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Aspectos gerais dos sistemas de transmissão da propriedade imobiliária

Aspectos gerais dos sistemas de transmissão da propriedade imobiliária.

20/7/2021

O registro é determinante para que se consiga distinguir a base do modelo de transmissão da propriedade adotado em um determinado país, bem como o momento desta transmissão. Dessa forma, a determinação do momento da transferência e seus efeitos estão diretamente relacionados ao tipo de sistema e os princípios adotados.

Os sistemas de civil law de transmissão da propriedade imobiliária podem adotar como base de seu funcionamento os seguintes princípios registrais: (i) consenso/consensualidade; (ii) tradição; (iii) unidade; (iv) separação; (v) causalidade; (vi) abstração.

Pelo princípio do consenso, a propriedade imóvel é transmitida pelo contrato realizado entre as partes, sem a necessidade de um registro subsequente1. Diz-se, assim, que o título é suficiente para adquirir, modificar, transmitir ou extinguir direitos reais2. Em contrapartida, pelo princípio da tradição, a propriedade não se transmite pela simples realização do contrato entre as partes, mas depende, na verdade, de um ato real (tradição ou registro),3 ou seja, um modo. O modo, no caso da transmissão imobiliária, nada mais é do que o registro da transferência do direito no Registro de Imóveis (ou órgão equivalente, a depender de cada país).

O Registro de Imóveis com essa função constitutiva de propriedade sobre bens imóveis surgiu na Bavária, em 1347, por iniciativa do Kaiser Ludwig. Nas normas municipais de Munique (Münchner Stadtrecht), a declaração apenas se tornava válida ao ser inscrita no livro de registros; e, consequentemente, a aquisição da propriedade imobiliária também estava condicionada à inscrição ("Der Erwerber war erst Eigentümer des Grundstückes, wenn er in das Gerichtsbuch eingetragen war").4

Por sua vez, o princípio da unidade determina que exista um único negócio jurídico para a transmissão da propriedade, enquanto, opostamente, o princípio da separação estabelece a cisão entre um negócio jurídico obrigacional e outro negócio jurídico real (de disposição).5-6

Por fim, há a contraposição entre o princípio da causalidade e o da abstração. O princípio da causalidade estabelece que deve existir uma relação entre o negócio jurídico obrigacional e o real (de disposição), de forma que a invalidade ou ineficácia de um dos negócios prejudica o outro.7 Por outro lado, o princípio da abstração não exige a vinculação entre os negócios jurídicos, pouco importando, assim, a invalidade ou ineficácia de um para o outro ou podendo o negócio de disposição e o registro serem realizados de maneira independente do conteúdo anteriormente estabelecido no negócio obrigacional.8

Conclui-se, portanto, que os princípios podem se mesclar das seguintes formas9: (i) Consenso, unidade e causalidade (Portugal) (ii) Consenso, separação e causalidade (Espanha) (iii) Consenso, separação e abstração (iv) Tradição, unidade e causalidade (Brasil) (v) Tradição, separação e causalidade (vi) Tradição, separação e abstração (Alemanha).

A categorização dos sistemas de transmissão da propriedade iniciou-se há muito tempo, com o estabelecimento de um quadro classificatório dos diversos sistemas existentes pelos tratadistas de Direito Imobiliário. A primeira forma de sistematização classifica os sistemas quanto a sua origem (sistema romano, sistema francês e sistema alemão).

Outra forma de classificar os sistemas é quanto à sua publicidade. Segundo AFRÂNIO DE CARVALHO, existem três sistemas: o sistema consensual ou privativista, o publicista e o eclético.

Resumidamente, o sistema consensual é aquele em que a transmissão dos direitos sobre o imóvel ocorre por acordo entre as partes, dispensando-se a publicidade para a operação da transmissão. O sistema publicista, por sua vez, impõe a publicidade como elemento essencial para a mutação jurídico-real dos direitos sobre o bem, no qual o modo de adquirir absorve o título. Por fim, o eclético combina o título e o modo, estabelecendo ser a publicidade registral que confere a transmissão da propriedade ou a constituição de direito real, mas antes dela o ato causal gera efeitos apenas entre as partes.10

A classificação proposta por Afrânio de Carvalho, de certo modo, assemelha-se à classificação quanto aos efeitos substantivos feitas por ORLANDO DE CARVALHO e M. V. A. SOUSA JARDIM. Segundo eles, são três os sistemas que valoram diferentemente a publicidade registral: o sistema do título, o sistema do título e do modo e o sistema do modo.11

A classificação quanto aos efeitos substantivos do sistema é a melhor em termos de identificação do funcionamento da transmissão da propriedade, sendo que as demais classificações, além de imprecisas, apresentam efeitos muitas vezes despidos de causas. Quando o sistema for somente do título, será regido pelo consenso, sem a necessidade do registro para efetivar a transferência do direito real; quando o sistema for de título e modo ou modo, será regido pela tradição, e o registro será o elemento de efetivação da transferência.

