Registralhas

O princípio registral da cindibilidade na troca ou permuta

O princípio registral da cindibilidade na troca ou permuta.

17/4/2018

Vitor Frederico Kümpel e Giselle de Menezes Viana

A troca, ou permuta, é o contrato mais antigo de todo o sistema contratual. Em linhas gerais, cada parte se obriga a dar uma coisa por outra, sem envolver, fundamentalmente, dinheiro1. Nas fases mais primitivas da sociedade, a simples permuta de objetos bastava para a circulação de mercadorias e a satisfação das necessidades humanas. Foi apenas a partir e em derivação deste arquétipo originário que se desenvolveu o contrato de compra e venda.

De fato, com a posterior difusão do metal como fator representativo de valor, culminando na invenção da moeda, a troca cedeu crescente espaço à sua sucessora, a compra e venda, que gradativamente alçou a posição de "contrato padrão" no sistema jurídico. Não se pode negar, portanto, a familiaridade genética entre a troca e a compra e venda. E essa identidade é corroborada, atualmente, pelo próprio Código Civil, ao determinar a incidência, na troca, de todas as disposições referentes à compra e venda, salvo duas exceções:

"Art. 533. Aplicam-se à troca as disposições referentes à compra e venda, com as seguintes modificações:

I - salvo disposição em contrário, cada um dos contratantes pagará por metade as despesas com o instrumento da troca;

II - é anulável a troca de valores desiguais entre ascendentes e descendentes, sem consentimento dos outros descendentes e do cônjuge do alienante."

A analogia com a compra e venda – até por força do art. 533 – é a chave de compreensão da permuta no atual sistema jurídico. E por isso deve orientar o intérprete na solução de problemas relativos a essa modalidade contratual, inclusive na problemática ensejadora do presente artigo: a incidência do princípio da cindibilidade nos instrumentos de permuta.

O princípio registral da parcelaridade ou cindibilidade do título significa a possibilidade de cisão do título apresentado a registro, de modo a aproveitar ou extrair determinados elementos aptos a ingressar de imediato no fólio real, e desconsiderar outros cujo registro esteja obstado ou dependa de providências adicionais2.

A gênese da ideia de cindibilidade está intimamente atrelada ao sistema matricular inaugurado pela lei 6.015/1973. A referida lei substituiu o antigo sistema de transcrições pelo modelo inscritivo, moldado em torno da figura da matrícula. Ora, pelo sistema de transcrições, o título (em sentido formal) era literal e integralmente transcrito no fólio registral. Não havia que se cogitar, desse modo, o registro parcial ou a cindibilidade do título.

Com a instituição da unitariedade matricial, contudo, o foco do sistema passa dos sujeitos e dos respectivos títulos (em sentido formal) para o próprio imóvel e as mutações jurídicas por este sofridas. Com essa mudança de perspectiva, o "título" passou a ser compreendido não mais apenas em seu aspecto formal (como objeto do registro) mas principalmente em seu aspecto substantivo (como causa do registro)3. E por este viés se justifica logicamente a opção pelo sistema de matrículas e pela técnica inscritiva em detrimento das antigas transcrições4.

Se o título passa a ser compreendido fundamentalmente como a causa do registro, então passa a ser possível que um mesmo título, referente a múltiplos imóveis, dê causa a múltiplos assentamentos, repercutindo em matrículas diversas. Se é inquestionável que um único título pode dar causa a lançamentos em mais de uma matrícula, remanesce, porém, a pergunta: é possível que um título não dê causa a todos os lançamentos que está vocacionado a ensejar? Em outras palavras: é possível o aproveitamento parcial do título, de modo a permitir seu ingresso diferido no fólio real?

A doutrina e a jurisprudência entendem que sim, em determinados casos5. Defende-se, em geral, que a cindibilidade apenas seria possível nas hipóteses em que os negócios jurídicos reunidos no mesmo instrumento não são inter-relacionados, mas apenas justapostos por economia formal6. É o exemplo da escritura de venda e compra de dois ou mais imóveis, ou, ainda, de diversas frações ideais de um mesmo imóvel7. Admitir-se-ia a cisão, também, em títulos judicias como o formal de partilha e as cartas de adjudicação e arrematação englobando múltiplos bens.

