Registralhas

O art. 98, § 8o, do novo CPC e a impossibilidade da revisão de decisão de natureza jurisdicional pelo juízo administrativo

Os autores apontam as principais modificações trazidas pelo novo CPC em matéria notarial e registral.

31/5/2016

Vitor Frederico Kümpel e Rodrigo Pontes Raldi

Na coluna de hoje, retomaremos a série de artigos que tem por escopo apontar as principais modificações trazidas pelo novo CPC em matéria notarial e registral. Teceremos considerações sobre a regra contida no art. 98, § 8o, do novo diploma processual1, que trata da procendimentalização e do controle do benefício da gratuidade da justiça, concedida em sede jurisdicional, no que toca à isenção de emolumentos notariais e registrais. A complexidade está no fato de que a isenção no recolhimento da taxa para prestação da atividade notarial e registral pode ser revista por meio de procedimento administrativo contraditório, no qual o juízo administrativo revê decisão de natureza jurisdicional.

A possibilidade de concessão do benefício da gratuidade da justiça está intimamente ligada ao princípio da inafastabilidade da tutela jurisdicional (art. 5o, XXXV, CF)2, como forma de garantir aos sujeitos o efetivo direito (ou poder3) de ação. Afinal, se as custas processuais representam empecilho, seja em relação à quebra da inércia jurisdicional, seja em relação ao próprio exercício das faculdades e ônus processuais, impedindo a produção de provas que demandam depósito de honorários, por exemplo, o acesso à tutela do Poder Judiciário é concretamente relativizado. Daí porque, reconhece-se a importância de haver a previsão de um instituto processual como o da gratuidade de justiça, que desmonta a barreira financeira que se colocaria entre o cidadão e o acesso à justiça.

O novo CPC passou a regular a questão da gratuidade da justiça, revogando parte dos dispositivos da lei 1.060/50. O art. 98, § 1o, do novo CPC, traz as espécies de despesas sobre as quais podem recair a gratuidade, acrescentando novas modalidades em relação ao revogado art. 2o, da Lei de Assistência Judiciária. Conforme estabelece o § 1o, IX, o benefício da gratuidade também compreenderá: "os emolumentos devidos a notários ou registradores em decorrência da prática de registro, averbação ou qualquer outro ato notarial necessário à efetivação de decisão judicial ou à continuidade de processo judicial no qual o benefício tenha sido concedido".

Com isso, a isenção decorrente da concessão do benefício da gratuidade de justiça também pode compreender os atos de natureza notarial e registral, necessários à efetivação da decisão jurisdicional. Lembre-se que o novo CPC prevê a possibilidade de concessão parcial do benefício, o que não era admitido na vigência do Código de Processo Civil de 1973. Conforme estabelece o art. 98, § 5o, da nova legislação processual, o juiz poderá conceder a gratuidade em relação a um ou a todos os atos processuais, ou reduzir o percentual de custas antecipadas.

É bom lembrar, nesse ponto, que os emolumentos notariais e registrais, conforme já rapidamente mencionado, constituem tributo, na modalidade taxa sui generis, na medida em que remunera tanto o serviço, quanto o poder de polícia. Nessa linha de raciocínio, a isenção desse tributo depende de lei, na medida em que é fonte de receita do Estado.

Logo, caberá ao juiz analisar, especificamente no que tange as custas notariais e registrais, se é caso de concessão do benefício. Devendo, por regra, o ônus de custeio do processo recair sobre a parte interessada, a concessão da gratuidade deve se dar de modo excepcional, avaliando-se concretamente a impossibilidade do sujeito em arcar com os emolumentos cartorários. Nesse contexto, não se pode tratar todas as custas processuais de maneira uniforme, sendo certo que muitas delas podem ser custeadas pela parte, sem que isso lhe traga prejuízos. Aqui é bom relembrar que gratuidade está intimamente ligada à ideia de pobreza que, no caso, não é material, mas sim processual, ou seja, o recolhimento deve implicar em impossibilidade de manutenção dos custos básicos de vida. Daí a necessidade de o do juiz do processo (juiz natural) aferir caso a caso e ato a ato a efetiva necessidade da concessão.

