Vitor Frederico Kümpel, Thales Ferri Schoedl e Bruno de Ávila Borgarelli
Introdução
Na última coluna1 deste prestigioso rotativo foram tecidas considerações introdutórias (de ordem jurídico-penal) a respeito do mais recente problema envolvendo o famoso caso Eliza Samudio. Nesta segunda parte da série de três colunas, far-se-ão observações sobre a relação entre o reconhecimento de óbito no âmbito civil e sua (possível) influência sobre o juízo criminal.
I. Certidão de Óbito
Termo ad quem da personalidade, a morte é um fato jurídico que gera a imediata cessação da personalidade: a pessoa deixa de existir (art. 6º CCB/02)2, e já não pode titularizar nenhuma posição jurídica3. Todo o conjunto de relações de direito onde o de cujus se encontrava passa, no exato momento da morte, por uma reconfiguração: haverá extinção dos direitos da personalidade e imediata transmissão patrimonial. Abre-se de pronto a sucessão, transmitindo-se aos herdeiros a herança, posto esteja ainda indivisa, pendentes o inventário e a partilha de bens.
A grande relevância desse fato jurídico exige sua formalização e publicização.
Compete ao Ministério da Saúde regular a emissão do primeiro documento oficial após a morte, chamado Declaração de Óbito (DO). Este documento é preenchido por um médico, ou, se for o caso, por um legista, ou ainda, em algumas situações, pelo próprio Oficial de Registro Civil4. Uma vez emitida a "DO", o Oficial de Registro está autorizado a lavrar o assento e a emitir a certidão, sendo então possível o sepultamento.
Se não houver cadáver, obviamente não será emitida a "DO" e, por igual, sem esse documento, não haverá assento (lançamento no livro), nem certidão.
Nesse caso (ausência de cadáver), estar-se-á diante de morte presumida com ausência (arts. 22 a 39 do Código Civil) ou morte presumida sem ausência com elevada probabilidade da morte (art. 7º do Código Civil) ou morte presumida sem ausência com absoluta certeza da morte (art. 88 da Lei dos Registros Públicos – justificação de óbito). Deve-se observar um pouco mais atentamente essas situações, até para análise do desfecho deste trabalho na última coluna de série.
II. Ausência, morte presumida e justificação de óbito
Há hipóteses em que a pessoa desaparece de seu domicílio sem dar notícias. É caso de ausência, que atrai a incidência dos arts. 22 a 39 do CCB/02. Desaparecida a pessoa, é preciso que o juízo declare a ausência e institua curadoria para os bens. No Registro Civil, a sentença que declara ausência será registrada no Livro "E", em que são assentadas situações transitórias.
Uma vez declarada a ausência e procedida sua transcrição no Livro "E", são meramente arrecadados os bens e praticados atos conservativos, expedindo-se editais no primeiro ano da declaração visando chamar o ausente a fim de que o mesmo retorne ao lar. Encerrada essa primeira fase, é feito o pedido e dada a sentença de abertura da sucessão provisória, ocasião em que há investidura possessória dos bens por parte dos herdeiros, aguardando-se por dez anos o retorno do desaparecido.
Passado esse prazo, é feito pedido de abertura da sucessão definitiva, quando é lavrada uma nova sentença e, com o seu trânsito em julgado, passa a haver propriedade resolúvel dos bens do desaparecido para seus herdeiros, aguardando-se então mais dez anos para a consumação da ausência. É fácil observar que se exigem cerca de vinte e cinco anos para a transmissão efetiva dos bens do desaparecido para os seus herdeiros.
Também existe morte presumida, independentemente de decretação de ausência, nas hipóteses do art. 7º do CCB/02: altamente provável a morte de quem estava em perigo de vida ou pessoa que desaparece em campanha ou é feita prisioneira, não sendo encontrada em até dois anos após o fim do conflito. Não há certeza absoluta da morte, havendo, porém, elevada probabilidade. É o caso da catástrofe em que parte das pessoas sobrevive e parte morre, como no caso de um tsunami.
A hipótese do art. 7º é chamada de declaração de morte, devendo ser lavrado um assento no Livro "E", tal qual a ausência. A confusão antes existente foi superada, pelo menos em São Paulo, pela edição do Provimento n. 13/2014, da Corregedoria Geral da Justiça de SP, que alterou as Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo, acrescentando-lhes um subitem para indicar que o procedimento de registro da morte presumida deve seguir a mesma sorte da ausência.
A vantagem, se é possível usar essa expressão, no caso da declaração de morte, é que há um encurtamento no processo de ausência em pelo menos dez anos, já que da fase arrecadatória passa-se para a abertura de sucessão definitiva, sem necessidade de sucessão provisória (art. 8º do Código Civil). Ainda assim, não é possível lavrar o assento de óbito no livro "C", o que significaria reconhecer que houve morte certa.
No caso de justificação de óbito, de acordo com o art. 88 da LRP, muito embora não haja cadáver, há certeza "absoluta" da morte. Pense-se no caso de catástrofes aéreas onde não há sobreviventes, mas o reconhecimento de corpos não é possível. Basta a prova de que a pessoa está no evento para garantir a lavratura do assento de óbito no livro "C", ocasião em que a pessoa será reconhecida como morta, com transmissão imediata de bens a herdeiros legítimos ou testamentários (art. 1.784/CCB).
Percebe-se que a situação que atrai a incidência do art. 88 da Lei 6.015/73 é consideravelmente mais gravosa que aquelas descritas nos incisos do art. 7º do Código Civil. Há quem afirme, contudo, que ambas as "mortes" são iguais, isto é, que as hipóteses do art. 7º do CC/02 e do art. 88 da LRP seriam exatamente as mesmas5.
Respeitada a opinião contrária, repita-se aqui com rigor: são situações distintas6. Morte presumida é morte altamente provável; morte do procedimento de justificação é morte dotada de certeza absoluta. Essa conclusão é facilmente obtida pela leitura do art. 7º, no seu parágrafo único/CC. A própria dicção do dispositivo ora mencionado diz claramente "depois de esgotadas as buscas e averiguações", de sorte que se são necessárias buscas e averiguações, é porque não há certeza absoluta da morte, não sendo possível a lavratura de um assento de óbito, o que implicaria em imediato perdimento de bens por parte do desaparecido.
A tragédia com o avião da TAM, em 2007, por exemplo, implica em justificação do óbito: desde que se comprove que a pessoa estava no avião, mesmo que sem identificação dos corpos, tem-se morte dotada de certeza, e não mera presunção7.
As dificuldades registrarias envolvidas no caso Eliza Samudio serão o tema da próxima coluna, procurando-se compreender qual foi exatamente o procedimento observado nessa situação. Tudo, adiante-se já, com base na certidão de óbito divulgada pela imprensa.
Para agora, é importante atacar o tema da influência do reconhecimento do óbito no âmbito civil – e, assim, do assento e certidão – sobre o juízo penal.
III. O reconhecimento civil do óbito e sua possível influência sobre o juízo penal
É necessário ou não o reconhecimento do óbito sob o crivo civil para fins de persecução penal? Há prejudicialidade, ou é possível a condenação criminal mesmo sem o reconhecimento da morte real ou presumida pelo Ofício Registral?
Um dos aspectos derivados dessa questão, e que precisa ser observado, diz respeito à possibilidade de o júri sofrer alguma influência diante da inexistência de um assento e certidão de óbito da pretensa vítima
Como se sabe, para os jurados, ao contrário do juiz de Direito, aplica-se o princípio da íntima convicção ou da certeza moral do juiz, segundo o qual é possível julgar-se de acordo com a convicção, sem necessidade de fundamentar a decisão: aos jurados, basta responder "sim" ou "não" aos quesitos formulados (CPP, arts. 482 a 491).
Os jurados, apesar disso, assim como os juízes de Direito, podem apreciar livremente as provas apresentadas pela Acusação e Defesa, não havendo nenhuma hierarquia entre os diversos meios de prova, aplicando-se, da mesma forma, os arts. 155, 158 e 167, do Código de Processo Penal (já examinados no artigo anterior).
A suposta possibilidade de os jurados sofrerem algum temor ou insegurança diante da possibilidade de condenarem alguém sem uma prova direta – no caso em análise, sem o laudo necroscópico e a certidão de óbito – não parece real.
Duas são as razões para esse entendimento:
i) Até mesmo um juiz de Direito, num caso semelhante (por exemplo, de latrocínio), poderia sentir alguma insegurança para proferir a condenação. Mas, assim como os jurados, ele deve avaliar as provas apresentadas em seu conjunto, com especial atenção aos depoimentos das testemunhas e aos indícios;
ii) A ideia de que todos os jurados são pessoas despreparadas e facilmente influenciáveis pelo "teatro" produzido por Acusação e Defesa deve ser desmistificada. Ainda que, via de regra, os jurados não sejam profissionais do Direito, isso não impede que avaliem a prova de maneira imparcial, aplicando o conhecimento científico e a experiência prática que cada um deles adquiriu ao longo da vida.
De maneira mais singela, pode-se afirmar que tanto os jurados como os juízes de Direito estão submetidos às intercorrências processuais, de molde a existir o duplo grau de jurisdição e todos os recursos necessários a garantir o devido processo legal.
Especificamente no caso Eliza Samudio, os julgamentos com base em depoimentos de testemunhas e indícios obedeceram plenamente ao disposto nos arts. 155, 158 e 167, do Código de Processo Penal, sem que se possa falar em nulidade, eis que inaplicável o disposto no art. 564, inciso III, letra "b", do CPP.