Em casos como a compra e venda cumulada com usufruto, ou com pacto de hipoteca, por outro lado, entende-se que a inter-relação entre os negócios jurídicos obstaria o assentamento parcial. Ou seja, embora o título contenha negócios jurídicos distintos, estes seriam indissociáveis, e por isso devem ser registrados simultaneamente.

A discussão sobre a cindibilidade torna-se ainda mais interessante no específico caso da permuta, já que, embora haja dispositivo legal a respeito, sua interpretação está longe de ser uniforme.

De acordo com o art. 187 da LRP, "Em caso de permuta, e pertencendo os imóveis à mesma circunscrição, serão feitos os registros nas matrículas correspondentes, sob um único número de ordem no Protocolo".

Para uma primeira corrente, o dispositivo significaria uma vedação à cindibilidade nas permutas de imóveis situados na mesma circunscrição. Argumenta-se que, nesta hipótese, haveria uma inquebrável correspectividade entre as prestações, impedindo seu ingresso independente no fólio real8.

Uma segunda corrente, contudo, enxerga pretensões mais modestas no art. 187, compreendendo-o como uma regra de técnica de inscrição, orientada por um imperativo de economia, e não uma proibição apta a justificar a negativa do registro.

Tendo em mente a ideia de título como causa do registro, pende-se à adoção do segundo entendimento. Afinal, o que é prenotado é o título, não o negócio jurídico. Sucede que o título é prenotado sob um único número de protocolo independentemente da quantidade de negócios jurídicos que veicula. Mas então, por que uma menção especial para a hipótese de permuta?

Ao que parece, a regra do art. 187 exprime, antes de tudo, um vetor de racionalidade à inscrição. Para entender essa afirmação, cabe dar um passo para trás, retrocedendo ao momento de lavratura da escritura. O tabelião, lavrada a escritura, entregará, naturalmente, os respectivos traslados a ambos os contratantes. E ambos poderão valer-se do respectivo traslado para instar o registro. Isso por que, diferentemente da compra e venda, que implica uma trasladação unilateral (do vendedor para o comprador), a troca implica a transladação recíproca, já que prestação de ambos os contratantes envolve a entrega de uma coisa.

Ora, sendo o mesmo título, no qual se encerram mais de uma transferência, não haveria sentido numa tramitação paralela no Protocolo. Em outros dizeres, o título já contém a permuta de Caio pra Tício e de Tício pra Caio, por isso não precisa ser prenotado duas vezes. Daí uni-los sob a égide de um mesmo número de protocolo.

Parece ser exatamente nessa linha que o art. 187 determina que, havendo requerimento por ambos os interessados ao registro, assumirão o mesmo número de ordem no Protocolo, não por haver uma interconexão desvinculável entre os títulos, mas por se tratar do exato mesmo título, muito embora vocacionado a impactar a situação jurídica de imóveis diversos9.

Levando em consideração a já mencionada analogia entre a compra e venda e a permuta, ainda, é possível contrapor a afirmação de que a impossibilidade de cisão da permuta decorreria da sua própria natureza jurídica. Afinal, a natureza jurídica da permuta é idêntica à da compra e venda, ambos são contratos igualmente sinalagmáticos e onerosos. Ocorre que, nos contratos sinalagmáticos, muito embora uma prestação seja dependente da outra para a manifestação volitiva, depois que tal manifestação é instrumentalizada, não subsiste uma causação entre o ato praticado do pagamento e a transferência. Tanto que o pagamento pode ser pro soluto ou pro solvendo. Sendo assim, por qual razão deve o registrador adentrar no mérito do pagamento na troca e não na compra e venda?

É verdade que, caso um dos contratantes não cumpra sua prestação – que pode consistir não apenas na entrega de coisa imóvel, efetivada pelo registro, mas também na entrega de coisa móvel, efetivada pela tradição, ou até mesmo envolver a eventual complementação em pecúnia – estar-se-ia diante de um enriquecimento ilícito. Mas a figura do enriquecimento ilícito é obrigacional, não seria sequer viável impor sua aferição ao registrador imobiliário. Este deve verificar os elementos essenciais do contrato. O pagamento é questão afeita à execução do contrato, não à sua formação.

