Vitor Frederico Kümpel e Bruno de Ávila Borgarelli
Neste texto dá-se continuidade à série de colunas sobre a usucapião extrajudicial. Como já se disse, o intuito é contribuir para a efetivação do instituto, sempre com a cautela necessária para que sua operacionalização não cause choques com o ordenamento e com preceitos fundamentais (v.g. o direito de propriedade).
Uma das questões que causa preocupação é a do acúmulo de Tabelionato de Notas e Registro de Imóveis por um mesmo titular, situação comum em algumas unidades da Federação. Pois bem.
O procedimento da usucapião administrativa não precisa ser aqui descrito em minúcias. Basta recordar que o mesmo CPC/2015, que incluiu na Lei de Registros Públicos o art. 216-A, também criou um instrumental para efetivar essa modalidade de usucapião. Destaca-se aí o relevo dado à ata notarial: no art. 384, caput do NCPC afirma-se que "a existência e o modo de existir de algum fato podem ser atestados ou documentados, a requerimento do interessado, mediante ata lavrada por tabelião".
A ata notarial, recorde-se, pode ser vista como uma espécie do gênero das escrituras públicas em sentido amplo, cujo principal escopo é servir como prova em processos judiciais, podendo também ser utilizada "na seara privada, no âmbito administrativo ou mesmo registral"1. No procedimento de usucapião administrativa, está no rol dos documentos que instruirão o pedido de reconhecimento perante o ofício do Registro de Imóveis (art. 216-A, I da LRP), sendo lavrada "pelo tabelião de notas do município em que estiver localizado o imóvel usucapiendo ou a maior parte dele" (art. 5º do Provimento 65/2017 do CNJ).
A ata atestará "o tempo de posse do requerente e de seus antecessores, conforme o caso e suas circunstâncias (...)". No Provimento 65/2017 do CNJ encontra-se um detalhamento dos elementos da ata notarial. Assim é a redação de seu art. 4º:
Art. 4º O requerimento será assinado por advogado ou por defensor público constituído pelo requerente e instruído com os seguintes documentos:
I – ata notarial com a qualificação, endereço eletrônico, domicílio e residência do requerente e respectivo cônjuge ou companheiro, se houver, e do titular do imóvel lançado na matrícula objeto da usucapião que ateste:
a) a descrição do imóvel conforme consta na matrícula do registro em caso de bem individualizado ou a descrição da área em caso de não individualização, devendo ainda constar as características do imóvel, tais como a existência de edificação, de benfeitoria ou de qualquer acessão no imóvel usucapiendo;
b) o tempo e as características da posse do requerente e de seus antecessores;
c) a forma de aquisição da posse do imóvel usucapiendo pela parte requerente;
d) a modalidade de usucapião pretendida e sua base legal ou constitucional;
e) o número de imóveis atingidos pela pretensão aquisitiva e a localização: se estão situados em uma ou em mais circunscrições;
f) o valor do imóvel;
g) outras informações que o tabelião de notas considere necessárias à instrução do procedimento, tais como depoimentos de testemunhas ou partes confrontantes;
O provimento tem, nesse particular, o mérito de especificar o conteúdo da ata notarial, inclusive anotando que o Tabelião poderá acrescentar ao documento outras informações que julgar necessárias para a instrução do procedimento. Tudo isso mostra como a figura do Tabelião de Notas é importante para a usucapião administrativa. O documento por ele lavrado é exigência legal, e seu conteúdo pode afetar positiva e negativamente o procedimento. O Tabelião inclusive "poderá comparecer pessoalmente ao imóvel usucapiendo para realizar diligências necessárias à lavratura da ata notarial" (art. 5º, §1º do Provimento 65/2017 do CNJ).
Além da ata, são necessários os demais documentos indicados no art. 216-A da LRP: planta e memorial descritivo do imóvel; certidões negativas dos distribuidores da comarca da situação do imóvel e do domicílio do requerente; justo título ou quaisquer outros documentos que demonstrem a origem, a continuidade, a natureza e o tempo da posse.
O Oficial do Registro de Imóveis tomará esses documentos todos em consideração e procederá à sua típica análise extrínseca, avaliando a viabilidade da usucapião, e ainda a modalidade do caso, ou seja, de que tipo de usucapião se trata, dentre as diversas aceitas no ordenamento brasileiro (usucapião ordinária, extraordinária, coletiva urbana etc.).
Diante disso, pergunta-se: é razoável que um mesmo oficial, acumulando as funções de Tabelião de Notas e de Registrador de Imóveis em uma dada localidade, atue como receptor do pedido de usucapião administrativa?
Em muitos locais essa é uma realidade. Recorde-se que o art. 26 da lei 8.935/1994 (Lei dos Notários e Registradores) veda a acumulação de serventias (descritas no art. 5º da mesma lei), excetuando, contudo, no parágrafo único, os "Municípios que não comportarem, em razão do volume dos serviços ou da receita, a instalação de mais de um dos serviços".
Essa possibilidade excepcional de acumulação veio apenas com a lei 8.935/1994. Antes dela, em diversos Estados a junção era expressamente admitida. Daí a determinação da Lei dos Notários e Registradores (art. 49) no sentido de se preservarem os direitos dos titulares que já acumulavam as funções desde antes da lei até que se dê a primeira vacância ("Quando da primeira vacância da titularidade de serviço notarial ou de registro, será procedida a desacumulação, nos termos do art. 26").
Seja como for, a acumulação, pelo que se entende, é um grande bloqueio à boa operação da usucapião administrativa. Isso porque um mesmo oficial elaborará a ata notarial e procederá à sua análise na qualificação. A situação pode ser até mais grave. Pense-se, por exemplo, naqueles municípios que têm mais de um Tabelionato, mas apenas um Ofício do Registro de Imóveis. Se houver acumulação deste último Ofício por algum dos tabeliães, é bastante provável que os postulantes escolham o Tabelionato acumulado com o RI.
Isso fustiga toda a deontologia do sistema, e o controle da atividade. Fere-se com isso, por decorrência, a proteção do direito de propriedade, porque o procedimento feito sem o preenchimento de etapas diversas por agentes diversos pode destruir os elementos protetivos que o legislador conferiu ao titular do domínio na usucapião.
Elementos estes que já são bastante escassos, principalmente em relação à já conhecida "presunção de concordância" dos titulares de dos direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo que, uma vez notificados pelo Oficial registrador, não se manifestem em 15 dias sobre o procedimento. Novidade trazida pela lei 13.465/2017, a presunção de concordância, apesar de ajudar na efetivação da usucapião administrativa, provoca necessariamente um questionamento sobre a constitucionalidade da normativa, neste específico ponto.
O que importa é extrair desses problemas o fato de que, na operacionalização da usucapião extrajudicial, deve haver limites bem precisos, especialmente quanto à tutela da propriedade. Quanto ao específico – e delicado – problema focalizado neste texto (o acúmulo de serventias) espera-se das instituições uma resposta consciente e ágil.
Sejam felizes. Até a próxima coluna!
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