*O artigo foi escrito em coautoria com Bruno de Ávila Borgarelli.
O delicado tema das liberalidades feitas a indivíduos incapazes sempre traz à tona alguns desafios. Acerca dessa temática – por exemplo –, o processo nº 1055983-36.20151, da 1ª Vara dos Registros Públicos, havia decidido que por serem os donatários menores impúberes, precisariam estar representados pela mãe e pelo pai, sob incidência do artigo 1.691 do Código Civil2. Agora, no mesmo ano, o pensamento jurídico foi modificado, autorizando-se a doação pura a menor, mesmo sem representação3.
Em virtude da primeira decisão, publicamos um artigo abordando o problema. Esclarecemos sucintamente que a doação é, por regra, contrato4, mas que pode ser tida por negócio unilateral.
O atual Código Civil determina de forma inovadora no artigo 543 "se o donatário for absolutamente incapaz, dispensa-se aceitação, desde que se trate de doação pura". No Código de 1916, o artigo 1.170 dava às "pessoas impossibilitadas de contratar" (incapazes) a possibilidade de aceitar doações puras. Isso deu origem ao entendimento doutrinário de que se tratava, nesse caso, de aceitação ficta. A ideia poderia ser boa no intento, mas, sistematicamente, era falha, pois criava uma inaceitável contradição com a parte geral.
Os incapazes simplesmente não podem dar o aceite. Em nome desse apuramento é que o atual Código Civil, dispensando a aceitação de doação pura pelo incapaz, ajustou o sistema, harmonizando-o neste ponto.
Além disso, a redação do artigo 1.165 do Código de 1916 estabelecia que "considera-se doação o contrato em que uma pessoa, por liberalidade, transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de outra, que os aceita". A supressão, pelo legislador de 2002, da expressão "que os aceita", fornece um indício de que realmente no atual sistema é possível haver doação sem a aceitação da contraparte. E isso ocorre, precisamente, quando há doação a incapaz.
Nessa linha de raciocínio, basta a vontade do doador para se aperfeiçoar perante o notário o negócio jurídico, desde que, obviamente, não exista qualquer ônus sobre o bem, e desde que o tabelião tenha averiguado a não concorrência de fraude contra credores ou à execução.
Isso assentado, remanesce o problema da extensão do conceito de doação pura, necessário à formação do suporte fático de incidência do artigo 543 do Código Civil de 2002. Surge especificamente a questão relativa à doação com reserva de usufruto. Não obstante as ricas possibilidades que podem advir desse debate, pode-se repetir a lição de Pontes de Miranda, de que "a doação com reserva de usufruto não é doação com encargo. Doou-se a nua propriedade, e a extinção do usufruto não tem outra consequência que a integralização da propriedade"5. Dessa forma, a doação com reserva de usufruto a um indivíduo absolutamente incapaz atrai a incidência do artigo 543 do CC/02. Consolida-se o negócio jurídico mesmo sem o aceite. Parece-nos, portanto, que se trata aqui de verdadeiro negócio jurídico unilateral.
À ocasião do artigo publicado em resposta à primeira decisão mencionada – que rejeitou a doação pura a incapaz –, extraímos alguns entendimentos, que tomamos a liberdade de aqui transcrever integralmente6:
I) A doação é contrato típico, gratuito, unilateral, formal;
II) Em caso de doação feita a sujeito capaz, sua aceitação sempre será existente. Seja expressa – o que raramente ocorre -, tácita ou presumida, o fato é que existe e dá eficácia ao ato do doador, isto é, a oferta de doação. Ao mesmo tempo, com a aceitação aperfeiçoa-se o contrato de doação, que então comporta o consenso necessário ao seu perfazimento;
III) Em se tratando de donatário incapaz, entendemos que a solução adotada pelo Código Civil de 2002, muito embora melhor que a do código anterior, alimenta certos problemas. Estes surgem do confronto de determinados dispositivos do atual diploma, especialmente o art. 533, 539 e 543. Analisando-os, podemos ir da exigência geral de aceitação em toda doação até a dispensa deste aceite em caso de ser incapaz o donatário. A solução do problema está em localizar os fundamentos dos institutos envolvidos e compreender qual a regra que está a ser excepcionada no caso. Assim sendo, temos como fundamento das incapacidades a proteção do sujeito, e como fundamento da aceitação a necessidade de integração de ato do donatário que confira eficácia ao ato do doador, completando o negócio jurídico.
