Vitor Frederico Kümpel, Ana Laura Pongeluppi e Bruno de Ávila Borgarelli
A ideia de família mudou tanto em tão pouco tempo que é muito difícil dar um conceito que abarque todas as categorias jurídicas possíveis, tanto que a doutrina tem reiterado que são pessoas ligadas por afeto.
O afeto é uma palavra tão vaga que algumas pessoas nutrem o "referido sentimento" por toda a humanidade, daí a ideia de família global. Na medida em que o mundo inteiro possa estar unido em um único vínculo familiar, a noção histórica de família parece ter morrido e sido sepultada. Aliás, não se sabe se afeto é valor, princípio, sentimento, afeição, ou outra ideia qualquer. Pode denotar algo profundo e pessoal ou algo distante e impessoal. Deixando essas questões de lado, continuemos.
A ideia antiga de família, para não falar histórica, era a de pessoas ligadas por um tronco ancestral comum. A ideia da ancestralidade e da consanguinidade eram essenciais para qualquer conceito de família, principalmente no que toca à ideia de parentalidade, deixando de lado as entidades familiares em si que não são objeto deste trabalho.
No centro do vínculo de parentalidade está a maternidade e a paternidade, ou seja, pessoas unidas em linha reta e primeiro grau. É vínculo jurídico de extrema relevância, tanto que condiciona a família monoparental do art. 226, §4º da Constituição Federal. Doravante, ao longo do trabalho usar-se-á a palavra paternidade como gênero, abarcando ambas as figuras.
A paternidade ou maternidade pode ser biológica ou socioafetiva. A primeira é a decorrente de filiação sanguínea, advinda da procriação. A segunda não necessariamente conta com esse vínculo biológico: é-lhe subjacente, na verdade, uma firme relação de "afeto", em que os sujeitos assumem as posições de pai e filho.
O vínculo jurídico decorrente da paternidade é correspectivo, ou seja, pai e filho assumem reciprocamente direitos e obrigações de ordem econômica, de ordem estritamente jurídica e de ordem moral, entre outras categorias.
Exemplo simples está na obrigação do pai em relação ao desenvolvimento integral do seu filho enquanto criança, adolescente ou jovem (art. 226, caput/CF) e a mesma obrigação do filho em relação ao pai idoso (art. 230, caput/CF).
A paternidade biológica, nem precisaria ser dito, está estribada na ideia genética e sempre teve ao longo da história forte conteúdo moral e espiritual. Não menos importante está a paternidade socioafetiva que se funda no conceito de “posse de estado de filho”, abarcando desde das relações eminentemente fáticas até todas aquelas não decorrentes puramente do fator genético.
A questão é tão complexa que o Supremo Tribunal Federal recentemente não chegou a um consenso sobre qual das paternidades é preponderante. Três teses se firmaram:
a) A paternidade biológica é a principal e a afetiva, subsidiária;
b) A paternidade afetiva é a principal e a biológica, subsidiária;
c) Ambas são absolutamente idênticas.
Ninguém duvida de que o melhor dos mundos é que houvesse uma paternidade biológico-afetiva, ou seja, o filho gerado pelo pai e pela mãe fosse aquele que gozasse do verdadeiro afeto, ou amor na plenitude dessa palavra. Aliás, repare que dificilmente um texto jurídico usa a palavra amor, de tão mitológica que essa palavra se tornou.
Algumas questões merecem reflexão, principalmente no trato realidade e aparência. Há vínculos de parentalidade biológica real ou aparente e há vínculo de parentalidade afetiva real ou aparente. Partindo do paradigma da origem genética, apenas com o propósito de se estabelecer um referencial, a parentalidade biológica-real é aquela em que existe uma união genética pai-filho e com o ato de reconhecimento ganha juridicidade, tornando-se também aparente quando ambas as partes assumem os compromissos decorrentes dessa relação, de ordem jurídica, moral, afetiva, social, entre outras.
A parentalidade afetiva-real tem que ser sempre a aparente, na medida em que não há a origem biológica. Só há afeto sob o ponto de vista jurídico, quando a partir do reconhecimento as partes assumem compromissos de ordem jurídica, moral, afetiva, tal qual a paternidade biológica.
