Vitor Frederico Kümpel e Bruno de Ávila Borgarelli
Dentre as importantes novidades da lei 13.465/2017 encontra-se a sensível modificação procedimental da regularização fundiária urbana. Esta, segundo o artigo 10 da lei, envolve tanto a identificação de núcleos urbanos informais que devam ser regularizados quanto a criação de unidades imobiliárias integráveis ao espaço urbano e a constituição de direitos reais em favor de seus ocupantes.
Revoga-se o capítulo III da lei 11.977/2009, que tratava da matéria, para inaugurar-se essa nova tentativa de corrigir o gravíssimo problema fundiário urbano que atinge parcela substancial do Brasil. A Reurb, belo "apelido" da Regularização Fundiária Urbana, "abrange medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais destinadas à incorporação dos núcleos urbanos informais ao ordenamento territorial urbano e à titulação de seus ocupantes", segundo o artigo 9º da lei 13.465/17.
Dentro da noção de Reurb, duas são as espécies: Reurb-S (interesse social) e Reurb-E (interesse específico). Há diversas modificações em relação à lei anterior, como as que dizem respeito à chamada "demarcação urbanística", procedimento que adquiriu novos e importantes contornos, a destacar-se uma maior responsabilidade do município.
O que mais interessa aqui, contudo, é o problema da atribuição de títulos jurídicos aos ocupantes das áreas objeto de Reurb, especialmente quanto a certas dificuldades interpretativas que podem frustrar ou tornar inócuas algumas mudanças.
Para as duas modalidades de Reurb a lei cria a estranha figura da legitimação fundiária (art. 23), um modo de aquisição originária de propriedade independente de tempo e natureza da posse. Há um forte sabor de inconstitucionalidade nessa disposição, cuja afronta ao direito de propriedade já tem sido apontada por autores especializados como um dos grandes defeitos da lei de 20171. Em tempos de bloqueio de bens sem ordem judicial (lei 13.606/2018)2, no entanto, esse tipo de disposição não deveria assustar.
Ao lado desta figura a lei traz a já conhecida legitimação de posse, instituto da lei 11.977/09, que foi mantido, mas modificado em certos aspectos. No artigo 25 da lei 13.465/2017, é definida a legitimação de posse como "ato do poder público destinado a conferir título, por meio do qual fica reconhecida a posse de imóvel objeto da Reurb, com a identificação de seus ocupantes, do tempo da ocupação e da natureza da posse, o qual é conversível em direito real de propriedade, na forma desta Lei".
A conversão em título de propriedade vem tratada no artigo 26, caput:
"Sem prejuízo dos direitos decorrentes do exercício da posse mansa e pacífica no tempo, aquele em cujo favor for expedido título de legitimação de posse, decorrido o prazo de cinco anos de seu registro, terá a conversão automática dele em título de propriedade, desde que atendidos os termos e as condições do art. 183 da Constituição Federal, independentemente de prévia provocação ou prática de ato registral".
Como se vê, expedido o título de legitimação de posse e registrado, o prazo de cinco anos autoriza sua conversão automática em título de propriedade, se estiverem contemplados os requisitos da usucapião especial urbana (artigo 183 da CF/88)3, quais sejam: área de até 250 metros quadrados; posse ininterrupta e sem oposição por cinco anos; utilização para moradia própria ou da família; não ser o beneficiário proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
A primeira parte do artigo 26 deixa claro que a incidência dessa conversão do título de posse em titulo de propriedade após cinco anos de registro dar-se-á "sem prejuízo dos direitos decorrentes da posse mansa e pacifica no tempo". Em outras palavras, estabelece o preceito uma autonomia entre a conversão de título de posse em propriedade e os procedimentos conhecidos de usucapião, para, in fine, vincular a conversão referida aos requisitos da usucapião especial urbana – o que inclui o tempo. Recorde-se que, neste caso, esta conversão é automática.
De todo modo, como o artigo 26, caput fala claramente no transcurso do prazo de cinco anos de registro, extrai-se o entendimento de que esse tempo saneia o título registrado, estabiliza a situação jurídico-registrária, autorizando a conversão automática, independente de provocação. Assim, apesar de a redação não ser das melhores, a primeira parte do caput autoriza o exercício da usucapião independentemente do procedimento descrito posteriormente, se já estiverem atendidas aquelas condições do art. 183 da CF/88.
