A separação de fato, embora não dissolva formalmente o vínculo matrimonial, é uma realidade que afeta diretamente os direitos e deveres dos cônjuges no ordenamento jurídico brasileiro. Esse conceito ganhou relevância, especialmente após as alterações legislativas decorrentes da EC 66/10, que simplificou o processo de divórcio.
A separação de fato não caracteriza um estado civil formal, mas sim uma convivência complexa entre a condição oficial de casado e a realidade prática de separação. Apesar de o estado civil ser modificado, em regra, por meio de um ato público, isso não impede o reconhecimento da posse de estado como elemento que pode corrigir a ausência de formalidade. Esse conceito tem sido amplamente utilizado nas relações familiares, especialmente no que se refere à filiação socioafetiva (posse de estado de filho) e à união de duas pessoas com o objetivo de constituir uma família, configurando uma união estável.1
Nesse sentido, a separação de fato, ou informal, ocorre quando o casal decide interromper a convivência como parceiros, ainda que possam continuar a compartilhar a mesma residência. Ainda que vivendo sob o mesmo teto, passam a manter vidas separadas, sem objetivos comuns ou intimidade. Trata-se de uma situação em que o casal, embora casado formalmente, opta por seguir caminhos individuais, sem a interferência de um sobre o outro. Essa separação pode ser uma etapa prévia à antiga separação judicial ou extrajudicial, ou ao divórcio propriamente dito. Para muitos, é um momento de reflexão e amadurecimento antes da dissolução definitiva do casamento; para outros, pode ser um período de conflitos que, eventualmente, leva a uma reconciliação.2
No ordenamento jurídico brasileiro, a posse de estado de cônjuge se manifesta na união estável, que é reconhecida constitucionalmente como uma entidade familiar (art. 226, §3º, CF/88). De modo inverso, também pode-se considerar a posse de estado de separado, embora a separação de fato não receba a mesma regulamentação detalhada que a união estável. Nesse contexto, assim como nem todos os efeitos do casamento se aplicam à união estável, os efeitos da separação judicial ou extrajudicial não podem ser automaticamente atribuídos à separação de fato.
Conforme dispõe CAMPOS3,
“A cessação do dever de coabitação, ou melhor, a cessação da vida em comum, tenha ela ocorrido por abandono unilateral do lar conjugal ou por acordo mútuo entre as partes, não constitui elemento essencial da separação de fato. Muito importante para a sua caracterização é a presença do outro elemento, qual seja, o elemento psicológico, volitivo, o desejo de realmente acabar com a vida em comum.”
Dessa forma, para a autora, independentemente de qual for a classificação que se dê a separação de fato, isto é, seja ela amigável ou não, o elemento intencional a acompanhar a cessação da vida em comum é fundamental. Chega-se, assim, a conclusão de que a separação de fato “é o estado em que se encontram os cônjuges que, sem qualquer homologação por tribunal competente, decidem quebrar o dever de coabitação de modo intencional e permanente, podendo esta decisão partir somente de um dos cônjuges ou de ambas as partes”.
Dadas as definições, DO VAL4 entende que a separação de fato pressupõe dois elementos inter-dependentes: objetivo e subjetivo. O aspecto objetivo consiste na cessação material da coabitação entre os cônjuges, se concretizando com o afastamento de um dos consortes do domicílio conjugal, no entanto, a autora enfatiza que
“ambos os cônjuges podem continuar a viver no mesmo imóvel, embora inexistindo a referida coabitação. (...) pode-se reconhecer a separação de fato quando, não obstante a permanência dos cônjuges sob o mesmo teto, se acerta que é terminado, de modo inequívoco e total, o diálogo de amor, se estima, de confidência e de colaboração e que a comunhão espiritual e material sofreu um definitivo e irreversível fracionamento”.
Por sua vez, o elemento subjetivo externa-se pela intenção concretizada de extinguir a comunhão conjugal, isto é, trata-se do “animus” unilateral ou bilateral dos cônjuges em terminar a vida em comum.
No Brasil Colônia e no Império, o casamento era visto como um sacramento indissolúvel, refletindo a influência da igreja católica. Com a Proclamação da República em 1889 e a separação entre igreja e Estado, houve uma mudança significativa no reconhecimento do casamento civil, mas a dissolução do vínculo matrimonial ainda não era permitida, exceto em casos extremos e com limitações.
Embora a convivência entre os cônjuges seja requisito fundamental no Direito Canônico, segundo São Tomás de Aquino, são dois os casos em que há essa tolerância por parte da igreja: havendo fornicação, por autoridade própria, ou com autorização da igreja.5
Até a segunda parte do século XX, o desquite era a única forma de dissolução da convivência, não rompendo o vínculo matrimonial e, portanto, impossibilitando o recasamento. A separação de fato, por outro lado, ocorria informalmente, sem reconhecimento jurídico, e, em muitos casos, era estigmatizada.
