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Sistemas de transmissão da propriedade imobiliária

Sistemas de transmissão da propriedade imobiliária.

3/8/2021

Direito Romano e Direito Intermédio

A relevância do direito romano para a compreensão dos sistemas contemporâneos de transferência da propriedade não pode ser subestimada. Com efeito, as modernas teorias causal (que inspira a codificação francesa) e abstrata (que embasa a codificação alemã) de transferência da propriedade encontram a sua origem no direito romano, tal como foi acolhido e posteriormente interpretado por glosadores e comentadores, bem como pelos juristas do ius commune1.

Cediço entre os romanistas é que o direito romano conheceu, ao longo da sua história, três modos típicos de transferir a propriedade (modus adquirendi) e distintos da relação econômico-social subjacente (titulus adquirendi)2. Esses modos, a saber, a mancipatio, a in iure cessio e a traditio, são mais comumente elencados pela doutrina romanista sob a rubrica "modos derivados de aquisição da propriedade" e diferenciam-se dos denominados "modos originários de aquisição da propriedade" por implicar a continuidade de um poder dominial preexistente e pertencente a outrem, ao passo que estes estão desvinculados de qualquer poder atribuível a um titular anterior3.

O direito romano, convém notar, não conheceu a distinção entre a aquisição originária e derivada da propriedade. Conheceu, isso sim, a distinção entre os modos de aquisição do domínio oriundos do ius civile, de um lado, e aqueles atribuídos ao ius gentium e ao ius naturale, do outro4. Nessa lógica, o critério determinante era a efetividade da aquisição exclusivamente em favor de cidadãos romanos, no primeiro caso, e também em benefício de estrangeiros, no segundo. Eram considerados modos de aquisição iuris civilis a usucapio, a mancipatio e a in iure cessio, ao passo que a traditio e todos os demais modos de aquisição, quer fossem originários ou derivados, inseriam-se no ius gentium/ius naturale.

A mancipatio constitui, sem sombra de dúvida, um dos mais antigos e tradicionais modos de adquirir a propriedade a título derivado no direito romano. É quase certo que sua origem é pré-romana e que era uma instituição conhecida dos povos latinos antes da fundação de Roma5. É interessante notar que uma parte importante da literatura romanista, ao sistematizar os diversos institutos do direito romano, tende a elencar a mancipatio (bem como a in iure cessio) tanto entre os negócios jurídicos (onde normalmente se faz a análise do conteúdo solene do instituto)6 quanto entre os modos derivados de aquisição do domínio (no qual se faz o estudo dos seus efeitos translativos)7.

O sistema classificatório das coisas no direito romano pré-clássico e clássico distinguia entre as coisas que deviam ser alienadas mediante mancipatio (as res mancipi) e aquelas para cuja alienação bastava a simples traditio (as res nec mancipi)8. Nesse sentido, Gaio, ao explicar que o tutor não pode ser obrigado a interpor a sua autoridade (auctoritatis interponere) para praticar atos que sejam onerosos ao pupilo, qualifica as res mancipi como aquelas coisas que eram “mais valiosas” [=res pretiosiores] para os romanos9.

A mancipatio, por ter servido de modelo para todo um conjunto de atos de disposição de poderes, podia surtir vários efeitos. O traço comum a todos esses efeitos era a transferência a outrem (ou melhor, a extinção e concomitante criação) de um poder sobre uma coisa ou pessoa. O que variava era a expressão desse poder, que ora podia recair sobre uma coisa, ora sobre a mulher, ora sobre algum outro membro da família.

O principal efeito decorrente da realização das solenidades da mancipatio era a aquisição da propriedade quiritária (ex iure Quiritium), por parte do mancipio accipiens, sobre a res mancipi objeto do negócio. Note-se que, além da propriedade, a mancipatio transferia também a posse das coisas móveis (escravos e animais de tiro e carga), na medida em que estas deviam estar presentes na celebração das formalidades, a fim de que o adquirente as apreendesse materialmente (adprehendere id ipsum)10.

Outro modo formal e solene de aquisição derivada da propriedade era a cessão em juízo (in iure cessio), que a doutrina designa como uma espécie de lis imaginaria, por analogia à imaginaria venditio que a mancipatio constituía. Segundo essa mesma doutrina, o caráter nitidamente artificial da in iure cessio, entre outros fatores, torna mais plausível que esta tenha surgido em momento posterior à mancipatio11, embora já fosse mencionada, ao que parece, na Lei das XII Tábuas12. Objeto da in iure cessio podiam ser tanto as res mancipi quanto as res nec mancipi13.