Seja como for, esses problemas de técnica redacional não se afastam totalmente da situação existente com a lei anterior.
Dificuldades maiores existem com o parágrafo primeiro do artigo 26 da lei 13.465/2017:
"Nos casos não contemplados pelo art. 183 da Constituição Federal, o título de legitimação de posse poderá ser convertido em título de propriedade, desde que satisfeitos os requisitos de usucapião estabelecidos na legislação em vigor, a requerimento do interessado, perante o registro de imóveis competente".
Do modo como está redigido, o preceito pode abrir alguma dúvida sobre a incidência ou não do prazo de cinco anos no caso de título de legitimação de posse emitido em favor de quem faz jus às formas de usucapião diferentes da especial urbana (do art. 183 da Constituição Federal).
Acredita-se haver duas interpretações possíveis. A primeira é a seguinte: tem-se de ater aos requisitos da usucapião, inclusive o prazo, mesmo que não tenham transcorrido cinco anos do registro do título de legitimação de posse, afinal, se o sujeito já consolidou todos os elementos necessários para usucapião (em alguma das modalidades do Código Civil), o escopo legitimador de propriedade já está atendido, não fazendo sentido exigirem-se os cinco anos a mais. Além disso, aqui se exige a manifestação do interessado, sem a conversão automática trazida pelo caput.
A outra interpretação é de que o período de cinco anos indicado no caput é um saneamento do titulo de legitimação de posse emitido pelo poder público e, por isso, deve ser observado ainda que o interessado já tenha cumprido o tempo de alguma das formas de usucapião do CC/02 (justamente o que atrai a incidência do §1º, e não do caput, do artigo 26 da lei 13.465/2017).
Em favor das duas interpretações pode ser invocada a figura da usucapião extrajudicial. Em tese, a anuência do proprietário da área, constante da ata notarial na usucapião administrativa, também existe no bojo da Reurb, que é um procedimento marcado justamente pela ideia de negociação entre agentes diversos (beneficiários, município, proprietários, ocupantes, confrontantes). Desse modo, não seria preciso esperar um prazo suplementar de cinco anos para estabilização do registro do título de legitimação de posse em caso de incidência do artigo 26, §1º da Lei nº 13.465/2017. O que causa estranheza nessa aproximação com a usucapião extrajudicial – e que parece, agora, confirmar a segunda tese – é o fato de a modalidade de usucapião administrativa ser uma espécie delimitada e plena de requisitos, sendo temerário que um artigo de lei introduza um novo procedimento de usucapião extrajudicial sem que essa circunstância seja claramente exposta.
Conclusivamente, crê-se que o ideal é manter a observância do prazo de cinco anos, pois é neste interregno que o Poder Público pode retirar a legitimação concedida. Dessa forma, não haveria sentido fixar esse prazo para aquisição baseada no artigo 183 da CF/88 e não para as outras modalidades de usucapião.
Em outros termos, o prazo é autônomo, desvinculado de outros institutos jurídicos, servindo apenas para estabilizar o título de legitimação de posse. Se o sujeito já tiver cumprido os requisitos da usucapião ordinária ou extraordinária, mas o prazo de cinco anos ainda não houver transcorrido, poderá apenas recorrer ao judiciário em ação própria, ou, ainda, se for o caso, agir administrativamente para levar a cabo a usucapião extrajudicial. Mas, repita-se, estando em curso o prazo de estabilização jurídico-registrária do título emitido, não há que se falar em conversão em propriedade, pois ainda é possível a retirada do título, cuja "limpeza" requer justamente esse tempo.
O que se pode dizer sobre esses preceitos da lei 13.465/2017, como já se disse a respeito de outras figuras, é que sua relevância faz-se acompanhar por deficiências técnicas que podem dificultar, em certa medida, a aplicabilidade. Essa não será, contudo, uma mácula tão grave, se a doutrina desempenhar adequadamente seu papel, discutindo os temas e propondo soluções com a necessária profundidade.
__________
1 CARVALHO PINTO, Victor. A regularização fundiária urbana na lei 13465/2017. Acesso em 2/3/2018.
2 Cf. BORGARELLI, Bruno de Ávila. O primeiro tiro do ano: bloqueio de bens sem autorização judicial. Migalhas, 16/1/2018. Acesso em 2/3/2018.
3 CF/88. Art. 183, caput. "Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinquenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural".