Registralhas

Usucapião extrajudicial: o problema dos gravames e restrições na matrícula do imóvel

Usucapião extrajudicial: o problema dos gravames e restrições na matrícula do imóvel.

7/8/2018

Vitor Frederico Kümpel e Bruno de Ávila Borgarelli

Nesta coluna dá-se continuidade à série de textos sobre a usucapião extrajudicial. Nos artigos anteriores falou-se sobre o novo impulso dado a essa modalidade de usucapião por meio da lei 13.465/2017 – que alterou a "presunção de discordância" dos titulares confrontantes e demais interessados para uma "presunção de concordância", quando de seu silêncio após notificação – bem como sobre a tentativa de mediação e conciliação a ser feita pelo Oficial do Registro de Imóveis, importante novidade trazida pelo art. 18 do Provimento 65 do CNJ1.

Este texto dedica-se a um problema bastante sensível deste último provimento. Trata-se da determinação contida em seu art. 21:

Art. 21. O reconhecimento extrajudicial da usucapião de imóvel matriculado não extinguirá eventuais restrições administrativas nem gravames judiciais regularmente inscritos.

§1º A parte requerente deverá formular pedido de cancelamento dos gravames e restrições diretamente à autoridade que emitiu a ordem.

§2º Os entes públicos ou credores podem anuir expressamente à extinção dos gravames no procedimento da usucapião.

Em outras palavras, sendo exitoso o procedimento de usucapião administrativa, as restrições e gravames presentes na matrícula do imóvel não serão extintos. O requerente é que deverá solicitar a cada autoridade emissora o cancelamento dessas restrições. Restrições que, recorde-se, não frustram o procedimento. Afinal, como reza o art. 14 do provimento, "a existência de ônus real ou de gravame na matrícula do imóvel usucapiendo não impedirá o reconhecimento extrajudicial da usucapião".

Ora, como se sabe, a usucapião é modo originário de aquisição do domínio. Isso é inclusive reconhecido expressamente pelo Provimento 65, o qual, em seu art. 24, determina que o Oficial do RI não exigirá pagamento do ITBI para o registro da usucapião (afinal, sendo aquisição originária, inexiste verdadeira transmissão imobiliária).

A originariedade faz com que, na usucapião, os gravames existentes na matrícula do imóvel percam sua eficácia. Qual a razão da diferença no procedimento extrajudicial?

Recorde-se que, segundo o art. 20 do mesmo ato (prov. 65), o registro do reconhecimento da usucapião extrajudicial "implica abertura de nova matrícula", exceto se o imóvel usucapiendo encontrar-se já matriculado e o pedido referir-se à totalidade do bem. Neste caso, "o registro do reconhecimento extrajudicial de usucapião será averbado na própria matrícula existente".

A averbação – na verdade o correto seria ato de registro - é feita e os gravames e restrições são, pela determinação do Provimento, mantidos. Essa ordem normativa soa realmente estranha. Até seria possível compreender a manutenção de restrições ambientais, por exemplo, mas a ideia de preservar tudo retira muito da eficácia do procedimento.

Se o imóvel realmente contiver muitos gravames, o requerente precisará fazer uma via sacra para notificar todas as autoridades emissoras. Mas, e a notificação feita anteriormente aos titulares dos ônus reais e gravames para eventual impugnação, conforme o art. 10 do provimento2?

O mesmo citado art. 10, em seu §1º, determina que a notificação dos titulares de direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel "poderá ser feita pessoalmente pelo oficial do registro de imóveis ou por escrevente habilitado se a parte notificanda comparecer em cartório".

Como se vê, o Provimento aponta diversos meios pelos quais se pode indicar aos titulares dos direitos registrados ou averbados na matricula do imóvel a situação do bem – i.e., que se trata de procedimento de usucapião sobre ele incidente. E ainda assim preservam-se as restrições e gravames?

Parece haver realmente uma incongruência no sistema estabelecido. Os titulares podem impugnar o procedimento, como também se sabe (art 14, parágrafo único) e, caso não seja frutífera a tentativa de conciliação a ser feita pelo Oficial do RI, frustrar o reconhecimento administrativo da usucapião. Os particulares e os entes públicos podem, assim, agir para evitar o processamento extrajudicial.

Diante de tudo isso, entende-se que, na realidade, e para o procedimento da usucapião administrativa ter sua efetividade preservada, deve-se averbar na matricula, após o ato de registro da usucapião, a ineficácia das disposições e gravames ali existentes.

Mais uma vez, é preciso repetir o que se disse nas colunas anteriores. Não se está a criticar o modo como o CPC/15, a lei 13.465/2017 e o provimento 65 do CNJ regulamentam a usucapião administrativa. É perfeitamente compreensível que o regramento avance a passos cautelosos, afinal está-se diante de uma figura jurídica complexa e de grande impacto. O que se pretende é oferecer subsídios para que, com essa mesma cautela, o procedimento se vá aperfeiçoando cada vez mais.

Sejam felizes! Até o próximo Registralhas.

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1 Prov. 65, Art. 18, caput. "Em caso de impugnação do pedido de reconhecimento extrajudicial da usucapião apresentada por qualquer dos titulares de direitos reais e de outros direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo ou na matrícula dos imóveis confinantes, por ente público ou por terceiro interessado, o oficial de registro de imóveis tentará promover a conciliação ou a mediação entre as partes interessadas".

2 Prov. 65 CNJ, art. 10, caput. "Se a planta mencionada no inciso II do caput do art. 4º deste provimento não estiver assinada pelos titulares dos direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo ou na matrícula dos imóveis confinantes ou ocupantes a qualquer título e não for apresentado documento autônomo de anuência expressa, eles serão notificados pelo oficial de registro de imóveis ou por intermédio do oficial de registro de títulos e documentos para que manifestem consentimento no prazo de quinze dias, considerando-se sua inércia como concordância".

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Colunista

Vitor Frederico Kümpel é juiz de Direito em São Paulo e doutor em Direito pela USP.