Detalhadamente, o título é a causa que justifica a mutação da situação jurídico real, ou seja, o fundamento jurídico da mutação dominial. Abarca todas as razões no que toca aquisição, modificação, transferência, resguardo ou extinção de um ius in re. Pode estar materializado por meio de um negócio jurídico particular, escritural, administrativo ou mesmo em decisão judicial (mandado, alvará, formal de partilha etc.). O sistema do título é o adotado na Itália, França, Bélgica, Portugal e Luxemburgo. Em todos esses países, o título é suficiente para adquirir, modificar, transmitir ou extinguir direitos reais12. O assento registral tem natureza declarativa e consolida oponibilidade erga omnes perante os terceiros.13

O sistema do título e modo é sempre regido pelo princípio da tradição, o qual determina que, além da manifestação de vontade no negócio jurídico, a propriedade só se transfere por meio de um ato real (tradição ou registro)14. O princípio da tradição pode ser combinado tanto com o princípio da separação (modelo terá dois negócios jurídicos e um ato real) ou com o princípio da unidade (modelo terá um negócio jurídico e um ato real – como é o caso do modelo brasileiro).15 Nesse sistema, é necessário que exista uma relação (causalidade) entre um dos negócios realizados entre as partes (ou do único negócio) e o registro, de maneira que a transmissão da propriedade, justamente, dependa de um título prévio, seja ele obrigacional, real ou ambos, e do modo.

No sistema do modo puro, exclusivo do sistema alemão, ocorre a adoção do princípio da tradição, sendo o registro elemento constitutivo da propriedade, e do princípio da separação em conjunto com o da abstração, de forma que há a separação entre o negócio jurídico obrigacional (Verpflichtungsgeschäft) e o negócio jurídico real (Verfügungsgeschäft), sendo abstrata a relação entre ambos. A propriedade se transfere com a combinação do acordo de vontade mais o registro, não sendo maculada por eventual vício do negócio jurídico obrigacional. Não há, assim, qualquer vínculo do título obrigacional com o registro.

No sistema alemão, a inscrição, ainda que nula, continuará produzindo efeitos para terceiros de boa-fé. Inclusive, o proprietário inicial do imóvel cujo negócio de disposição for nulo pode pedir a correção do registro, porém, caso o bem já tenha sido transmitido para um terceiro de boa-fé, a inscrição será válida para esse terceiro que terá adquirido a propriedade.

O Registro de Imóveis garante ao titular da propriedade segurança jurídica, tanto sob o ponto de vista estático, quanto sob o ponto de vista dinâmico16. A segurança jurídica estática é aquela que se preocupa com os direitos subjetivos do titular do direito real, a fim de garantir a estabilidade e a certeza do seu conteúdo.17 A segurança dinâmica, por outro lado, está voltada à proteção do terceiro de boa-fé que venha a adquirir a propriedade. O objetivo dessa segurança é que o terceiro de boa-fé possa confiar no conteúdo do registro18, sem se prejudicar posteriormente por omissão ou erro de informações.

No sistema brasileiro, a segurança estática coincide com a dinâmica, e na medida em que aquela é relativizada, como consequência, esta também o é, por causa do sistema do título e modo causal brasileiro.

Como o Brasil é sincrético e adota diversas exceções ao sistema registral, a exemplo dos modos originários de aquisição da propriedade, acaba por não garantir nem a segurança estática e nem a segurança dinâmica.

Bibliografia:

Brandelli, Leonardo, Registro de Imóveis e Eficácia Material, Rio de Janeiro, Forense, 2016.

de Carvalho, Afrânio, Registro de Imóveis, 4ª ed., Forense, Rio de Janeiro, 1997.

de Carvalho, Orlando, Direito das Coisas, Coimbra, Coimbra Editora, 2012.

