Registralhas

Aspectos registrais do contrato de locação não residencial de imóvel com prévia aquisição, construção ou substancial reforma por parte do locador ou de terceiros (built to suit) – Parte II

Os requisitos de registrabilidade do contrato de locação não residencial de imóvel urbano.

4/10/2016

Vitor Frederico Kümpel e Tomás Olcese

Continuamos, nesta coluna, a análise dos requisitos de registrabilidade do contrato de locação não residencial de imóvel urbano que, de acordo com especificações fornecidas pelo locatário, tenha sido adquirido, construído ou substancialmente reformado por parte do locador ou de terceiros, também conhecido como built to suit.

Nosso estudo, desta vez, procurará estabelecer com maior clareza a natureza do instituto no que diz respeito ao critério de tipicidade, de modo a determinar se o contrato built to suit pode ou não ser registrado (registro em sentido estrito) a fim de assegurar a vigência e efetivação de todos os efeitos do contrato em caso de alienação do imóvel, nos moldes do art. 8º da Lei do Inquilinato1, a fim de proteger um investidor diante de terceiros.

A tipicidade de um negócio jurídico – categoria que, naturalmente, engloba o contrato – decorre da sua adequação a uma estrutura lógico-jurídica abstrata e pré-determinada, normalmente encontrada na lei. Nesse sentido, a doutrina civilista italiana faz uma distinção entre a tipicidade legal e a social. A primeira refere-se ao negócio cuja estrutura vem expressamente disciplinada na lei (como é o caso dos contratos típicos regulamentados na parte especial do Código Civil), enquanto a segunda tem por base um modelo normativo definido a partir da praxe e dos usos sociais2.

Nessa ordem de ideias, a atipicidade de um negócio jurídico não se deve às particularidades do seu objeto ou à menor frequência estatística com que é celebrado, e sim exclusivamente à não coincidência da sua causa3 – entendida, no presente contexto, como escopo, função econômico-social ou mesmo função econômico-individual do negócio jurídico – com aquela prevista no ordenamento jurídico positivo4. Tampouco se confunde a causa do negócio jurídico com as motivações das partes, que são as razões individuais ou as circunstâncias objetivas que induzem os sujeitos a celebrarem um determinado negócio5.

No ordenamento jurídico brasileiro, a validade e efetividade dos contratos atípicos está amparada pelo art. 425 do Código Civil, segundo o qual é lícito às partes estipular contratos atípicos, desde que observadas as normas e princípios gerais da codificação.

No Brasil, o contrato built to suit é tendencialmente classificado como um contrato atípico misto. Considera-se atípico porque é um acordo de vontades cuja regulamentação positiva não é suficientemente completa como para configurar um tipo contratual. Diz-se misto porque resulta da combinação de elementos de outros contratos – especialmente de empreitada e de locação – dirigida à formação de uma nova espécie contratual não esquematizada em lei6. Aqui é bom lembrar que o que determina a tipicidade ou a atipicidade não é possuir um nomen iuris, e sim ter previsão completa em lei.

É a partir dessa classificação que se põe o problema da registrabilidade do contrato built to suit. Foi com base na atipicidade que a 1ª Vara dos Registros Públicos de São Paulo se manifestou, em procedimento de suscitação de dúvida, contra a possibilidade de registrar o contrato built to suit, sustentando que "[h]á expressa exclusão de direitos previstos para as locações, o que retira esse contrato da incidência de normas cogentes para as locações em geral, tornando forçoso reconhecer a atipicidade do contrato, que constitui título não previsto no rol dos registráveis"7. In concreto, o usuário tinha requerido o registro na matrícula do imóvel de contrato built to suit com cláusula de opção de compra8.

A jurisprudência acerca da matéria, firme no sentido de que contratos atípicos não são registráveis (registro em sentido estrito), opera uma verdadeira equiparação entre taxatividade e tipicidade9. Não há óbice, convém esclarecer, à averbação10 do contrato built to suit, na medida em que é inconteste que as hipóteses de averbação previstas na LRP11 configuram um numerus apertus12.

O problema surge no que tange o registro de dito contrato na matrícula do imóvel, na medida em que é por meio do registro que se efetua a escrituração dos atos translativos ou declaratórios da propriedade imóvel, os atos constitutivos de direitos reais, os ônus reais e os direitos obrigacionais com eficácia real. Há, entretanto, considerações que podem amparar entendimento diverso.

De um lado, não parece desarrazoado permitir o registro de um contrato que a própria lei considera subespécie de locação não residencial, desde que o núcleo da locação – leia-se, causa locatícia do negócio jurídico – possa ser identificado no negócio jurídico em questão. Em outras palavras, deve-se levar em consideração não as particularidades do negócio jurídico entabulado, e sim a adequação do escopo negocial do negócio jurídico concreto com o do tipo contratual em abstrato.

