Registralhas

Blockchain: amigo ou inimigo das notas e dos registros?

Blockchain: amigo ou inimigo das notas e dos registros?

11/7/2017

É provável que a leitora e o leitor desta coluna já tenha ouvido falar alguma coisa a respeito de blockchain. O que talvez não tenha ciência é de que essa tecnologia está sendo pensada para ser utilizada e adaptada aos chamados 'cartórios', ou seja, a atividade notarial e de registro. O que muitos também já sabem é que o blockchain está intimamente ligado a uma moeda virtual chamada bitcoin, que inclusive ensejou matéria da Revista Veja recentemente.

Em relação a referida tecnologia é possível falar que o mundo atualmente se divide em três tipos de pessoas: os que sabem e talvez já utilizem (e lucrem com!) o blockchain; aqueles que já ouviram falar, sabem da existência, sem saber exatamente do que se trata e muito menos como pode se relacionar com o direito; e aqueles que não tem a mínima ideia do que é isso (até pouquíssimo tempo nos enquadrávamos nesse grupo, que certamente é maioria no mundo).

O presente artigo busca sanar dúvidas, suscitar questões e assim auxiliar os três grupos. Sim, mesmo os do seleto primeiro grupo high tech podem se surpreender com a versatilidade e até mesmo os riscos dessa tecnologia, especialmente em se tratando do seu uso na seara notarial e registral. É, no mínimo, interessante pensar nos "cartórios", estrutura antiquíssima e que desembarcou juntou com a família real - até mesmo antes1 - estar atrelado a uma tecnologia que sequer tem o nome traduzido para o português.

Começando pelo conceito, valemo-nos de um recurso essencial: a tradução ipsis literis da palavra blockchain. Ora, em que pese a provável origem japonesa2 em que não se sabe se o nome do inventor é verdadeiro (a internet tem dessas coisas e não por acaso a tecnologia traz como benefício, ver-se-á adiante, justamente o anonimato), block + chain traduz-se do inglês para o português como cadeia de blocos. Simples, não? O leitor deve estar imaginando algo como uma cadeia de legos, e não está de todo errado, exceto pelo fato de que essas pecinhas são bilhares de códigos, que formam cadeias de chaves e receptores que só leem a mensagem, decodificam, quando a chave é correta.

Agora a explicação passa a se tornar mais complexa e, de fato, não é simples compreender como funciona o sistema de linguagem de programação e o blockchain. Tentemos. De modo extremamente simplificado e até leigo, tudo o que acontece no mundo cibernético apresenta um código, ou melhor, é representado por um código proveniente de alguma das diversas linguagens3. Todo e qualquer comando computacional é feito assim.

Com as transações, por exemplo, as bancárias, realizadas via netbanking, ou mesmo com as criptomoedas, como bitcoin, ocorre exatamente isso. São operações criptografadas, desde a saída do "dinheiro" de uma conta para outra, tudo é cripto-decodificado para que seja seguro e não haja repetições. Valer-se dessa forma é utilizar algoritmos e combinações matemáticas que permitem que cada operação seja única e que não haja fraudes, em tese.

O problema é que via de regra, além do controle por instituições, o que torna as operações em geral centralizadas, é a possibilidade de desfazer a codificação. Por exemplo, quando indevidamente faz-se uma transferência para uma conta equivocada, há como desfazer a transação, "voltando atrás".

Essa possibilidade tornou-se uma brecha no sistema, passível de fraudes por hackers, por exemplo. E neste ponto está o maior diferencial da tecnologia blockchain para outras tecnologias, por buscar evitar fraude e, por via de consequência, evitar o desfazimento dos procedimentos realizados, ou seja, o ato de voltar atrás. Mas como?

A tecnologia permite que cada ato, ou seja, transmissão de qualquer tipo de informação ocorra por meio dessas "cripto-chaves" e, quando efetivada, forma um bloco. Assim que se concretiza, será "validada" por um "minerador". O minerador é a figura que contém um processador que verifica a operação, ademais tem por objetivo efetivar a segurança do sistema. Há milhares de "mineradores" espalhados pelo mundo, e não bastasse, ser um processador, e utilizar algoritmos para a verificação com um mesmo padrão, está interligado em uma cadeia mundial de "mineradores". O primeiro "minerador" que valida a operação tem benefício - normalmente ganha bitcoins, o que não é obrigatório - e quase imediatamente passa para todos os outros "mineradores".

Cada operação acima retratada (de forma simples) se processa em aproximadamente dez minutos, portanto, tempo necessário para atualização do sistema.

Ainda, quando o bloco transacional é formado, gera um código que é quase como um comprovante dessa operação, chamado hash. Até aí, parece um sistema complexo e seguro.

O outro diferencial está - além desse comprovante hash - haver rapidez e transmissão automática dos dados, além do fato de que todos os que estão inseridos no sistema, terem acesso à operação, o que justifica o nome blockchain (cadeia em blocos).

Nas transações netbanking a operação ocorre entre as máquinas dos polos que transacionam, com a posterior verificação pela instituição financeira. O que permite a vulnerabilidade é o fato de que o acesso à operação não se dá pelos blocos, apenas pelos terminais, além do fato das operações serem passíveis de desfazimento. A modificação das operações tem um lado positivo pela possível falha humana, como por exemplo fazer depósito em conta equivocada, mas têm um lado negativo na medida em que vulnera o sistema.