Como negócio translativo da propriedade, entretanto, as próprias fontes parecem indicar que o uso da in iure cessio não era muito difundido14, sendo mais utilizada, provavelmente, para constituir e extinguir direitos reais limitados e para transferir poderes absolutos não patrimoniais15, tais como a cessão da tutela mulieris e a transmissão da patria potestas para fins de adoção (adoptio)16. Admitia, além disso, a alienação fiduciária das res nec mancipi, algo que não era possível por meio da simples traditio.

Tal como a mancipatio, a in iure cessio constituía um modo abstrato de aquisição derivada da propriedade, na medida em que não havia necessidade de declinar os motivos, isto é, a causa, que levava as partes a realizar a transmissão17.

No período pós-clássico, os meios de publicidade tradicionais entram em decadência e terminam por desaparecer. Com o tempo (e após algumas reformas), surge a corporalis traditio para a efetiva transferência da propriedade. Nesse sentido, uma constituição de Teodósio, Arcádio e Honório18, após assinalar que, em relação às coisas móveis, basta a simples tradição para que o contrato seja válido, prescreve que se o pacto disser respeito a imóveis, deverá ser lavrada uma escritura (scriptura emittatur) que os transfira ao adquirente, seguida da tradição material (traditio corporalis) e de atas (gesta) que atestem a conclusão do negócio: pois de outra forma não podem entrar no novo domínio nem ser separadas da antiga titularidade. A partir de então, portanto, a scriptura é da essência da transferência dominial imobiliária, junto com a tradição material incontinenti da coisa.

Muito embora o direito justinianeu reconhecesse o requisito do documento escrito (scriptura) para a transmissão imobiliária, tal exigência não era requisito de validade. O registro, portanto, era esporádico e a documentação tinha caráter comprobatório.

De acordo com a doutrina especializada, a traditio, como modo de aquisição da propriedade, pode ser definida como a entrega ou, pelo menos, a disponibilização de uma coisa, aliada às intenções recíprocas de renunciar e de receber o domínio sobre a coisa entregue, com base em uma relação que o direito reconhece como apta a justificar a transferência do domínio19.

Embora os autores da doutrina especializada divirjam quanto à efetiva enumeração desses requisitos20, existe um certo consenso quanto aos seguintes elementos essenciais da traditio: (i) um ato material indicativo da traditio que consistia, inicialmente, na entrega física da coisa, porém se torna, a pouco e pouco, um ato "espiritualizado" ou meramente simbólico; (ii) a intenção do alienante de entregar e do adquirente de receber a posse da coisa; (iii) a existência de uma iusta causa que servisse de fundamento à tradição; (iv) a titularidade, por parte do alienante, da propriedade (quiritária ou pretoriana) da coisa, e (v) a capacidade, por parte do accipiens, de adquirir a propriedade da coisa entregue.

Tende a prevalecer a noção de que, no direito romano, a iusta causa traditionis era requisito para a transferência válida da propriedade de uma coisa. A controvérsia, ao que tudo indica, diz respeito ao efetivo conteúdo dessa iusta causa. Um dos fatores que alimentou essa controvérsia21 é a célebre divergência, registrada nas fontes romanas, entre Juliano e Ulpiano acerca da traditio.

Com efeito, Juliano sustenta que o consentimento das partes em relação à entrega da coisa é suficiente para transferir a propriedade, mesmo que haja divergência quanto ao motivo dessa mesma entrega22. Ulpiano, por sua vez, ao discutir a mesma fattispecie, diverge da opinião de Juliano, por entender que, não havendo consentimento acerca da causa (no caso, o acordo acerca de se tratar de uma doação ou de um empréstimo de dinheiro), não pode haver transferência da propriedade23.

Hoje, a doutrina romanista tende a considerar a traditio um modo causal de transferência do domínio e, mesmo nos dias de hoje, a simples entrega de um bem qualquer, por si só, não implica que um direito sobre a coisa entregue, ou mesmo a simples posse, tenha sido transferido validamente. Alguma formalidade ou, no mínimo, uma intenção consubstanciada em algum tipo de declaração (quer seja expressa, tácita ou presumida), é necessária para que a entrega produza efeitos jurídicos.

Há quem agrupe as opiniões acerca da iusta causa traditionis que surgiram no direito intermédio24, e que deram origem às doutrinas do título e modo do século XIX25, em três modalidades de transferência da propriedade.