De outro, equiparar indiscriminadamente a (discutível) taxatividade das hipóteses de registro previstas no art. 167, I da LRP a uma pretensa exigência legal de tipicidade negocial parece refletir zelo excessivo pela segurança jurídica, em detrimento da eficácia de negócios jurídicos voltados à utilização e desenvolvimento racional do acervo imobiliário. É o caso do contrato built to suit, que busca articular de forma mais eficiente os interesses do locatário em busca de um imóvel com características específicas com as do locador disposto a investir a médio e longo prazo na adequação do imóvel ao escopo desejado. Não por outro motivo, a doutrina recomenda o registro e a averbação do contrato na matrícula do imóvel, a fim de impedir a denúncia pelo adquirente, promissário comprador ou promissário cessionário13.

Diante desse quadro é possível concluir que o que determina a registrabilidade não é a exauriência do rol legal do art. 167, I, da LRP, nem do art. 1.225 do Código Civil, e nem qualquer outro rol legal. Os negócios jurídicos são registráveis por conter previsões legais, ou seja, observa-se sim um bloqueio de legitimação, porém, sempre em consonância com o escopo do instituto de direito obrigacional ou real sob registro, a fim de efetivar tanto a proteção dos contratantes quanto a tutela do terceiro de boa-fé, consulente, colocando o Registro de Imóveis como um dos guardiões desse sistema de proteção.

Fiquem com Deus, até próximo Registralhas!

__________

1 Art. 8º, caput, da lei 8.245/1991: "Se o imóvel for alienado durante a locação, o adquirente poderá denunciar o contrato, com o prazo de noventa dias para a desocupação, salvo se a locação for por tempo determinado e o contrato contiver cláusula de vigência em caso de alienação e estiver averbado junto à matrícula do imóvel".

2 G. Alpa, Manuale de diritto privato, 7ª ed., Padova, CEDAM, 2011, p. 527.

3 Embora o ordenamento jurídico brasileiro não tenha inserido a causa entre os elementos essenciais do negócio jurídico (art. 104 do CC/2002), convém resgatar o conceito para fins de distinguir o negócio típico do atípico. Acerca do tema, bem como da discussão acerca das teorias da causa, cf. S. S. Venosa, Direito Civil – Parte Geral, 5ª ed., São Paulo, Atlas, 2005, pp. 409-412 (direito brasileiro) e G. Alpa, Manuale de diritto privato, 7ª ed., Padova, CEDAM, 2011, pp. 523, 525-526 (direito italiano).

4 G. Cian e A. Trabucchi, Commentario breve al codice civile – Complemento giurisprudenziale – Edizione per prove concorsuali ed esami, Padova, CEDAM, 2012, p. 1420.

5 G. Alpa, Manuale de diritto privato, 7ª ed., Padova, CEDAM, 2011, p. 523.

6 F. Henneberg Benemond, Contratos Built to Suit, Coimbra, Almedina, 2013, pp. 94-95.

7 1ª VRPSP, Processo 0038666-47.2012.8.26.0100, Rel. Marcelo Martins Berthe, j. 05-11-2012, in DJ 22-11-2012.

8 Convém ressaltar que o processo em questão teve início antes da promulgação da lei 12.744, de 19 de dezembro de 2012, que alterou o artigo 4º e acrescentou o artigo 54-A da lei 8.245, de 18 de outubro de 1991. Por esse motivo, não houve discussão, no processo, acerca do impacto da inovação legislativa na registrabilidade do contrato built to suit.

9 Para um panorama geral da posição da jurisprudência, cf. C. K. da Costa Leite, O Ingresso dos Contratos Atípicos no Registro de Imóveis, in Revista de Direito Imobiliário, 79 (2015), pp. 59-62. Frise-se que nem mesmo a analogia é admitida para fazer ingressar um contrato atípico no registro de imóveis.

10 Nesse caso, a averbação teria por base legal o art. 167, II, item 16, da lei 6.015/1973: "No Registro de Imóveis, além da matrícula, serão feitos (...) a averbação: (...) do contrato de locação, para os fins de exercício de direito de preferência".

11 Cf. art. 167, II da Lei nº 6.015/1973.

12 C. K. da Costa Leite, O Ingresso dos Contratos Atípicos no Registro de Imóveis, in Revista de Direito Imobiliário, 79 (2015), pp. 58-59.

13 Nesse sentido, cf. F. Henneberg Benemond, Contratos Built to Suit, Coimbra, Almedina, 2013, p. 146: "Portanto, em nosso entendimento, os oficiais de Cartório de Registro de Imóveis devem efetuar o registro/averbação de contratos built to suit nas matrículas dos respectivos imóveis, com fundamento no artigo 54-A da Lei de Locação (que estabelece, como já dito, que as disposições procedimentais previstas em tal lei devem ser aplicadas ao built to suit), cumulado com o artigo 8º da Lei de Locação e artigo 167, inciso I, item 3 da Lei de Registros Públicos, os quais preveem o registro/averbação do contrato para fins de vigência em caso de alienação do imóvel. Registrado/averbado o contrato built to suit perante o Cartório de Registro de Imóveis competente, o adquirente, promissário comprador ou promissário cessionário não poderão denunciá-lo, caso o contrato esteja em vigor por prazo determinado e contenha cláusula de vigência em caso de alienação do imóvel".

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Colunista

Vitor Frederico Kümpel é juiz de Direito em São Paulo e doutor em Direito pela USP.