Vitor Frederico Kümpel e Natália Sóller
O Brasil colonial, no período de vigência das Ordenações, principalmente das Filipinas (1603-1916 a. d.), seguindo o modelo português, adotava o sistema registral do título, o que significa dizer que a propriedade dos bens imóveis era transmitida pelo contrato (título)1, até porque nesse período o registro imobiliário estava engatinhando no seu berço germânico (nasceu por volta de 1480 a. d.).
O sistema registral do título tem por base o princípio do consenso, também chamado de consensualidade, estando a prova da transmissão dominial no próprio contrato (escritura pública), sendo esse o instrumento e a celebração, o momento da mutação dominial.
Esse sistema, no Brasil, mesmo com o advento da Lei de Terras de 1850 (lei 601 que estabeleceu o registro paroquial) e da lei 1.237/1864 (pela qual o registro deixa de ser paroquial e passa aos tabeliães de notas), continuou a vigorar.
Apesar de todo o respeito que deve ser nutrido pela grandiosa figura de Clóvis Bevilaqua, com a vigência do primeiro Código Civil brasileiro, a partir de 1º de janeiro de 1917, foi revogado o sistema do título, passando a incidir o complexo sistema do título e modo (art. 530, I2). Bevilaqua importou da Alemanha, em parte, o modelo registral e com uma única canetada passou a tornar obrigatório o registro, porém, ao contrário da Alemanha, manteve uma causação entre o contrato (título) e o registro (modo).
O sistema do título e modo exige que, em um primeiro momento, as partes realizem um negócio jurídico obrigacional entre si, do qual extrair-se-á um título e, para que tal negócio produza efeitos, apresentem o título para registro, que constituirá o direito real negociado. Dessa forma, a transmissão da propriedade ou de direitos reais apenas terá efeitos após o registro do título (fruto da negociação entre as partes) no ofício de registro de imóveis.
Esse novo modelo passou a gerar problemas absolutos, notadamente na transmissão imobiliária decorrente de aquisições em prestações periódicas. O Código Civil de 1916 foi incapaz de criar um mecanismo adequado para a grande massa da população brasileira da época, inclusive, que não tinha capacidade econômica para lavrar uma escritura de compra e venda à vista e imediatamente encaminha-la ao registro imobiliário para a transmissão da propriedade (transcrição, à época).
Os imóveis precisavam ser comercializados por meio de uma promessa de compra e venda, na medida em que nenhum vendedor iria outorgar uma escritura para um comprador não quitado. Note-se, contudo, que o instituto da promessa de compra e venda tal como temos hoje ainda não era previsto no Ordenamento, de forma que o contrato era feito com base no art. 1.088 do Código Civil de 19163. Tendo em vista que a escritura pública (título registrável) somente seria lavrada após o pagamento integral da dívida, isso causava uma insegurança jurídica ao negócio, na medida em que quaisquer das partes podia se arrepender a qualquer momento, bastando, para isso, restituir o valor e reter ou restituir o sinal (Súmula n. 412 do STF4).
Essa angústia afligia muito mais os compromissários compradores do que os promitentes vendedores. Isso porque a promessa não tinha qualquer ingresso no Registro Imobiliário, de forma que os promitentes vendedores alienavam a coisa a mais de um titular ou simplesmente se arrependiam por força do crescente mercado imobiliário, restituindo as quantias recebidas e até o sinal em dobro, para que pudessem reinserir o imóvel no mercado a preços mais altos. Isso era plenamente possível, na medida em que o título por si só não transferia nem garantia a aquisição da propriedade e inexistia publicidade da venda aos demais interessados no bem por conta da ausência do registro na matrícula do imóvel.
Esse problema terrível gerado pela mudança de sistema só foi, em parte, solucionado com o advento do decreto-lei 58, em 1937, portanto, passados 20 anos de angústia e de vigência do CC/1916. O referido Decreto-Lei fez nascer o compromisso irretratável de compra e venda, modificado por várias legislações supervenientes, inclusive pela lei 6.766/79.
Não sem razão, as legislações acima mencionadas prestigiaram o compromissário comprador, garantindo ao contrato de compromisso de compra e venda o direito à adjudicação compulsória e a irretratabilidade por parte do promitente vendedor (súmulas 239 do STJ5 e n. 166 do STF6). Aliás, o decreto-lei 58 criou um novo direito real chamado "direito real de aquisição" ou "direito real sobre coisa alheia sui generis", de forma que o próprio compromisso de compra e venda também poderia ingressar no Registro de Imóveis para fins de publicidade.
Passados mais de 80 anos da existência do compromisso de compra e venda, o mundo mudou. Daquela sociedade quase agropastoril, passou-se a uma sociedade de massa, em que a incorporação imobiliária (lei 4.591/64) e os loteamentos (lei 6.766/79) reinam em termos de empreendimentos imobiliários. Agora, já no final da segunda década do século XXI, além da proteção aos compromissários compradores, tornou-se necessária a proteção aos promitentes vendedores.