IV) Caso a doação tenha como destinatário um sujeito relativamente incapaz, entendemos pela possibilidade de seu consentimento. Ele será capaz, dessa forma, para o ato de aceitação de doação. Do mesmo modo que sob o código de 1916 – onde o art. 1.770 permitia que o incapaz aceitasse doação - Agostinho Alvim defendia uma interpretação restritiva, autorizando-se apenas a aceitação pelo relativamente incapaz, cremos que esse entendimento deve ainda prevalecer, de resto porque o art. 543 do atual Código se dirige especificamente aos absolutamente incapazes (como dispensados da aceitação).
V) Quanto ao donatário absolutamente incapaz, caminhamos com a ideia de negócio unilateral. Não configura contrato. Bem ou mal, é essa a constatação necessária que se retira da lei, tanto mais porque o legislador de 2002 preservou o que já no Código de 1916 se dizia em relação à doação ao nascituro, onde é exigida aceitação de seus pais. Essa manutenção indica que para o legislador não deixou de existir aceitação em alguns casos de impossibilidade de o beneficiado se manifestar, mas em outros casos ficou dispensada, por ordem expressa. É claro que isso soa contraditório. Mas compelidos à interpretação da intrincada questão, nos parece ser a melhor forma de resolvê-la. Demais disso, a doutrina rigorosa a respeito dos negócios unilaterais nos autoriza a tal conclusão.
VI) Questão relevante é a de saber quando uma doação terá encargo e quando se tratará de mera cláusula. Explicamos que, no primeiro caso, existe uma obrigação imposta ao donatário, enquanto no segundo existe uma restrição. Desse modo, numa hipótese de doação feita com reserva de usufruto, por exemplo, esta cláusula, por si só, não torna oneroso o contrato. É, ainda, doação pura (pois não há obrigação do donatário), sujeitando-se às regras que a esse tipo se referem.
VII) Da mesma forma que o Tabelião não pode se recusar a lavrar uma escritura de doação pura para sujeito absolutamente incapaz pelo fato de ausência de aceitação, também o Registrador de Imóveis não pode rejeitar a inscrição do referido título. Esse entendimento nasce do cotejo das conclusões anteriores. Imagine-se um indivíduo que queira doar imóvel de grande valor a um menor impúbere, apondo cláusula de reserva de usufruto. É uma doação pura feita a sujeito absolutamente incapaz. Forma-se o suporte fático concreto de incidência da hipótese do art. 543 do código civil de 2002. Está dispensada a aceitação do beneficiado, já que: a) a lei assim o determina; b) ele não poderia jamais praticar a aceitação; c) a doação só lhe acarreta vantagens. Negar o registro é praticar injustiça e atravancar o fluxo econômico. Mas o Tabelião, ao contrário de outras escrituras translativas, não pode dispensar as certidões negativas disciplinadas pela lei 7.433/1985 a fim de, profilaticamente, evitar fraudes e simulações em geral;
VIII) A vantagem da doação pura, também um fundamento da dispensa de aceitação pelo incapaz, pode no plano fático não se revelar, apesar de todas as cultivadas expectativas em contrário. Em assim sendo, o representante do donatário, provando a desvantagem que a doação traz, pode desconstituí-la em juízo.
Para arrematar toda essa questão, é de ressaltar a importância da mudança de posição das varas dos Registros da Capital, no importantíssimo controle administrativo que exercem sobre o sistema registral.
Até o próximo Registralhas!
