Vitor Frederico Kümpel e Bruno de Ávila Borgarelli
É já evidente para a maior parte das pessoas que o EPD trouxe mais problemas do que soluções ao Direito brasileiro. Incompatível até mesmo com a normativa que supostamente o inspira – a Convenção da ONU para as pessoas com deficiência – o chamado EPD é um descuido legislativo.
Nem é preciso descer às suas entranhas: o só fato de não ter considerado a promulgação do Código de Processo Civil (lei 13.105/2015), ocorrida alguns meses antes, denota o problema. As duas mais relevantes leis de 2015 contradizem-se, como se a tramitação de uma desconsiderasse completamente o andamento da outra. Um país civilizado não pode admitir algo assim. O choque entre as normas constitui um dos maiores erros legislativos dos últimos anos. E a emenda custa caro. Em tempos de falta de credibilidade institucional – tempos nos quais autoridades defendem um STF vanguardista, pois o Legislativo supostamente perdeu legitimidade – fica muito difícil defender essa figura, o legislador, cujo poder afinal sempre tensionou os debates no campo jurídico.
A apresentação do PLS 757/2015 pelos senadores Paulo Paim e Antonio Carlos Valadares pretendia corrigir os defeitos da normativa tal como publicada. O trâmite não se deu a tempo da entrada em vigor da lei. Acabou adaptado depois de parecer do senador Telmário Mota. Após a análise pela CDHC, e com o parecer da relatora - senadora Lidíce da Mata -, redundou o projeto em novo substitutivo, e foi enfim encaminhado à CCJ – que o acolheu em 20 de junho de 2018 - e depois ao estágio final da tramitação no Senado. Enfim, foi aprovado recentemente, em 4 de julho de 2018.
Das muitas questões modificadas pelo PLS 757/15 – bem como por seu substitutivo – destaca-se o instituto da Tomada de Decisão Apoiada. A redação aprovada do art. 3º do substitutivo dá a seguinte redação ao art. 1.783-A do Código Civil de 2002:
"Art. 1.783-A. As pessoas com deficiência intelectual ou mental ou deficiência grave que conseguem exprimir a sua vontade, por qualquer meio, podem formular pedido judicial de tomada de decisão apoiada para a prática de ato ou atos sucessivos da vida civil, elegendo como apoiadores pelo menos 02 (duas) pessoas idôneas".
Além disso, o Substitutivo, com seu art. 7º, acrescenta ao CPC o procedimento da TDA:
"A seção IX do Capítulo XV do Título III do Livro I da Parte Especial da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015, passa a ser denominada “Da Tomada de Decisão Apoiada e da Curatela (NR)".
O mérito do substitutivo é sanear os erros quanto ao aspecto processual da TDA. Sua inserção no Código de Processo Civil é necessária.
A dificuldade está no aspecto material, com a modificação do art. 1.783-A do CCB/02: podem pessoas com deficiência mental grave realizar o negócio jurídico de instituição de TDA, desde que consigam exprimir – por qualquer meio – sua vontade. A redação é falha e pode levar a grandes absurdos.
Mas, como se pode ler no site do Senado Federal,
"Ao rejeitar a atribuição de qualquer viés de incapacidade às pessoas com deficiência ou sem condições de manifestar sua vontade (quem está em coma, por exemplo), Lídice partiu, em seu substitutivo, para o reconhecimento da plena condição das mesmas para exercer atos da vida civil. Assim, para quem tem deficiência intelectual ou mental ou deficiência grave, mas é capaz de exprimir sua vontade, por qualquer meio, ficou garantida a formulação de pedido judicial de tomada de decisão apoiada para a prática desses atos de autonomia".
Diante dessa novidade, é preciso fazer algumas considerações sobre o instituto.
A Tomada de Decisão Apoiada, diz a redação atual do art. 1783-A do CC/02, tal como incluído pelo EPD, é "o processo pelo qual a pessoa com deficiência elege pelo menos 2 (duas) pessoas ido^neas, com as quais mantenha vínculos e que gozem de sua confiança, para prestar-lhe apoio na tomada de decisão sobre atos da vida civil, fornecendo-lhes os elementos e informaço~es necessários para que possa exercer sua capacidade".
A figura se aproxima da congênere italiana amministrazione di sostegno. A diferença é que, na Itália, a inserção desse instrumento novo foi feita com cuidado, de modo que as legislações civil e processual se acomodaram num regime harmônico, a permitir a boa operacionalização da "administração de apoio". Obviamente não é o que ocorreu no Brasil. Por aqui, a despeito da importância que se pretendeu dar à TDA, a falta de previsão no CPC/15 dificulta sua aplicação. Esse ponto, felizmente, é corrigido no PLS 757/2015, como se disse acima.