Com a crise que assola o país e com o índice absurdo de desemprego que de forma epidêmica atinge a mais de 13 milhões de pessoas aptas a trabalhar7, não é possível que o compromissário comprador simplesmente resolva inadvertidamente o contrato com o promitente vendedor e tenha a restituição integral e imediata do que desembolsou, com a retenção pelo promitente vendedor tão somente do sinal e eventualmente de alguma parcela do período de posse sobre a coisa (nos casos de empreendimento já concluído). Ora, garantir ao compromissário comprador a restituição quase integral das quantias pagas retira do promitente vendedor os recursos financeiros que estavam garantidos pelo contrato e pelo direito real de aquisição. Sem o investimento da compra das unidades imobiliárias, torna-se inviável ao empreendedor a conclusão da obra, pois fica ele obrigado a restituir valores que seriam destinados não só a seu lucro, mas também a cobrir as despesas da construção.
Com toda a crítica que tem sido feita, a lei 13.786, de 27 de dezembro de 2018, veio em boa hora, a fim de proteger o promitente vendedor de falência ou de recuperação judicial por resolução contratual decorrente do inadimplemento por parte dos compromissários compradores. A crise no mercado imobiliário não pode ser agravada pelo desprestígio ao empreendedor, que encadeia, por força de seu inadimplemento, crise em todo o sistema habitacional.
A lei procura ser equilibrada ao estabelecer regras e sanções tanto para o atraso na conclusão de obra quanto nas hipóteses de inadimplemento por parte do comprador, buscando um equilíbrio e visando retirar do Poder Judiciário a incumbência de solucionar o inadimplemento de ambas as partes.
Pensando na ótica do inadimplemento do comprador e, neste artigo, focando na incorporação imobiliária, passou-se a considerar o seguinte recorte: em empreendimentos sem o regime do patrimônio de afetação, o incorporador pode reter até 25% da quantia paga e a integralidade da comissão de corretagem, nos imóveis em que não ocorreu imissão na posse. Caso tenha sido instituído o regime do patrimônio de afetação (arts. 31-A a 31-F da lei n. 4591/1964), o incorporador, em caso de inadimplemento do compromissário comprador, poderá reter até 50% da quantia paga, além da integralidade da comissão de corretagem, a mesma hipótese em que não houve imissão na posse.
Muitos podem pensar ser um absurdo a retenção de metade do valor pago. Porém, o legislador certamente quis estimular o importantíssimo instituto do patrimônio de afetação. O patrimônio de afetação é uma garantia e proteção imensa ao comprador consumidor, na medida em que nenhuma dívida do incorporador, salvo do próprio empreendimento, recai no imóvel que está sendo edificado. Isso significa que o empreendimento fica blindado de eventual falência ou insolvência do incorporador. Para estimular esse instituto, o legislador autorizou a retenção de até 50%.
Muito embora haja um ou outro probleminha terminológico na lei, sendo que os termos rescisão, resilição e resolução são muitas vezes utilizados de forma incorreta ou inadequada, o nome da lei “Lei do Distrato” parece perfeito, porque a ideia é que, mesmo diante da mora ou inadimplemento de qualquer das partes, com a existência da lei, essas cheguem em um consenso e, caso não optem pela permanência e vigência do contrato, escolham a via consensual do distrato, valendo-se de meio alternativo de solução de conflito e desfaçam amigavelmente o vínculo contratual, trazendo menos custo ao Estado e mais benefícios para ambas as partes.
Em outra oportunidade abordar-se-ão outros aspectos relevantíssimos da referida lei que, não obstante críticas, merece aplausos num ano tão complicado como tem sido este de 2019.
Sejam felizes!
Continuem conosco.
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1 Art. 257 do Decreto n. 3.453/1865: Até a transcripção, os referidos actos são simples contractos que só obrigão as partes contractantes.
Art. 258 do Decreto n. 3.453/1865: Todavia a transcripção não induz a prova do dominio que fica salvo á quem fôr.
2 Art. 530 do Código Civil de 1916: Adquire-se a propriedade imóvel: I - Pela transcrição do título de transferência no registro do imóvel [...].
3 Art. 1.088 do Código Civil de 1916: Quando o instrumento público for exigido como prova do contrato, qualquer das partes pode arrepender-se, antes de o assinar, ressarcindo à outra as perdas e danos resultantes do arrependimento, sem prejuízo do estatuído nos arts. 1.095 a 1.097.
4 Súmula 412 do STF: No compromisso de compra e venda com cláusula de arrependimento, a devolução do sinal, por quem o deu, ou a sua restituição em dôbro, por quem o recebeu, exclui indenização maior, a título de perdas e danos, salvo os juros moratórios e os encargos do processo.
5 Súmula n. 239 do STJ: o direito a adjudicação compulsória não se condiciona ao registro do compromisso de compra e venda no cartório de imóveis.
6 Súmula 166 do STF: É inadmissível o arrependimento no compromisso de compra e venda sujeito ao regime do Decreto-Lei 58, de 10-12-1937.
7 L. Naime, Desemprego sobe para 12,4% em fevereiro, diz IBGE, disponível in 29/3/2019.