Com a tecnologia blockchain é impossível o desfazimento da transação ou negócio operacionalizado e inserido no sistema, já que além da celeridade, seria necessário alterar cada uma das máquinas, dos participantes da rede, algo impossível e que confere a segurança necessária e até mesmo certa publicidade à operação.

Essa é umas das razões pela qual são conhecidos como ledger, uma espécie de tecnologia livro-razão, uma vez que esse encadeamento perfeito de blocos permite que se verifique cada uma das operações que ocorreu. Ademais, o uso do blockchain admite diversificação quanto à atividade que se quer operar.

O bitcoin é o mais conhecido serviço prestado pelo blockchain. Trata-se de criptomoeda sem um lastro e sem emissão de papel-moeda, havendo uma crescente e abrupta valorização que vem se tornando manchete com bastante frequência (até o momento de finalização deste artigo, 1 (um) bitcoin vale R$ 7955,35).

Mas há inúmeras possibilidades de uso, até mais rebuscadas, como redes industriais, financeiras e até políticas, como Ethereum, uma tecnologia da espécie blockchain mas para redes ainda mais rebuscadas e o Hyperledger, em desenvolvimento, que pretende unificar todas as formas de códigos para o blockchain, criando uma super framework desses blocos que poderá efetivamente ser utilizada em qualquer tipo de atividade.

O princípio dessa tecnologia, para a atividade notarial e registral, é a possibilidade de transmissão de propriedade de forma eficiente, transparente e segura.

Mas o principal é não precisar de uma instituição (financeira) para intermediar a referida transmissão, que é a inovação dessa tecnologia, uma vez que desde o "The Old Lombard Street"4, ou seja, os primeiros bancos ingleses e a tentativa de criar uma moeda, não havia como se pensar em transmissão de valor monetário e de propriedade, sem que em algum momento, ou em alguma etapa, fosse possível dispensar a atuação de instituição financeira.

Nesse sentido, não haveria como não pensar no Registro de Imóveis. Ora, um "livro-razão", com todos os atos consecutivos, conferindo publicidade, transparência e segurança a esse encadeamento de atos: aproxima-se muito de nosso sistema registral e já é uma realidade dos “cartórios” responsáveis pelos "registros da propriedade".

Isto porque, o sistema brasileiro, de título e modo, conta com etapas para que haja a efetiva transferência dominial. Há a escritura pública de compra e venda (título), que deve ser lavrada pelo outorgante e outorgado em um tabelionato de notas, que é quem confere fé pública essencial ao negócio jurídico. Nesse momento, a transação imobiliária está formalizada, sem contudo ter ocorrido a transferência dominial. O blockchain pode auxiliar bastante, nesta etapa, vez que essa validação da escritura pode ser realizada com seu auxílio. O tabelião de notas atuará como o "minerador" de que falamos acima, recebe os emolumentos e faz uso da criptografia - que conferirá muito mais segurança - pode passar para todos os outros tabeliães, evitando qualquer fraude.

Os que se posicionam contra o uso da tecnologia na atividade, afirmam que a possibilidade de anonimato do blockchain pode ser um risco da aplicação dessa tecnologia.

Uma vez lavrada a escritura e inserida no sistema ou ainda sendo a escritura lavrada pelo sistema, haverá uma validação, a chave privada irá decodificar o ato ou negócio jurídico e gerará o comprovante hash, de uso exclusivo, no caso, pelos tabeliães de notas.

Ora, apesar de formalizar o negócio, há o modo, ou seja, necessário o registro desta propriedade. Leva-se a escritura lavrada ao Oficial de Registro de Imóveis para que, na matrícula, do referido bem seja feito o registro. Aqui as possibilidades são diversas: há quem defenda um blockchain único para todo país, de forma que o ato do tabelião já poderia realizar o registro. O Instituto de Registradores (IRIB) defende uma tecnologia, um blockchain para registradores, com os oficiais sendo esses "mineradores", o que tiraria a automacidade do procedimento, todas questões a serem debatidas.

Alguns países já vêm adotando a tecnologia. Os EUA já demonstram interesse e há quem defenda, como no Brasil, o fim dos notaries, dos oficiais registradores, em razão do uso do blockchain como uma superrede. A Estônia também já conta com um portal em que registro de nascimento, propriedade, contratos utiliza essa tecnologia.

Nesta coluna, de forma muito rápida e singela foi apresentada a tecnologia. Em outra oportunidade debateremos a viabilidade ou não da aplicação do sistema para a atividade notarial e registral. Tudo deve ser visto com muita prudência, já que existe uma ordem constitucional vigente e que precisa ser respeitada. Não se negue a necessidade da adoção de tecnologias e a prestação de um melhor serviço, célere e eficiente. Porém o direito não é uma ciência de fim, é uma ciência de meio. Não é possível justificar a necessidade de uso tecnológico atropelando princípios e paradigmas constitucionais. Mais do que qualquer coisa, parece faltar ao século XXI prudência e discernimento em algo tão essencial como propriedade, o maior direito subjetivo e que melhor garante dignidade sob o viés individual.

Sejam felizes, até o próximo Registralhas!

__________

1 V. F. Kümpel, C. M. Ferrari, Tratado Notarial e Registral - Tabelionato de Notas, v. 3, São Paulo, YK Editora.

2 Tudo o que você queria saber sobre blockchain e tinha receio de perguntar.

3 Como exemplos, há em C, R, variações dessas, Java, Swift.

4 Cf. W. Bagehot, Lombard Street, 1873.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Colunista

Vitor Frederico Kümpel é juiz de Direito em São Paulo e doutor em Direito pela USP.