O dinamismo do Direito notarial e Registral – que se alia maravilhosamente à solidez dos seus conceitos fundantes – está à base do sentimento de franca admiração com que, ao cabo de todos os anos, se pode traçar um panorama das medidas, leis e provimentos que atingem esse tão importante ramo jurídico.
E o ano de 2017 não poderia ser diferente.
Período de aplicação de políticas e de mudanças legislativas com foco na superação do estado de crise econômica (cujo auge foi experimentado no biênio passado), as novidades indicam que sim, o Direito Notarial e Registral está em evidência em muitas das frentes importantes para o desenvolvimento do país.
Tomem-se os exemplos mais destacados.
Em 2017 o país conheceu uma discussão profunda – polarizando animados defensores, de um lado, e ferrenhos críticos, de outro – sobre a tecnologia disruptiva do momento: a Blockchain. Anunciada como verdadeira revolução, a Blockchain consiste em uma espécie de livro-razão das transações operadas em um determinado campo . Foi com a criptomoeda bitcoin que o conteúdo mais relevante das transações desse tipo ganhou fama. Como dissemos, "a segurança é sua marca mais atraente: em virtude da forma de disposição dos blocos e inviabilidade de modificação daquilo que "entra" no sistema, a possibilidade de atuação de hackers fica sensivelmente reduzida (obstada mesmo, segundo alguns)"1. Além do potencial adquirido em matéria de segurança e publicidade, parte da comunidade jurídica recebeu com otimismo a perspectiva de ganhos em celeridade e eficiência que poderiam ser aferidos com um sistema de transmissão automática de dados2.
Na tentativa de contribuir para o debate, publicamos textos sobre o assunto, procurando adotar uma posição francamente cautelosa, mas não ao ponto de se classificar como "tecnofóbica". Falta à Blockchain a marca específica da fé pública, o reconhecimento da autenticidade de documentos e informações que o Estado delega aos agentes notariais e registrais. E nossa posição foi clara: "Isso deve continuar sendo assim. Por um motivo simples: dá certo. O Brasil, um país marcado historicamente pela burocracia e pela letargia do serviço público, tem nas notas e registros uma atividade qualificada, célere e segura. Isso se deve, em muito, ao agente humano. O oficial garante a qualidade do serviço. A organização das classes tem dado força ao trabalho. Abrir mão disso não deve estar sequer em cogitação"3. É claro que essa tecnologia poderia auxiliar o serviço, como meio de organização ou até auto-organização de transações, mas isso não implica avalizar certas posições, como a de que a Blockchain operará uma reinvenção do notariado. Como dissemos, "se a qualificação (...) for substituída por uma qualificação cibernética, pode-se chegar a um esvaziamento total do serviço notarial e registral, o que é perigoso em vários sentidos"4.
Tudo isso demonstra a complexidade da interface entre direito e tecnologia, que é um dos principais desafios dos tempos atuais. Tal dificuldade se avoluma ainda mais ao considerarmos o descompasso entre o ritmo alucinante das inovações tecnológicas que inundam a sociedade contemporânea, de um lado, e a lentidão do processo legislativo em corresponder às crescentes demandas sociais decorrentes do progresso tecnológico, de outro. Aliás, como se buscou ressaltar, "regular especificamente os serviços públicos apresenta-se como um desafio ainda maior. Garantir direitos e certa segurança jurídica e, ao mesmo tempo, atualizar a regulação perante as novidades tecnológicas que permeiam as relações sociais e trazer novas necessidades é tarefa dos diversos entes públicos, mas principalmente, do Poder Legislativo"5.
Se por um lado as novas tecnologias abrem espaço para a racionalização de procedimentos e a consequente desburocratização, hoje mais do que nunca é preciso "buscar o (sempre delicado) equilíbrio entre burocracia e segurança, de modo a atender aos fins (sempre sociais) do direito", conforme buscamos frisar na abordagem da difícil questão referente aos bens de ausentes6.
O ano foi farto não apenas em discussões teóricas mas também em efetivas novidades legislativas. Em julho, foi convertida em lei a Medida Provisória 759/2016, criando-se a lei 13.465/2017, que introduziu um importante (mas nem por isso seguro) passo na regularização fundiária no país. Essa lei formalizou as figuras do direito real de laje7, do condomínio de lotes8, do loteamento de acesso controlado9, além de ter estabelecido bases para o registro eletrônico de imóveis; novidades (pequenas, é verdade) para a usucapião coletiva urbana; sistema de numeração única de matrículas (acrescido o art. 235-A à lei 6.015/1973); além de outras importantíssimas modificações10.