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1 Processo 1055983-36.2015.8.26.0100. Dúvida. 5º Oficial de Registro de Imóveis x Luís Médici. Sentença: Dúvida – doação a menores absolutamente incapazes necessidade de autorização judicial – procedência. Vistos. Trata-se de dúvida suscitada pelo Oficial do 5º Registro de Imóveis da Capital, a requerimento de Luís Médici. O suscitado apresentou para registro escritura de doação referente ao imóvel de transcrição nº. 73.355, com reserva de usufruto e cláusulas de impenhorabilidade e incomunicabilidade. O título teve o ingresso recusado, pois dois dos donatários são menores impúberes e foram representados no ato pela mãe, sem a presença do pai. Alegou o Registrador que, conforme o art. 1.691 do Código Civil, atos de transmissão de propriedade devem ter prévia autorização judicial quando for parte menor de idade absolutamente incapaz, além de citar decisão do Conselho Superior da Magistratura nesse sentido. Juntou documentos às fls. 04/36. Não houve impugnação pela suscitada (fl.37). O Ministério Público opinou pela procedência da dúvida (fls. 41/42). É o relatório. Decido. Com razão o D. Promotor e o ilustre Oficial. Conforme preceitua o artigo 1.691 do Código Civil: "Art. 1.691 – Não podem os pais alienar, ou gravar de ônus real os imóveis dos filhos, nem contrair, em nome deles, obrigações que ultrapassem os limites da simples administração, salvo por necessidade ou evidente interesse da prole, mediante prévia autorização do juiz". A lei faz regra, e não exceção, da necessidade de autorização prévia do juiz. Desta forma, a única hipótese em que esta pode ser afastada refere-se à simples administração do bem do menor pelos genitores. Ora, receber um bem imóvel, mesmo que por doação, acarreta obrigações ao titular de domínio, que não podem ser aceitas só pela vontade dos pais, que poderiam eventualmente agir em interesse próprio. Assim, cabe ao juiz decidir se a transferência do bem virá em benefício do donatário. Contribui, por fim, para a necessidade desta análise jurisdicional, a total omissão quanto à presença do pai dos menores, trazendo incertezas quanto ao interesse da mãe (representante), sobretudo porque o doador não tem relação de parentesco algum com as crianças. Concluo que o óbice apresentado é válido e cabível, diante dos fatos e documentos apresentados. Ressalto que este juízo administrativo não pode emitir a declaração substitutiva da vontade do genitor, devendo a suscitada buscá-la em ação adequada. Do exposto, julgo procedente a dúvida suscitada pelo Oficial do 5º Registro de Imóveis da Capital, a requerimento de Luís Médici, mantendo o óbice registrário. Não há custas, despesas processuais ou honorários advocatícios decorrentes deste procedimento. Oportunamente, arquivem-se os autos. P.R.I.C.
2 "Art. 1.691. Não podem os pais alienar, ou gravar de ônus real os imóveis dos filhos, nem contrair, em nome deles, obrigações que ultrapassem os limites da simples administração, salvo por necessidade ou evidente interesse da prole, mediante prévia autorização do juiz.
Parágrafo único. Podem pleitear a declaração de nulidade dos atos previstos neste artigo:
I - os filhos;
II - os herdeiros;
III - o representante legal".