Seja como for, a operatividade configura apenas uma parte do problema do instituto. Mesmo que haja uma adequação processual, restará uma grande dúvida sobre a TDA: quando pode ser aplicada?
Diante da conhecida mudança do sistema das incapacidades promovida pelo EPD – a mais radical modificação do Direito Civil brasileiro em muito tempo – fica difícil entender quem são as pessoas com deficiência aptas a realizar o negócio jurídico de estabelecimento da TDA.
É preciso retomar aqui uma questão muito importante. O EPD não suprimiu a figura da curatela. Tentou, sem sucesso, extinguir a expressão "interdição", por ser um mecanismo supostamente arcaico e ligado a um paradigma "médico", e não "social", no trato jurídico das deficiências mentais.
Mera falácia.
Quem quer tutelar as pessoas com deficiência deve reconhecer esse estado, articular um sistema protetivo e promover políticas de inclusão. Fingir, com o golpe da caneta legislativa, que a deficiência não existe ou que o incapaz natural é capaz, isso sim é reprovável.
De todo modo, como se disse, não houve sucesso na supressão do termo "interdição", porque o legislador deixou passar, aqui e ali, menções a essa palavra. Mas nos pontos de maior destaque houve substituição pelo politicamente correto "processo que define os termos da curatela". Uma curatela que fica mais restrita, impondo-se uma modulação judicial mais rigorosa dos poderes do curador, afim de se preservar o espaço de autonomia da pessoa protegida.
Uma segunda colocação a fazer diz respeito à dificuldade em saber a quem, afinal, aplica-se a curatela. Diante do art. 6º do EPD, que deu plena capacidade às pessoas com deficiência, enumerando certos atos por elas praticáveis (incluindo casar e até mesmo exercer a curatela de outras pessoas), é difícil entender a partir de que ponto será preciso dar curador a alguém.
Colocadas essas questões, volte-se à decisão apoiada. A lei, que confunde no mais, confunde também no menos. Nessa dificuldade em saber quem precisa de curador, por igual não se sabe quem dele prescinde, podendo – se quiser, e somente se quiser – optar pelo instituto da TDA.
Diante disso, o que se pode fazer é fixar alguns limites para a TDA. Assim, deveria caber o instituto somente nos casos de evidente capacidade de percepção e autonomia para discernir. Fora disso, ou seja, apresentando a pessoa o menor sinal de não ser capaz – naturalmente – de dirigir sua vontade aos fins juridicamente tutelados, só resta o regime da curatela. A TDA vale para situações de deficiência que não prejudica um discernimento considerável para a prática escorreita, consciente e autônoma dos atos da vida civil.
Recorde-se que a própria instituição da decisão apoiada corresponde a uma espécie de negócio jurídico. Sua criação exige já uma vontade livremente estabelecida, posto que direcionada a uma situação de apoio na administração dos próprios interesses, pois a deficiência pode obnubilar o discernimento da pessoa em casos mais delicados, dos que envolvem aspectos patrimoniais. Casos, enfim, mais sensíveis, nos quais um apoio é útil ao equilíbrio na vivência em comunidade. Aliás, na VIII Jornada de Direito Civil aprovou-se o seguinte enunciado 640 – "Art. 1.783-A: A tomada de decisão apoiada não é cabível se a condição da pessoa exigir aplicação da curatela".
Mas não é isso o que se vê no Substitutivo ao PLS 757/2015. O que ali se afirma é que mesmo a pessoa com deficiência mental grave poderá recorrer à TDA, desde que consiga manifestar "por qualquer meio" sua vontade. Ora, que tipo de manifestação é essa? Se for somente for possível captar a vontade do deficiente com algum esforço de compreensão, isso vale para fins de aplicação da decisão apoiada?
É evidente que não pode ser assim. Não se está a defender uma conexão necessária entre deficiência e falta de manifestação sadia da vontade. Sabe-se perfeitamente que essa implicação não é necessária.
O problema está na repetição de um erro cometido pelo EPD em outros tantos de seus dispositivos: o de dar autonomia excessiva a pessoas que, embora consigam manifestar alguma vontade, não o fazem de forma regular, mas necessitam de um apoio. E um apoio que vai muito além do grau de autonomia que deveria ser exigido para algo como a TDA. Enfim, além de todos os malefícios trazidos pelo EPD, acredita-se que o Substitutivo veio causar ainda mais confusão em um ponto muito sensível.
A verdade é dolorosa: leis brasileiras de enorme impacto social são feitas para o agrado do politicamente correto e de circunstâncias ideológicas. Disso o EPD é um grande exemplo.
Sejam felizes. Até a próxima coluna!