Sobre o direito real de laje, muito se disse, mas ainda há muito por dizer. Em texto específico, tentamos qualificar esse novo direito, defendendo que sua estrutura permite classifica-lo como Direito Real sobre coisa própria. Além disso, a lei 13.465/17 aperfeiçoou o traçado dos elementos característicos dessa nova realidade jurídica, ampliando o regramento até então estabelecido pela Medida Provisória 759, ao introduzir os arts. 1.510-A a 1.510-E ao CCB/02. Em face da necessidade de se descerrar matricula própria para o imóvel sobre o qual incide direito de laje, houve modificação na Lei de Registros Públicos, incluindo-se o §9º ao art. 176.
Já o loteamento de acesso controlado foi inserido no ordenamento por meio do acréscimo de um §8º ao art. 2º da lei 6.766/1979: "Constitui loteamento de acesso controlado a modalidade de loteamento, definida nos termos do §1º deste artigo, cujo controle de acesso será regulamentado por ato do poder público Municipal, sendo vedado o impedimento de acesso a pedestres ou a condutores de veículos, não residentes, devidamente identificados ou cadastrados". Também sobre esse tema deixamos reflexões.
Na prática, todos sabem que os chamados "loteamentos fechados" ganharam o país, tendo sido inclusive regulamentados (muitas vezes impropriamente) em diversos municípios. O que se vinha tolerando era o loteamento, com transferência das áreas comuns ao domínio público e posterior cessão de uso aos moradores, os quais se constituíam em associação e "fechavam" a estrutura. O que a lei 13.465/2017 traz como novidade é, em essência, a inviabilidade de um fechamento completo, estabelecendo-se, em vez disso, uma limitação: o controle de acesso. No texto específico sobre o tema, lançamos uma dúvida, para além daquela mais óbvia, que diz respeito à constitucionalidade do preceito: será que, na prática, os moradores não acabarão estabelecendo tantas dificuldades ao acesso de terceiros que o arranjo ficará realmente "fechado"?
Todas essas questões atinentes às novas figuras da lei 13.465/2017 são de suma importância para o direito notarial e registral. Estudos profundos são esperados para 2018.
As novidades, apesar de fartas em matérias de registro de imóveis, não se encerram nesse âmbito. No que diz respeito ao registro civil, importante marco se deu com a edição da lei 13.484, de 26 de setembro de 2017, que, além de sedimentar as alterações implementadas pela Medida Provisória nº 776 do mesmo ano, consagrou a qualificação de "ofícios da cidadania" aos ofícios de registro civil. A nova alcunha, mais que simbólica, foi acompanhada de sensível ampliação do leque se serviços prestados pelos referidos ofícios, que passaram a estar autorizados a prestar "outros serviços remunerados, na forma prevista em convênio, em credenciamento ou em matrícula com órgãos públicos e entidades interessadas" (art. 29, §3º, da lei 6.015/1973).
Além da referida novidade, a lei 13.484, ratificando as modificações implementadas originalmente pela Medida Provisória 776, consagrou a chamada "opção de naturalidade", aparentemente cindindo as noções de naturalidade e "local de nascimento", até então tidas como sinônimos no sistema registral civil brasileiro. A partir da alteração, "além de constar no assento o local de nascimento, deverá também constar a naturalidade, que poderá ser a do próprio local do nascimento ou o Município de residência da mãe, desde que localizado em território nacional, a critério do declarante". Buscamos explicar, na presente coluna, a aparente predileção pelo domicílio da mãe na escolha da dita naturalidade11, ao abordamos, sob a ótica da isonomia constitucional, as diferenças subsistentes na lei 6.015/1973 entre os papeis materno e paterno, notadamente em matéria de registro civil de nascimento12.
Já em novembro (no dia 14), o Conselho Nacional de Justiça editou o Provimento 63/2017, que "Institui modelos únicos de certidão de nascimento, de casamento e de óbito, a serem adotadas pelos ofícios de registro civil das pessoas naturais, e dispõe sobre o reconhecimento voluntário e a averbação da paternidade e maternidade socioafetiva no Livro "A" e sobre o registro de nascimento e emissão da respectiva certidão dos filhos havidos por reprodução assistida".
Esse polêmico provimento dará muito o que falar em 2018. A questão da paternidade socioafetiva ganhou um capítulo muito complexo. Aliás, aparentemente complexo demais para ser objeto de um simples provimento do CNJ. É extremamente necessário que a classe registral produza, escreva, critique e avalie com cautela essa nova disposição, para não acabar efetivando – de maneira imprópria, diga-se – atos que deveriam passar pelo crivo do Poder Legislativo.