O argumento segundo o qual a inter-relação entre as prestações tornaria obrigatório o registro simultâneo no caso da troca perde força ao se considerar que não necessariamente a troca será de um imóvel por outro. Aliás, não só é possível que a prestação de uma das partes envolva bens móveis, como pode até mesmo envolver um bem ainda inexistente, já que a regra do art. 483 também se aplica à permuta10. Se não há qualquer controle sobre as contraprestações não imobiliárias, nem sobre prestações que envolvam coisa futura e, aliás, nem sobre prestações que envolvam imóveis em outras circunscrições, por qual razão impor-se-ia ao interessado uma dificuldade adicional no caso da troca de um imóvel por outro na mesma circunscrição? Qual seria a distinção ontológica entre a permuta de imóveis situados em circunscrições diversas e a permuta de imóveis situados na mesma circunscrição, a justificar a imposição de registro simultâneo para um caso e não para outro?

Não parece, ainda, suficiente o argumento segundo o qual a intenção do legislador era obrigar o registro simultâneo da permuta em todos os casos mas, ciente da impossibilidade fática, contentou-se em reduzir a obrigatoriedade apenas para a troca entre imóveis da mesma circunscrição.

É bom frisar, ainda, que a discussão a respeito da cindibilidade repercute numa questão emolumentar, que não deve ser ignorada. Imagine-se, por exemplo, um instrumento de permuta envolvendo quinze imóveis, sendo que apenas um dos interessados deseja regularizar a situação registrária da parte que lhe diz respeito. Não tendo o requerente condições para arcar com o registro de todas as transferências, ficaria impedido de registrar a sua própria? Não parece razoável denegar, neste caso, o requerimento do interessando visando registrar apenas um ou alguns dos imóveis. Mas, em todo caso, recomenda-se sempre a cautela do registrador em exigir requerimento expresso e escrito pelo interessado.

Sejam felizes e fiquem conosco!

__________

1 O contrato de troca pode envolver dinheiro, desde que não seja a principal prestação de nenhuma das partes, sob o ponto de vista econômico. Neste sentido, cf. Orlando Gomes, Contratos, 26ª ed., Forense, 2008, p. 245: "Deve consistir em 'dinheiro'. Se é outra coisa, o contrato define-se como 'permuta' ou 'troca'. Não se exige, contudo, que seja exclusivamente dinheiro, bastando que constitua a parcela principal. Para se saber se é 'venda' ou 'troca', aplica-se o princípio 'major pars ad se minorem trahit'; venda, se a parte em dinheiro é superior; troca, se é o valor do imóvel".
 
2 L. G. Loureiro, Registros Públicos: teoria e prática, 8ª ed., Salvador, Juspodivm, 2017, p. 577.
 
3 G. Fanti, O Princípio da Cindibilidade dos Títulos e seus Efeitos no Registro de Imóveis, 2006.
 
4 "(...) abdicando-se a Lei dos Registros Públicos de 1.973, no entanto, do sistema transcritivo, a convergência para a matriz já não se perfaz pelo título (em sentido formal), senão que pela causa (título em acepção substantiva). Disso resulta a afirmação da cindibilidade instrumental, que tem sido acolhida pelo E. Conselho Superior da Magistratura, como conseqüência da conjugação do fólio real com a técnica inscritiva." Parecer do Grupo Gilberto Valente.
 
5 "Atualmente o princípio pretoriano da incindibilidade dos títulos, construído sob a égide do anterior sistema registral, já não vigora. Nesse sentido já se posicionou o C. Conselho Superior da Magistratura, conforme, v.g., ap. cível da Comarca de São Paulo, recurso 2.642-0, in DOJ de 24.11.93. Isso porque só aquele sistema da transcrição dos títulos justificaria não se admitisse a cisão do título, para considera-lo apenas no que interessa. Na verdade, com o advento da Lei de Registros Públicos de 1973, e, consequentemente, a introdução do sistema cadastral, que até então não havia no direito registral brasileiro, a cindibilidade do título passou a ser perfeitamente possível e admitida. Com isso, o ato de registro imobiliário deixou de exigir a reprodução textual dos instrumentos recepcionados no fólio real, cumprindo que ele reflita, apenas, aquilo que for possível ter ingresso no cadastro" (CSMSP, Apel. Cível n. 21.841-0/1, j. 20-2-1995).
 