A separação de fato começou a ser reconhecida gradualmente após a promulgação da “lei do divórcio” (lei 6.515/77). Essa lei trouxe a possibilidade do divórcio como forma de dissolver definitivamente o casamento, mas exigia, inicialmente, que o casal estivesse separado judicialmente por, pelo menos, um ano, ou separado de fato por dois anos, para que o divórcio pudesse ser requerido.6
Esse dispositivo deu visibilidade à separação de fato, pois passou a ser um requisito para o divórcio direto. A separação de fato foi, então, pela primeira vez reconhecida pela legislação como um elemento importante na dinâmica do casamento, embora não tivesse efeitos automáticos no estado civil dos cônjuges.
A CF/88 trouxe mudanças significativas no direito de família, consolidando o direito ao divórcio e a proteção das diversas formas de constituição familiar, incluindo a união estável. A separação de fato permaneceu relevante, pois continuou a ser um requisito para a obtenção do divórcio direto.
Com a nova Constituição Federal, o conceito de família foi ampliado, garantindo a proteção a diversos arranjos familiares. Nesse contexto, a separação de fato também se tornou uma possibilidade de livre escolha para os cônjuges, que podiam decidir romper a convivência sem a necessidade de intervenção judicial imediata. O foco passou a ser na autonomia dos cônjuges e no respeito às suas decisões pessoais.
A EC 66, promulgada em 2010, representou um marco para o Direito de Família brasileiro ao eliminar a necessidade da separação judicial como pré-requisito para o divórcio. Com isso, o divórcio passou a ser direto, sem exigir um período prévio de separação formalizada judicialmente ou a comprovação de separação de fato, modificando substancialmente o §6º do art. 226 da CF/88.7
Essa mudança impactou diretamente o papel da separação de fato, que deixou de ser uma etapa obrigatória para a dissolução do casamento. No entanto, ela continuou relevante para definir o fim da convivência e para determinar questões patrimoniais, como a cessação da comunhão de bens.
A separação de fato passou a ser vista como uma escolha pessoal, não mais vinculada a formalidades ou à necessidade de ser declarada para fins de divórcio. Assim, mesmo sendo casado, é possível estabelecer uma união estável com outra pessoa, desde que esteja separado de fato, podendo essa união ser formalizada por meio
6 Art. 40. No caso de separação de fato, e desde que completados 2 anos consecutivos, poderá ser promovida ação de divórcio, na qual deverá ser comprovado decurso do tempo da separação. (Redação dada pela lei 7.841, de 1989)
7 Vide MAHUAD, Cássio, Separação judicial e a EC 66/10
de escritura pública. Nesse caso, em razão de um dos envolvidos ainda ser casado, o regime de bens aplicado será o de separação obrigatória, e a referida união estável não poderá ser registrada no RCPN.
A lei 11.441/07 introduziu o art. 1.124-A no CPC de 1973, inaugurando a possibilidade de separação e divórcio extrajudicial consensual por escritura pública, desde que não houvesse filhos incapazes, representando um importante avanço ao simplificar e agilizar o processo. Além de permitir a dissolução da sociedade conjugal, a lei estendeu essa possibilidade ao divórcio consensual. O CNJ regulamentou esse procedimento por meio da resolução 35/07, uniformizando sua aplicação. O CPC de 20158 manteve a restrição da escritura pública para casais sem filhos incapazes, e incluiu explicitamente a palavra "nascituro".9 Ressalte-se que a resolução 571/24 alterou a resolução 25/07, de forma que os divórcios consensuais poderão ser realizados em cartório ainda que envolvam herdeiros com menos de 18 anos de idade ou incapazes, de forma que a parte referente à guarda, à visitação e aos alimentos destes deverá ser solucionada previamente no âmbito judicial.
A separação de fato e a separação judicial têm pontos em comum, como o fim da sociedade conjugal e a cessação dos deveres de coabitação, fidelidade e regime de bens. Ambas permitem a formação de uma nova união estável sem caracterizar concubinato. Ambas encerram a sociedade conjugal, mas mantêm o vínculo matrimonial. A separação de corpos, por sua vez, é uma medida cautelar para preparar ações como nulidade, anulação, divórcio ou dissolução de união estável.
O SF, em 08 de agosto de 2023, julgou o tema 1.053 da repercussão geral (RE 1.167.478) e estabeleceu a seguinte tese: “Após a promulgação da EC 66/10, a separação judicial não é mais requisito para o divórcio nem subsiste como figura autônoma no ordenamento jurídico. Sem prejuízo, preserva-se o estado civil das pessoas que já estão separadas, por decisão judicial ou escritura pública, por se tratar de ato jurídico perfeito (art. 5º, XXXVI, da CF)”.
Na realidade, os casais que não admitem o divórcio, por questões religiosas ou de ordem pessoal, ficaram desamparados diante da decisão limitativa do STF, que interpretou de forma oblíqua o princípio da dignidade da pessoa humana. Esse princípio objetiva ampliar os institutos de registro civil, garantindo ao cidadão a resolução de seus anseios e necessidades pessoais, e não os constranger a se adaptar a uma realidade uniforme projetada para todo o conjunto social.