A questão da paternidade socioafetiva, além das dificuldades inerentes a toda situação de fato apta a ensejar efeitos jurídicos, traz também à tona o peculiar problema da multiparentalidade, que vêm gerando intermináveis discussões jurídicas e até morais, polarizando não apenas a doutrina e jurisprudência mas a própria sociedade. Tais discussões se redobraram após o expresso posicionamento do Supremo Tribunal Federal, ao final de 2016, no sentido de que a paternidade socioafetiva não exime de responsabilidade o pai biológico13, abrindo margens para interpretações favoráveis à ideia de coexistência de múltiplos vínculos biológicos e socioafetivos14.
Se por um lado cresceram as demandas pelo reconhecimento jurídico de relações concretas de afeto, por outro, a consequente atenuação da linha divisória entre situações formais e informais fez exsurgir uma espécie diametralmente oposta de demandas: os defensores da autonomia privada, que desejam o reconhecimento jurídico da própria vontade autonomamente declarada em detrimento de conclusões extraídas pelos Tribunais em face da situação concreta. Insere-se, nessa discussão, por exemplo, o polêmico "contrato de namoro", concebido com o objetivo de afastar, por meio do consenso entre os envolvidos, a incidência dos efeitos da união estável14. Outro exemplo pode ser identificado no chamado contrato de coparentalidade, destinado a disciplinar a relação entre genitores que, embora não tenham relação afetiva entre si, desejam relacionar-se como pais da criança, convivendo exclusivamente para criá-la16.
Como não poderia deixar de ser, as mencionadas discussões refletem diretamente da atividade do tabelião, já que para este, no papel de oficial incumbido justamente de juridicizar a vontade das partes, é indispensável a certeza quanto aos limites da vontade privada, pois são estes que ditarão a viabilidade dos atos solicitados. Debruçamo-nos sobre essa difícil temática ao tentar delinear uma distinção entre as ideias de autonomia privada e autonomia da vontade, oportunidade em que tentamos responder: "a atividade do notário é administrativa (bloqueio de legitimidade), adotando-se o princípio da legalidade, tal qual na atividade registral? Está o notário sob a parêmia ‘tudo o que a lei não proíbe está permitido’ ou existe controle de legalidade de atos notariais, no sentido não de sua validade, mas como elemento limitador da atuação do tabelião?"17.
O ano foi, como se nota, rico em matéria de direito de família, tanto em razão do nascimento de institutos novos, quanto pela revisão de institutos antigos. Nessa última vertente, destaca-se a corretíssima decisão prolatada pelo STJ, relativa à sobrevivência do instituto da separação no direito brasileiro. Em recurso relatado pela ministra Isabel Gallotti, e posicionando-se contra as vozes que defendem (pelos motivos mais inconsistentes) a extinção desse instituto a partir da EC 66/2010, o tribunal reafirmou o que deveria ser óbvio: a separação não foi abolida pela Constituição, mas apenas suprimida de seu texto, subsistindo incólume na legislação inferior (inclusive no novo Código de Processo Civil, que disciplinou expressamente o instituto)18.
No âmbito do Registro Mercantil, cumpre mencionar a modificação implementada pelo decreto 9.004, de 13 de março de 2017, que, sintomático do reboliço político que permeou a Administração Pública nos últimos tempos, transferiu a Secretaria da Micro e Pequena Empresa (SEMPE) para os quadros do Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços, implicando uma irônica reviravolta no sistema de registro de empresas mercantis brasileiro. Isso porque "a SEMPE, criada justamente para tirar a atribuição de formular políticas referentes às micro e pequenas empresas das mãos do Ministério de desenvolvimento, Indústria e Comercio, foi agora incorporada ao seu sucessor, isto é, ao atual Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços. Nesse curto espaço de tempo, foi extinta, transformada, hipertrofiada, esvaziada, elevada, rebaixada, e tudo para, 3 anos depois, restar subordinada ao órgão que nasceu para substituir (ao menos no que toca às questões pertinentes às micro e pequenas empresas), devolvendo ao seio do Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços a integralidade das questões referentes não apenas às micro e pequenas empresas, mas às questões referentes ao registro mercantil como um todo, que talvez sequer deveriam ter saído de sua alçada"19.
