVM, como os direitos creditórios estavam prescritos, o Colegiado compreendeu que seria procedente a acusação formulada, condenando os gestores e administradores dos fundos por inobservância do dever de diligência a que eles se submetem, pois teriam adquirido direitos creditórios que não possuiriam lastro. Por isso sempre digo ser necessário ter muito cuidado na aquisição de legal claims, já que os vendedores geralmente são muito apaixonados por suas causas e apresentam tudo de forma favorável para o detentor do crédito.

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1 Para uma análise completa do precedente, Cf.: LORIA, Eli; KALANSKY, Daniel. Processo Sancionador e Mercado de Capitais IX: Estudo de Casos e Tendências; Julgamentos da CVM. São Paulo: Quartier Latin, 2024, pp. 333-345 e 370-378.

2 TJ/PR. Ação Ordinária de Reivindicação de Terras nº 696/49 – Ação ajuizada pelo estado do Paraná em 1896, cujo objeto consistia na desapropriação de uma área conhecida como “Gleba dos Apertados” em face dos proprietários, à época. Em 1899, após os recursos cabíveis, o pedido foi julgado procedente pelo STF, reconhecendo o domínio do Estado do Paraná sob referidas terras. Contudo, apenas em 1949 o estado do Paraná requereu a execução da sentença. Foram opostos embargos à execução, tendo o Juízo de Direito da 1ª Vara da Fazenda Pública da Comarca de Curitiba reconhecido, em primeiro grau, a prescrição da pretensão executiva, em 1951.

3 STJ. Recurso Especial nº 37.056: O estado do Paraná ingressou com Recurso Extraordinário contra a decisão do Juízo de Direito da 1ª Vara da Fazenda Pública da Comarca de Curitiba, que foi convertido no Recurso Especial nº 37.056. Em 1998, o Recurso Especial foi julgado pelo STJ, que decidiu pelo não conhecimento do recurso. O acordão do STJ, que manteve o reconhecimento da prescrição da pretensão executiva em desfavor do Estado Paraná transitou em julgado 09/06/1999.

4 TJ/PR. Ação de Atentado nº 1059/57: Ação ajuizada pelos sucessores e herdeiros das terras Gleba dos Apertados, contra o estado do Paraná, a fim de obter a devolução dessas terras. Após a interposição dos recursos cabíveis, foi reconhecido o direito de ocupação das terras pelos requerentes.

5 STJ. AgRg no Recurso Especial nº 1.484.529 – PR – “No que interessa ao caso sub judice, verifica-se que, efetivamente, prescreveu o direito da parte em ingressar com ação de indenização por desapropriação indireta, estando a decisão recorrida em consonância com a jurisprudência desta Corte, no sentido de que o prazo prescricional para a propositura da ação por desapropriação indireta é de 20 (vinte) anos (Súmula 119/STJ), tendo como termo inicial a data da efetiva ocupação do imóvel, que, segundo consta dos autos, teria ocorrido nos anos de 1940. Assim, proposta a presente ação em 2011, é inelutável a ocorrência da prescrição”.

6 CVM. Processo Administrativo Sancionador CVM 19957.004381/2021-68, Rel. João Pedro Nascimento, j. em 11.04.2023, e Processo Administrativo Sancionador CVM Nº 19957.004318/2021-21, Rel. João Pedro Nascimento, j. em 06.12.2023. As decisões proferidas pelo Colegiado da CVM foram confirmadas pelo Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional, na sessão de 10.09.2024.

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Colunista

Daniel Kalansky é sócio do escritório Loria e Kalansky Advogados, com intensa atuação em negociação de litígios estratégicos de alta complexidade, com forte atuação em ativos judiciais e special situations. Referência em litígios envolvendo Direito Societário, fundos de investimento e mercado de capitais, com forte atuação na assessoria de companhias abertas e sua regulação perante a CVM, principalmente em questões envolvendo minoritários e controladores. Professor no Insper, sendo doutor e mestre em Direito Comercial pela USP. Árbitro na Câmara de Arbitragem do Mercado (CAM) da B3 e foi presidente do Instituto Brasileiro de Direito Empresarial – IBRADEMP.