Observe que neste texto a aparência não é a antítese da realidade. A aparência é a confirmação da realidade. Só é possível falar em princípio da isonomia quando há perfeita correlação aparência-realidade tanto na paternidade biológica quanto na afetiva. Sem a assunção de compromissos íntimos não é possível alcançar a plenitude também chamada de isonomia material. Todo o resto é retórico.
A posse de estado de filho, no seu sentido pleno, é exatamente a situação em que a aparência passa a ser a causa da realidade. Lembrando que a realidade é a paternidade a partir do seu reconhecimento e a aparência é a concretização de todos os valores e princípios da relação pai e filho, o vínculo pode tanto ter origem na relação realidade-aparência, como no caso do pai que acompanha o nascimento de seu filho já na maternidade, quanto no viés aparência-realidade na hipótese do companheiro ou marido da mulher assumir e amar o filho já existente e que venha a ter contato ao longo da vida da criança.
A posse de estado de filho, repise-se, não foi acolhida em lei de forma expressa, mas a doutrina lhe assinala três elementos, a verificar para aferir-se sua existência: "(a) Tractatus - quando o filho é tratado como tal, criado, educado e apresentado como filho pelo pai e pela mãe; (b) Nominatio - quando usa o nome da família e assim se apresenta; e (c) Reputatio - quando conhecido pela opinião pública como pertencente à família de seus pais"1.
Observe que os três elementos fundamentais reputatio, tractatus e nominatio nada mais são do que aparência de paternidade-filiação que ou tem por substrato a própria paternidade-filiação, ou levará a ela.
A par dessa mínima base doutrinaria, é forçoso descer à legislação vigente e verificar a possível 'porta de entrada' para essa paternidade.
Pois bem. Acredita-se que a possibilidade do reconhecimento legal da paternidade socioafetiva está no art. 1.593 do CCB/02, quando menciona que "o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem".
Essa hipótese não existia no Código Civil de 1916 que estabelecia a exclusividade do matrimônio na constituição da família. Impedia sua dissolução, fazia distinções entre seus membros e trazia qualificações diferenciadas para as pessoas unidas sem casamento e aos filhos havidos dessas relações.
O texto do art. 1.593 da atual codificação permite resguardar a paternidade socioafetiva, crê-se. Não será valido argumentar com a ausência de intenção do legislador. A lei estabelece sua ordem, despregada da vontade de quem a instituiu, conforme ensina Pontes de Miranda2.
Vista essa abertura legislativa à filiação socioafetiva, é preciso classifica-la:
a) filiação afetiva na adoção judicial: ato de vontade e ato jurídico, exteriorizado em um contrato ou julgamento, servindo como prova;
b) filiação sociológica do filho de criação: mesmo não havendo vínculo biológico ou jurídico (adoção), alguém educa uma criança por mera opção, abrigando-o em um lar;
c) filiação afetiva na adoção à brasileira: prática consistente em registrar filho biológico de outrem como próprio, descabendo, em tese, a ulterior pretensão anulatória do registro de nascimento;
d) filiação eudemonista no reconhecimento voluntário e judicial da paternidade e da maternidade: alguém comparece no Ofício de Registro Civil, de forma livre e espontânea, solicitando o registro de alguém como seu filho, não necessitando de qualquer comprovação genética3.
Nas filiações socioafetivas tem-se, para além da formação de vínculos afetivos, a inexistência de vicio de consentimento por quem realiza o ato. Nos demais casos o requisito é apenas a formação de vínculos afetivos e tratamento paternal dispensado a criança.
Cumpre salientar que esses requisitos foram reconhecidos na V Jornada de Direito Civil, realizada pelo Conselho da Justiça Federal em 2011, enunciados 519 e 5204.
Uma vez tratada a questão da paternidade biológica e afetiva, real e aparente, passa-se a correlacionar com a figura da multiparentalidade. É a possibilidade de figurarem dois ou mais pais e/ou mães em conjunto em um único assento.
Muito embora a doutrina tenha recebido com aplausos o "novo instituto" em questão, não é possível deixar de verificar uma série de questões problemáticas.
Em primeiro lugar, inegável a ruptura com o art. 227, §6º/CF. Como é possível falar em isonomia material e ausência de discriminem na medida em que parte dos assentos registrais conta com um pai e uma mãe e outros assentos podem contar com dois ou três pais e uma mãe? Onde está a isonomia neste caso?