Ademais, é claro que o notário ou o registrador não deverão suportar o prejuízo, mesmo no caso de concessão da gratuidade, pois poderão demandar a parte vencida – seja ela beneficiária da gratuidade ou não –, conforme estabelece o art. 98, § 2o4, do novo CPC.

Regra polêmica, no entanto, está contida no art. 98, § 8o, que dispõe: "Na hipótese do § 1o, inciso IX, havendo dúvida fundada quanto ao preenchimento atual dos pressupostos para a concessão de gratuidade, o notário ou registrador, após praticar o ato, pode requerer, ao juízo competente para decidir questões notariais ou registrais, a revogação total ou parcial do benefício ou a sua substituição pelo parcelamento de que trata o § 6o deste artigo, caso em que o beneficiário será citado para, em 15 (quinze) dias, manifestar-se sobre esse requerimento".

Trata-se da possibilidade de o notário ou registrador requererem ao juízo competente para decidir questões notariais ou registrais – ou seja, o juiz corregedor permanente, isto é, aquele determinado por lei para decidir questões administrativas –, a revisão do benefício da gratuidade concedido pelo juiz de direito.

A Lei n. 8.935/94, dispõe em seu art. 37, que a fiscalização judiciária dos notários e registradores é matéria definida na órbita estadual ou do Distrito Federal. Por sua vez, o art. 77, da Constituição do Estado de São Paulo, determina que compete ao Tribunal de Justiça, por seus órgãos específicos, exercer o controle sobre atos e serviços auxiliares da justiça, abrangidos os notariais e os de registro. Por sua vez, o Provimento n. 58/89, da Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo, em seu Capítulo XIII, Seção I, item 1, determina que a função correcional, consistente na fiscalização dos serviços notariais e de registro, é atribuição do Corregedor Geral da Justiça e dos Juízes de Direito a ele subordinados.

Observe-se que, muito embora a atividade de correição seja exercida por juízes de direito, não se trata de exercício da função jurisdicional. Trata-se, em verdade, de atividade judicial de natureza administrativa. O juízes corregedores permanentes são a longa manus do Corregedor Geral da Justiça no controle administrativo-funcional da atividade notarial e registral.

Ora, como é possível que o juiz, no exercício de atividade administrativa, possa rever decisão jurisdicional? Como seria possível uma decisão jurisdicional determinada ou não modificada pelo Superior Tribunal de Justiça, por exemplo, ser alterada por um juiz no exercício de atividade administrativa? Evidente que a norma em questão subverte o conceito ontológico do sistema. A decisão administrativa é que sempre deve ser revista pelo viés jurisdicional, e nunca o sentido contrário. De toda a sorte, fica a questão para reflexão dos nossos leitores, para as considerações que entenderem pertinentes.

Continuem conosco.

Alegria!

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1 Art. 98, § 8o : "Na hipótese do § 1o, inciso IX, havendo dúvida fundada quanto ao preenchimento atual dos pressupostos para a concessão de gratuidade, o notário ou registrador, após praticar o ato, pode requerer, ao juízo competente para decidir questões notariais ou registrais, a revogação total ou parcial do benefício ou a sua substituição pelo parcelamento de que trata o § 6o deste artigo, caso em que o beneficiário será citado para, em 15 (quinze) dias, manifestar-se sobre esse requerimento".

2 "A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito".

3 Sobre o termo: F. L. Yarshell, Curso de Direito Processual Civil, v.1, São Paulo, Marcial Pons, 2014, p. 79.

4 "A concessão de gratuidade não afasta a responsabilidade do beneficiário pelas despesas processuais e pelos honorários advocatícios decorrentes de sua sucumbência".

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Colunista

Vitor Frederico Kümpel é juiz de Direito em São Paulo e doutor em Direito pela USP.