Embora esta análise não tenha por objeto os autos do processo-crime, mas tão somente as informações obtidas por notícias na imprensa – as quais, por razões óbvias, devem ser sempre recebidas com cautela, ante a dificuldade técnica dos debates jurídicos –, é de se reconhecer a plena possibilidade de comprovação do homicídio com base nos depoimentos de testemunhas e nos indícios, estes assim definidos no art. 239 do Código de Processo Penal: "Considera-se indício a circunstância conhecida e provada, que, tendo relação com o fato, autoriza, por indução, concluir-se a existência de outra ou outras circunstâncias" (grifou-se).
Para Frederico Marques, o indício possui natureza jurídica de prova indireta, pois "deriva da demonstração de um fato que não compõe o thema probandum, mas que abre caminho para se chegar a este"8.
Portanto, no âmbito processual penal, é desnecessário tanto o laudo necroscópico como a certidão de óbito para a comprovação do homicídio, sempre que houverem desaparecido os vestígios do delito, podendo os jurados apreciar livremente outras provas apresentadas pelas partes, desde que presente a indispensável prova testemunhal (CPP, art. 167).
Quanto ao caso Eliza Samudio, será errôneo, pois, considerar a necessidade de um instrumental rigoroso no âmbito civil para integrar o acervo probatório penal, quanto ao óbito.
Mas, isso não encerra as dificuldades desse "novo capítulo" da história. Veja-se: o fato de a certidão não ser necessária para o juízo penal não quer dizer que esse juízo deva rejeitar a certidão como prova. Não se pode negar que, na situação concreta, o julgamento do ex-goleiro Bruno foi em muito baseado na apresentação da certidão de óbito de Eliza Samudio. Isso poderá ser levado em conta pelos Desembargadores do Tribunal de MG ao apreciar o recurso?
Em vista da relevância dessa questão, seu deslinde ficará para a próxima coluna.
IV. Conclusão
Como se pretendeu deixar claro, variadas são as hipóteses de recepção registral do fato jurídico morte, devido à diversidade de circunstâncias que envolvem esse fenômeno, agravadas, muitas vezes, pela inexistência de um cadáver.
Quanto ao aspecto penal, afirmou-se não existir a priori uma influência considerável do assento e da certidão de óbito para o reconhecimento de homicídio no âmbito criminal, já que as provas a produzir são variadas e a principiologia reitora da atuação do júri é toda condizente com a apreciação livre.
O que fica para a próxima coluna são aspectos mais delicados, tanto do ponto de vista civil-registral quanto do ponto de vista penal. Notadamente, quanto ao primeiro, será preciso compreender como foi feito o registro do óbito de Eliza e, no aspecto penal, qual seria a correta decisão a ser tomada pelos julgadores do TJ/MG, em face da lei e da doutrina.
Sejam felizes, até lá!
Referências bibliográficas
ALVARES, Luis Ramon, Morte presumida, justificação do óbito e o registro civil das pessoas naturais, Migalhas 6/4/2014. Acesso em 21-10-2016.
ASCENSÃO, José de Oliveira, Direito Civil. Teoria Geral, Introdução – As Pessoas. Os Bens. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, v. 1.
CHINELLATO, Silmara, Comentário ao art. 7º, in Costa Machado (Org.) e S. Chinellato (Coord.), Código Civil Interpretado, 3 ed., São Paulo: Manole, 2010.
MARQUES, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal. 1 ed. 2ª tiragem. Campinas: Bookseller, 1998, v. 2.
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2 CC/02. Art. 6º. "A existência da pessoa natural termina com a morte; presume-se esta, quanto aos ausentes, nos casos em que a lei autoriza a abertura de sucessão definitiva".
3 Cfr. J. Ascensão, Direito Civil. Teoria Geral, Introdução – As Pessoas. Os Bens. 3. ed. São Paulo, Saraiva, 2010, v. 1, p. 47.
4 Portaria 116, de 11 de fevereiro de 2009, do Ministério da Saúde (Secretaria de Vigilância em Saúde). Acesso em 20/10/2016.
5 S. Chinellato, Comentário ao art. 7º, in Costa Machado (Org.) e S. Chinellato (Coord.), Código Civil Interpretado, 3.ed., São Paulo, Manole, 2010, p. 35-36.
6 Nesse sentido, v. a didática explicação de L. R. Alvares, Morte presumida, justificação do óbito e o registro civil das pessoas naturais, in Migalhas 6/4/2014. Acesso em 21-10-2016.
7 É um dos bons exemplos utilizados por L. R. Alvares, op. cit.
8 Elementos de Direito Processual Penal. 1 ed. 2ª tiragem. Campinas: Bookseller, 1998, v. 2., p. 344