Criou-se uma nova categoria jurídica, o da subpaternidade e o da superpaternidade. A subpaternidade é a situação jurídica em que o titular não tem pai no assento, situação recorrente e que há os esforços vinham sendo para diminuir a referida situação. Não bastasse esse quadro criou-se agora a figura da superpaternidade em que em um determinado assento existam dois ou mais pais em conjunto. Por que a luta não se limitou em se estabelecer a paternidade?
Aqui o instituto que ora se apresenta como multiparentalidade ou superpaternidade, conforme observar-se-á não traz a proteção que se espera, implicando numa série de problemas.
A despeito das vantagens e da necessidade de o sistema amoldar-se ao novo modelo familiar, não há como negar que também surgem diversas questões oriundas desse novo modelo familiar e da multiparentalidade especialmente quando da questão patrimonial, como no caso da sucessão.
Com mais de quatro milhões de filhos5 sem o nome do pai biológico no registro de nascimento, não deve causar espanto a formação de laços afetivos com padrastos, por exemplo. E é aí que se verifica a problemática: caracterizada a paternidade socioafetiva, quando da sucessão, o filho é herdeiro necessário de qual dos pais?
O Supremo Tribunal Federal, em decisão recentíssima, decidiu que a paternidade socioafetiva não exime a responsabilidade o pai biológico6. Esse decisum aponta para uma nova tendência acerca dos efeitos da multiparentalidade.
A tese estabelecida na repercussão geral 622 do STF, que reconheceu juridicamente a paternidade socioafetividade e a equiparou à biológica, além de estar em consonância com o modelo de família atual e a multiparentalidade, adequou ao ordenamento e aos preceitos constitucionais, como a igualdade entre os filhos.
Em que pese, como dito, a "evolução" jurisprudencial da principal Corte quando do entendimento pela multiparentalidade e pelo reconhecimento da família com vínculos de afinidade, a decisão supracitada pela paternidade biológica traz à tona a primeira inconsistência do sistema. E mais: a insegurança jurídica quanto aos vínculos obrigacionais na averiguação das partes que compõem essas relações, já naturalmente permeadas por complexidade.
E é nesse ponto que a isonomia passa a ser preterida pelo sistema. No caso da superpartenidade, torna-se aquele que tem pai ou mãe socioafetivo um privilegiado que pode optar ou até mesmo cumular a herança de seus pais? Ainda, com o sobrepeso do prefixo de pluriparental, permitindo que adentrem na esfera jurídica as mais diversas situações, como regular essa situação? No lado oposto à essa situação, remanesce a questão dos filhos abandonados, a dita subpaternidade, sem que haja no sistema um resguardo efetivo à sua situação.
Por fim, cabe pontuar que pode haver uma fragmentação excessiva de bens com o reconhecimento simultâneo de vínculos biológicos e socioafetivos, que para além do empobrecimento distributivo, gera insegurança as relações e para os próprios sujeitos de direito, sem deixar de salientar o já pontuado problema da 'paternidade desigual', com a sub e a superpaternidade.
Ainda, na medida em que a multiparentalidade ganha corpo, as partilhas tornar-se-ão cada vez mais complexas, morosas, atravancando a circulação de riqueza, principalmente porque participarão pessoas que não guardaram entre si nenhum laço de afeto.
Resta aguardar as próximas decisões e esperar que em 2017 as consequências a longo prazo e que os Tribunais analisem os diversos aspectos, especialmente o econômico, considerando ainda a situação do país.
Muita alegria e até o próximo Registralhas!
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1 LÔBO, apud DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. – 3.ed. ver. atual. e ampl. – São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 306 e 307
2 Tratado de direito privado, São Paulo, 2012, t. 1. Prefácio, p. 13.
3 JATOBÁ, Clever. Filiação Socioafetiva: os novos paradigmas de filiação. Disponível em:
4 Enunciado 519: Art. 1.593. O reconhecimento judicial do vínculo de parentesco em virtude de socioafetividade deve ocorrer a partir da relação entre pai(s) e filho(s), com base na posse do estado de filho, para que produza efeitos pessoais e patrimoniais. "Enunciado 520: Art. 1.601. O conhecimento da ausência de vínculo biológico e a posse de estado de filho obstam a contestação da paternidade presumida."
5 Quatro milhões de brasileiros não têm o nome do pai no registro.
6 Paternidade socioafetiva não exime de responsabilidade o pai biológico, decide STF.