3 Processo nº 1096909-59.2015. Registro de imóveis – Escritura de doação – Usufrutuária menor impúbere – Ausência de representação da menor – Doação pura – Art. 543, CC – Desnecessidade de alvará judicial – Dúvida improcedente. Dúvida. 1º Registro de Imóveis. Sentença: Vistos. Trata-se de dúvida suscitada pelo Oficial do 1º Registro de Imóveis da Capital, a requerimento de A. J. e J. de F. L. J., em face da negativa em se proceder ao registro de Escritura de Doação com Instituição e Reserva de Usufruto, lavrada perante o 8º Tabelião de Notas da Capital, na qual os titulares de domínio doaram imóvel gravando-o com usufruto para D. L. S. M. da S. e J. de F. L. J., sendo a nua propriedade constituída a favor de J. L. V., G. L. M. da S. e L. L. M. da S. Os óbices registrários referem-se à ausência de representação da menor, L. L. M. da S., por seus pais para aceitação da doação em nome dela, bem como ausência de apresentação de alvará judicial, que autorize a aquisição do imóvel, gravado com usufruto, pela menor. Juntou documentos às fls. 04/29. Não houve apresentação de impugnação, conforme certidão de fl.40. O Ministério Público opinou pela procedência da dúvida, mantendo-se os óbices registrários (fls.35/36 e 44). É o relatório. Passo a fundamentar e a decidir. Em que pesem os argumentos expostos pelo Registrador, e do precedente deste Juízo trazido à baila nestes autos, entendo que o caso em tela deva ter avaliação diferenciada. Na presente hipótese, ainda que o imóvel esteja gravado com usufruto, considera-se a doação como pura, ou seja, não haverá encargo para o titular da nua propriedade, que é absolutamente incapaz em razão da idade. O artigo 543 do Código Civil dispõe que: "Se o donatário for absolutamente incapaz, dispensa-se a aceitação, desde que se trate de doação pura". Ao comentar este dispositivo legal, Nelson Rosenvald (Comentários ao Código Civil, Coordenação de César Peluso, pag. 423) diz que: "Quer dizer, não se trata de aceitação presumida do incapaz. Simplesmente se aperfeiçoa a doação com a tradição do bem ao incapaz e com o registro da escritura de doação do bem imóvel, sem a participação do absolutamente incapaz e de seu representante legal. O consentimento do incapaz deixa de ser elemento integrativo do contrato". Desta mesma interpretação comunga Luiz Guilherme Loureiro, em sua obra Registro Públicos Teoria e Prática: "Quando o donatário for pessoa absolutamente incapaz, não é necessário o consentimento do representante legal, quando se trata de doação pura (art. 543, CC). Há uma aparente contradição entre este dispositivo que constitui inovação em nosso ordenamento jurídico e a norma do art. 1.748 do CC, segundo a qual compete ao tutor, com autorização do juiz, aceitar em nome do menor as doações, puras ou com encargos. Este artigo não faz distinção entre menoridade absoluta e relativa. Assim, para que seja mantida a unidade do sistema jurídico, forçoso concluir que somente é dispensável a aceitação do menor absolutamente incapaz, desde que se trate de doação pura e não se encontre ele sobre regime de tutela". (pag. 416). Deste diapasão, acrescento que o menor deverá estar em situação regular, do ponto de vista de sua guarda e representação. Agiu com acerto o Tabelião ao consignar na escritura que: "por tratar-se de doação pura da nua propriedade do imóvel, a outorgada Laura, por ser absolutamente incapaz, fica dispensada a aceitação da doação". Verifico que cada situação apresentada a desate traz uma peculiaridade que deve ser analisada isoladamente no momento da qualificação. No presente caso, não vejo necessidade da expedição de alvará judicial. Conforme acima mencionado, cuida-se de doação pura, que virá exclusivamente em benefício da menor, não lhe acarretando qualquer ônus ou prejuízo, e os genitores participam no negócio jurídico. Por fim, deixo de instaurar procedimento de providências para apurar a conduta do Oficial do 13º Registro de Imóveis da Capital, conforme requerimento da Douta Promotora de Justiça, uma vez que o Registrador tem liberdade e independência para qualificar os títulos a eles encaminhados e não vislumbro a existência de má-fé ou erro grosseiro. Diante do exposto, julgo improcedente a dúvida suscitada pelo Oficial do 1º Registro de Imóveis da Capital, a requerimento de A. J. e J. de F. L. J., possibilitando o ingresso do título. Deste procedimento não decorrem custas, despesas processuais e honorários advocatícios. Oportunamente, remetam-se os autos ao arquivo, com as cautelas de praxe. P.R.I.C.
4 "Art. 533. Aplicam-se à troca as disposições referentes à compra e venda, com as seguintes modificações:
I - salvo disposição em contrário, cada um dos contratantes pagará por metade as despesas com o instrumento da troca;
II - é anulável a troca de valores desiguais entre ascendentes e descendentes, sem consentimento dos outros descendentes e do cônjuge do alienante".
5 Tratado de Direito Privado, atualizado por Bruno Miragem, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2012, t. XLVI, p. 316.
6 KÜMPEL, Vitor Frederico, BORGARELLI, Bruno de Ávila, Da Doação a Incapaz, in Revista de Direito Imobiliário, v. 79, 2015.