A separação de fato passou a ser a solução imediata para o problema criado pelo tema 1.053, conforme o art. 1.723, § 1º do CC, que garante aos separados a possibilidade de constituir uma união estável. O grande problema dos separados de fato é que eles não conseguem registrar a referida união sem determinação judicial.
Destaca-se que, em virtude da resolução 571/24, que alterou a resolução 35/07, as escrituras públicas de declaração de separação de fato passaram a ser consideradas títulos aptos tanto para o registro civil quanto para o registro imobiliário, possibilitando a transferência de bens e direitos, bem como a efetivação de todos os atos necessários para a concretização dessas transferências e o levantamento de valores. Assim, a separação de fato passa a constituir um estado civil passível de registro no RCPN, substituindo integralmente a separação judicial. O art. 88 do decreto 181, de 24 de janeiro de 1890, previa que o divórcio não dissolvia o vínculo conjugal, mas permitia a separação indefinida de corpos e a extinção do regime de bens. Dessa maneira, resgata-se o efeito da separação de fato, agora consagrado como um estado civil registrável.
Portanto, a separação de fato comprovada cessa o regime de bens, encerra o dever de fidelidade e a obrigatoriedade de vida em comum entre os cônjuges. A partir da separação de fato, os bens adquiridos por cada cônjuge são considerados particulares, e não mais comuns. De comum acordo, eles devem declarar sua intenção de separação perante o notário, que formalizará o fim do casamento com a autoridade que lhe é conferida. A documentação resultante, incluindo a cópia autenticada e a certidão, servirá como evidência da data da separação, os efeitos legais e a disposição dos bens dos ex- cônjuges, e será reconhecida como prova perante terceiros.
Conforme entende NERY e NERY:
“Separação de corpos consensual. Escritura pública. Admissibilidade. A lei silencia quanto à medida preventiva consensual de separação de corpos por escritura pública. Tendo em vista que a lei permite o mais, que é a própria separação consensual por escritura pública, com o rompimento da sociedade conjugal e do dever de coabitação -, a fortiori podem os cônjuges o menos, que é impor restrições, por vontade conjunta, ao dever de coabitação, podendo fazê-lo por escritura pública. É conveniente que nessa escritura se estabeleça prazo de duração dessa separação de corpos consensual, quer para que os cônjuges possam meditar melhor acerca de possível e futura separação, quer para prevenir consequências que lhes possam advir da separação de fato (v. CC 1580, caput, e §2º). Para manter-se a mesma lógica do sistema, os cônjuges devem fazer- se assistir de advogados ou de advogado comum, para que seja regular a escritura pública de separação de corpos consensual”.10
A escritura pública pode ser utilizada como alternativa à via judicial para formalizar a separação física dos cônjuges. No entanto, é necessário que ambos os cônjuges estejam de acordo com a separação e com os termos estabelecidos na escritura. Essa solução é mais rápida e menos onerosa do que um processo judicial.
Uma escritura de separação de corpos deve conter cláusulas claras e detalhadas, de modo a evitar conflitos futuros. Além da identificação das partes, as cláusulas podem contemplar a motivação da separação, o regime de bens, a guarda dos filhos, a prestação de alimentos, o uso do nome de casado, a utilização da residência e a divisão das despesas comuns. No que se refere à averbação dessa escritura no RCPN, conforme decisões administrativas já proferidas (2ª Vara de Registros Públicos de São Paulo - Pedido de Providências: 1031479- 53.2021.8.26.0100, j. 23/03/22, DJe 23/03/22, e Processo 1118504-12.2018.8.26.0100, DJe/SP 13/02/19), tal averbação não seria possível à margem do assento. No entanto, por decisão jurisdicional que entenda não haver incompatibilidade entre o tema 1.053 e a mencionada escritura, a prática do ato no RCPN, com caráter definitivo, poderá ser realizada por meio de alvará ou mandado judicial. Caso os cônjuges optem por restabelecer a sociedade conjugal, uma nova escritura será suficiente para o cancelamento da averbação da separação. Importante destacar que a resolução 571/24, que alterou a resolução 35/07, trouxe expressamente a possibilidade de registro da escritura pública de separação de corpos tanto no RCPN quanto no RI.11
A evolução histórica da separação de fato no Brasil reflete as mudanças sociais e jurídicas na concepção das relações conjugais e do direito de família. Desde os tempos em que a separação era um tabu e não havia qualquer reconhecimento legal, até os avanços possibilitados pela lei do divórcio de 1977, pela CF/88 e pela EC 66/2010, a separação de fato passou a ter um papel significativo na dinâmica dos casamentos.
Sejam felizes!
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1 RITO, Fernanda Paes Leme Peyneau, disponível aqui.