6 CSMSP, Apel. Cível n. 30.109-012, rel. Márcio Martins Bonilha, j. 2-6-1996.
 
7 Neste sentido: CSMSP, Apel. Cível n. 74.960-0/7 “REGISTRO DE IMÓVEIS - Dúvida. Cindibilidade do título. Escritura pública que instrumentaliza diversas compras e vendas de partes ideais. Possibilidade do ingresso de tal título em relação às partes ideais titularizadas pelos condôminos que não as compromissaram a venda.” CSM/SP – Apelação Cível  74.960-0/7. Rel. Des. Luís de Macedo. 15/2/01.
 
8 Nesse sentido, destaca-se a decisão proferida pelo CSMSP na Apel. Cível n. 30.109-012, rel. Márcio Martins Bonilha, j. 2-6-1996: "REGISTRO DE IMÓVEIS – DÚVIDA – PERMUTA DE IMÓVEIS – NECESSIDADE DE REGISTROS SIMULTÂNEOS – ÓBICE RELATIVO À ESPECIALIDADE DE UM DOS IMÓVEIS PERMUTADOS QUE IMPEDEM A EFETIVAÇÃO DOS DEMAIS REGISTROS – REGISTRO INVIÁVEL. No mais, sabido ser a permuta um contrato pelo qual cada uma das partes se obriga a dar uma coisa para haver outra. Embora apresente estreita analogia com a venda e compra, tanto que a Lei Civil determina a aplicação subsidiária de suas regras, é preciso notar que na troca cada uma das duas coisas é contemporaneamente objeto e preço e cada um dos contraentes é contemporaneamente comprador e vendedor. Decorre da própria essência do negócio jurídico da permuta, onde há duas transferências recíprocas e inseparáveis, o preceito do art. 187 da lei 6.015/73. Ingressa o título sob um único número de ordem no Protocolo, com subsequentes registros nas matrículas correspondentes. Tal regra, diga-se, não constitui novidade em nosso direito. Corresponde, grosso modo, ao art. 203 da lei anterior, que, por seu turno, teve inspiração no art. 256 do Regulamento 370 de 1890 e no art. 28 do Regulamento de 1865. Isso porque, na justa observação de VALMIR PONTES, "a transcrição da permuta é de natureza dúplice ou múltipla, conforme o caso, não admitindo a lei apenas o registro de uma das transmissões, ainda que um só dos permutantes requeira o registro. A permuta, como já se observou, nada mais significa que duas vendas recíprocas e simultâneas entre as mesmas partes permutantes, representando o valor de uma das coisas permutadas, o preço ou parte do preço da alienação da outra. Uma vez, portanto, apresentado a registro título de permuta, o ato não se completaria, com prejuízo para uma das partes, se o Oficial tivesse que fazer, a pedido do apresentante, apenas a transcrição de uma das alienações" (Registro de Imóveis, Saraiva, 1982, p. 91). Em termos diversos, dada a indivisibilidade decorrente da interdependência das estipulações existentes na permuta (como sucede, aliás, na venda com hipoteca adjeta), a inscrição há de abranger um e outro direito, não podendo assinalar apenas um deles, postergando o outro com o qual se acha acoplado no título (cfr. Afrânio de Carvalho, Registro de Imóveis, 2a ed., Forense, 1977, p. 376). (...)"
 
9 Esse foi o entendimento consagrado Apel. Cível n. 1004930-06.2015.8.26.0362, j. 22-11-2016, pelo CSMSP: "PERMUTA. REGISTRO. DÚVIDA. IMÓVEIS SITUADOS EM CIRCUNSCRICOES DIVERSAS. POSSIBILIDADE DA INSCRICAO AUTONOMA DE UMA DAS AQUISIÇÕES. Provimento do recurso", e reforçado no voto do relator Manoel de Queiroz Pereira Calças na Apel. Cível 1000311-58.2016.8.26.0019.
 
10 Determina o referido dispositivo: "A compra e venda pode ter por objeto coisa atual ou futura. Neste caso, ficará sem efeito o contrato se esta não vier a existir, salvo se a intenção das partes era de concluir contrato aleatório".  
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Colunista

Vitor Frederico Kümpel é juiz de Direito em São Paulo e doutor em Direito pela USP.