Nas publicações, tivemos o lançamento dos volumes 2, 3 e 4 do Tratado Notarial e Registral, estampado pela editora YK, que traz fartíssima bibliografia e análise minuciosa de todos os temas relevantes para o Tabelionato de Notas (volume 3), o Registro de Pessoas Naturais (volume 2) e, mais recentemente, o volume 4, no qual se tratou do Tabelionato de Protesto, do Tabelionato e Ofício de Registro de Contratos Marítimos, do Ofício de Registro de Distribuição e Distribuidores, do Ofício de Registro Civil das Pessoas Jurídicas e, finalmente, do Ofício de Registro de Títulos e Documentos.
Conclusão
Diante de tantas inovações, pode-se dizer que 2017 foi um ano bastante movimentado para o direito notarial e registral. Essa movimentação, contudo, deu-se fortemente no plano legislativo, em especial com a promulgação da Lei 13.465, em julho deste ano.
O que se espera dos notários e registradores, essa classe que cada vez mais consolida sua importância para o país, é a realização de estudos sérios e aprofundados, que façam de 2018 um ano igualmente profícuo. Aliás, que façam de 2018 um ano ainda melhor: o ano da doutrina notarial e registral.
Sejam felizes!
Feliz 2018!
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1 KÜMPEL, Vitor Frederico; BORGARELLI, Bruno de Ávila. Blockchain e a atividade notarial e registral. Migalhas – Registralhas, 29/8/2017.
2 KÜMPEL, Vitor Frederico. Blockchain: amigo ou inimigo das notas e dos registros? Migalhas – Registralhas, 11/7/2017.
3 KÜMPEL, Vitor Frederico; BORGARELLI, Bruno de Ávila. Blockchain e a atividade notarial e registral...cit.
4 KÜMPEL, Vitor Frederico; BORGARELLI, Bruno de Ávila. Blockchain e a atividade notarial e registral...cit.
5 KÜMPEL, Vitor Frederico; PONGELUPPI, Ana Laura. Regulação e a modernidade: como atuar? Migalhas – Registralhas, 27/6/2017.
6 KÜMPEL, Vitor Frederico; OLCESE, Tomás. Desburocratização e segurança no âmbito dos bens de ausentes. Migalhas – Registralhas, 21/3/2017.
7 KÜMPEL, Vitor Frederico; BORGARELLI, Bruno de Ávila. Algumas reflexões sobre o direito real de laje – Parte I. Migalhas – Registralhas, 12/9/2017.
8 KÜMPEL, Vitor Frederico; BORGARELLI, Bruno de Ávila. A positivação do condomínio de lotes – Mais uma importante novidade da lei 13.465/2017. Migalhas – Registralhas, 10/10/2017.
9 KÜMPEL, Vitor Frederico; BORGARELLI, Bruno de Ávila. Loteamento de acesso controlado: Outra inovação da lei 13.465/2017. Migalhas – Registralhas, 24/10/2017.
10 Cf. OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. Direito real de laje à luz da lei 13.465, de 2017: nova Lei, nova hermenêutica. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, julho 2017 (Texto para discussão 238). p. 2-3.
11 KÜMPEL, Vitor Frederico; VIANA, Giselle de Menezes. A isonomia e o Registro Civil de Nascimento - Parte II. Migalhas 15/8/2017.
12 KÜMPEL, Vitor Frederico; VIANA, Giselle de Menezes. A isonomia e o Registro Civil de Nascimento - Parte I. Migalhas 15/8/2017.
13 Cf. Paternidade socioafetiva não exime de responsabilidade o pai biológico, decide STF. 21/9/2016.
14 KÜMPEL, Vitor Frederico; PONGELUPPI, Ana Laura; BORGARELLI, Bruno de Ávila. Paternidade biológica versus socioafetiva: alguns apontamentos, 7/2/2017.
15 KÜMPEL, Vitor Frederico; FERRARI, Carla Modina. Tratado Notarial e Registral, vol. 2, São Paulo, YK Editora, 2017, p. 968.
16 KÜMPEL, Vitor Frederico; PONGELUPPI, Ana Laura. Coparentalidade, 13/6/2017.
17 KÜMPEL, Vitor Frederico; PONGELUPPI, Ana Laura. Autonomia privada versus autonomia da vontade: a questão na seara notarial. 8/3/2017.
18 KÜMPEL, Vitor Frederico; BORGARELLI, Bruno de Ávila. A decisão do STJ sobre a manutenção do instituto da separação no Direito brasileiro. Migalhas – Registralhas, 4/4/2017.
19 KÜMPEL, Vitor Frederico; VIANA, Giselle de Menezes. Organização do registro de empresas mercantis no Brasil – Parte III. Migalhas 23/5/2017.