De um lado, quem entende necessária uma causa vera exige, para que a transferência seja eficaz, que a transferência do domínio se funde em um título jurídico válido26. Embasar a transmissão do domínio no animus dominii transferendi, por sua vez, significa requerer que a vontade translativa seja isenta de vícios, independentemente da validade da causa, para que a transferência seja eficaz27. Por último, optar pela abstração implica separar a vontade de transferir da sua respectiva causa, tornando a transferência da propriedade eficaz independentemente da causa traditionis28.

Essas três noções acerca da transmissão da propriedade são as que serviram de base para a primeira concepção sobre o sistema do título e modo, que teria dominado o direito comum europeu até o século XIX29. Para essa corrente, o modo é considerado a publicidade e, por isso, já existia desde o direito romano pela mancipatio.

No entanto, entende-se, numa segunda concepção, que modo é somente o registro, que nasceu na Idade Média por volta de 1347, de forma que os sistemas considerados como de título e modo seriam, na verdade, somente de título, reservando-se o "modo" apenas aos países que adotam o registro como fator constitutivo da transmissão da propriedade.

Além disso, deve-se observar que, independentemente da concepção de "modo" – seja ela a publicidade ou o registro – muitos países já se desvincularam do direito romano durante a Baixa Idade Média, passando a adotar o sistema puramente do título, como é o caso da França, Portugal e Itália, por exemplo.

Durante a Idade Média, se abstraiu a noção de publicidade e o contrato ganhou força constitutiva da transmissão muito provavelmente em virtude do crescimento do notariado, de forma que vários países passaram a adotar o sistema do título.  Paralelamente, na Alemanha, houve o surgimento do registro, que, no país, passou a ser mais prestigiado que o contrato, na medida em que era necessário para efetivar a transmissão. O sistema alemão, inclusive, dispensa o título obrigacional para o registro, não existindo vínculo causal entre eles (princípio da abstração).

No Brasil, por sua vez, ocorreu um sincretismo. Inicialmente, o país adotou o sistema do título, seguindo as determinações das Ordenações Afonsinas, Manuelinas e Filipinas, vigentes durante o período colonial. Tal sistema perdurou até 1916, ocasião em que, com a promulgação do Código Civil, houve a tentativa de incorporar no Ordenamento ideias do sistema alemão. Migrou-se, então, do sistema do título para o sistema do título e modo, no qual se exige, em regra, tanto o título quanto o registro para a transferência do direito real.

Bibliografia

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__________

1 L. P. W. van Vliet, Transfer of Movables in German, French, English and Dutch Law, Nijmegen, Ars Aequi Libri, 2000, p. 169.

2 M. Talamanca, Istituzioni di diritto romano, Milano, Giuffrè, 1990, p. 429.

3 Cf. P. Bonfante, Corso di diritto romano – La proprietà, vol. II, t. II, Milano, Giuffrè, 1968, p. 270; M. Talamanca, Istituzioni cit., pp. 413-414.

4 Gai. 2, 65.

5 P. Bonfante, Corso cit., vol. II, t. II, pp. 188-189.

6 Assim, por exemplo, M. Kaser, Römisches Privatrecht, trad. ing. de Dannenbring, Rolf, Roman Private Law, 4ª ed., Pretoria, University of South Africa, 1984, pp. 45-48; M. Marrone, Istituzioni di diritto romano, 3ª ed., Palermo, Palumbo, 2006, pp. 129-133; J. C. Moreira Alves, Direito Romano, vol. II, 6ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1997, 156-157 (de modo mais superficial).

7 Cf. M. Kaser, Römisches cit., pp. 125-127; M. Marrone, Istituzioni cit., pp. 309-311. Diversamente, J. C. Moreira Alves, Direito Romano, vol. I, 10a ed., Rio de Janeiro, Forense, 1996, 304-307 e M. Talamanca, Istituzioni cit., pp. 429-435 cuidam da mancipatio predominantemente como modo de aquisição da propriedade, apenas secundariamente como negócio jurídico.

8 Gai. 2, 19: Nam res nec mancipi ipsa traditione pleno iure alterius fiunt, si modo corporals sunt et ob id recipiunt traditionem (As coisas que não são suscetíveis de venda por mancipação tornam-se propriedade de outrem pela mera tradição, desde que sejam corpóreas e, por causa disso, capazes de serem entregues).