Diniz, Maria Helena, Sistemas de Registro de Imóveis, 10a ed., São Paulo, Saraiva, 2012.

Jauernig, Othmar, Trennungsprinzip und Abstraktionsprinzip, in JuS 1994

Joost, Detlev, Trennungsprinzip und Konsensprinzip, in Lieb, Manfred – Noack, Ulrich – Westermann, Harm Peter (orgs.), Festschrift für Wolfgang Zöllner zum 70. Geburtstag, vol. II, Köln, 1998

Kümpel, Vitor Frederico – Borgarelli, Bruno de Ávila, Doação a Incapaz, in Revista de Direito Civil Imobiliário, 79 (2015), pp. 421-438

Medina, Francisco Elmídio Sabadin dos Santos Talaveira, Compra e Venda de Coisa Incerta no Direito Brasileiro: uma análise do dever do vendedor no Código Civil de 2002, Tese (Doutorado) – Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018.

Pietrek, Marietta, Konsens über Tradition? Eine Studie zur Eigentumsübertragung in Brasilien, Deutschland und Portugal, Tübingen, Mohr Siebeck, 2015.

Sousa Jardim, Mónica Vanderleia Alves, Os Efeitos Substantivos do Registro Predial, Coimbra, Almedina, 2013.

Stewing, Clemens, Geschichte des Grundbuches, in Rpfleger 97 (1989), pp. 445-447.

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1 F. E. S. Medina, Compra e Venda de Coisa Incerta no Direito Civil Brasileiro – uma análise do dever do devedor no Código Civil de 2002, Tese (Doutorado), Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018, pp. 119-120 e D. Joost, Trennungsprinzip und Konsensprinzip, in: M. Lieb/ U. Noack/ H. P. Westermann (orgs.), Festschrift für Wolfgang Zöllner zum 70. Geburtstag, vol. II, Köln, 1998, p. 1164.

2 F. E. S. Medina, Compra cit., p. 123.

3 F. E. S. Medina, Compra cit., p. 123.

4 C. STEWING, Geschichte des Grundbuches, in Rpfleger 97 (1989)., p. 446.

5 Não se deve confundir o "contrato júri-real" ou "contrato de direito real" com o "contrato real". O primeiro refere-se, justamente, à existência de duas fases contratuais, uma obrigacional e outra real para a transmissão da propriedade. Já o segundo trata-se dos contratos cuja formação depende da entrega de um bem, como o mútuo, comodato e depósito. No mesmo sentido é o recorte F. E. S. Medina, Compra cit., p. 123, nota 80.

6 F. E. S. Medina, Compra cit., p. 124.

7 F. E. S. Medina, Compra cit., p. 114.

8 O. Jauernig, Trennungsprinzip und Abstraktionsprinzip, in JuS 1994., p. 721.

9 Essas mesclas foram também sugeridas por F. E. S. MEDINA, Compra cit., p. 114.

10 Afrânio de Carvalho, Registro de Imóveis, 4ª ed., Forense, Rio de Janeiro, 1977, pp. 15-16.

11 Orlando de Carvalho, Direito das Coisas, Coimbra, Coimbra Editora, 2012, pp. 196-197; M. V. A. Sousa Jardim, Efeitos cit., p. 50.

12 M. V. A. Sousa Jardim, Efeitos cit., pp. 53-54. Também nesse sentido, J. Lieder, Die rechtsgeschäftliche cit., p. 264.

13 M. V. A. Sousa Jardim, Efeitos cit., pp. 54-55.

14 D. Joost, Trennungsprinzip cit., p. 1164. Também tangencialmente nesse sentido: V. F. Kümpel - B. A. Borgarelli, Doação a Incapaz, in Revista de Direito Civil Imobiliário 79 (2015), p. 425 e ss.

15 Sobre as combinações de princípios: M. Pietrek, Konsens über Tradition? Eine Studie zur Eigentumsübertragung in Brasilien, Deutschland und Portugal, Tübingen, Mohr Siebeck, 2015, pp. 41 e ss.

16 Maria Helena Diniz, Sistemas de Registro de Imóveis, 10a ed., São Paulo, Saraiva, 2012, pp. 59-60.

17 L. Brandelli, Registro de Imóveis e Eficácia Material, Rio de Janeiro, Forense, 2016, p. 7.

18 L. Brandelli, Registro cit., p. 11.

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Colunista

Vitor Frederico Kümpel é juiz de Direito em São Paulo e doutor em Direito pela USP.