9 Gai. 1, 192.

10 Gai. 1, 121.

11 P. Bonfante, Corso cit., vol. II, t. II, pp. 199-200.

12 Ela é mencionada ao lado da mancipatio: Tab. 6, 6b: "(...) et mancipationem et in iure cessionem lex XII tab. confirmat" ("...a Lei das XII Tábuas confirma a mancipação e a cessão em juízo"). Cf. também Paul. Frag. Vat. 50.

13 Gai. 2, 22.

14 Gai. 2, 25.

15 M. Talamanca, Istituzioni cit., p. 435

16 M. Marrone, Istituzioni cit., p. 133.

17 Nesse sentido, cf. M. Talamanca, Istituzioni cit., p. 429; M. Marrone, Istituzioni cit., p. 134; M. Kaser, Römisches cit., p. 127, entre outros.

18 Theod.–Arcad.–Honor., C. 4, 3, 1, 1-2 (de 394 d.C.): "(1. Mas se for esse o motivo da entrega de ouro, prata ou alguma outra coisa móvel, basta a mera tradição para que o contrato tenha plena validade, pois a entrega conclusa de uma coisa móvel goza de plena fé por essa razão. 2. Porém, se o pacto disser respeito a imóveis rurais ou urbanos, deverá ser lavrada uma escritura que os transfira ao adquirente, seguida da tradição material e de atas que atestem a conclusão do negócio: pois de outra forma não podem entrar no novo domínio nem ser separadas da antiga titularidade)."

19 P. Bonfante, Corso cit., vol. II, t. II, pp. 203-204.

20 Acerca dessa divergência, cf. J. C. Moreira Alves, Direito cit., vol. I, p. 309.

21 L. P. W. van Vliet, Transfer cit., pp. 169-170.

22 Iul. 13 digest., D. 41, 1, 36.

23 Ulp. 7 disputat., D. 12, 1, 18 pr.

24 Acerca desse agrupamento, cf. L. P. W. van Vliet, Iusta Causa Traditionis and its History in European Private Law, in European Review of Private Law, 3 (2003), p. 346.

25 Para uma crítica contemporânea a essas teorias, cf. F. Hofmann, Die Lehre vom Titulus und Modus Adquirendi, Wien, Manz, 1873, pp. 41-79. Acerca do tema e do seu desenvolvimento, consultar a pesquisa elaborada em F. E. S. S. Medina, Compra e Venda de Coisa Incerta no Direito Civil Brasileiro – Uma análise do dever do vendedor no Código Civil de 2002, Tese de Doutorado – Faculdade de Direito da USP, 2018, pp. 115-119.

26 Nesse sentido, J. Cujacius, In libros IV prioris Codicis Justiniani, ad C. 4, 50, in J. Cuiacius, Jacobi Cujacii IC. Tolosatis opera ad Parisiensem Fabrotianam editionem diligentissime exacta in tomos XIII. distributa auctiora atque emendatiora, p. IV, t. IX, Prati, Giachetti, 1839, col. 2567.

27 É o caso, por exemplo de Baldus, In quartum et quintum Codicis libros commentaria, Venetiis, 1577, ad C. 4, 50, 6, f. 127, col. 3, n. 35: "(Por último, pergunta a glosa o motivo pelo qual a propriedade se transfere com base em um contrato nulo, embora não surja uma obrigação. A glosa responde: porque a obrigação não pode surgir sem ter por base um contrato válido, mas a propriedade pode ser transferida com base em um contrato putativo; pois, a bem da verdade, não se transfere pelo contrato, e sim pelo consenso fundado no contrato. Por isso a causa imediata, isto é, o consenso acerca da transmissão da propriedade é suficiente para transferir o domínio. Não obsta que a causa remota dessa mesma propriedade seja inválida ou nula)."

28 Assim, Rogerius, Enodationes questionum super Codice, in H. Kantorowicz – W. W. Buckland, Studies in the Glossators of the Roman Law – Newly discovered writings of the twelfth century, Cambridge, University Press, 1938, p. 289: "(Embora aquilo que se faz contra a lei seja inválido, nem sempre aquilo que se lhe segue é tido por ineficaz. Com efeito, se alguém for induzido dolosamente a vender, embora a venda seja inválida por força de lei, a tradição que se lhe segue transfere o domínio ao adquirente)."

29 F. E. S. S. Medina, Compra cit., pp. 117-119.

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Colunista

Vitor Frederico Kümpel é juiz de Direito em São Paulo e doutor em Direito pela USP.