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O estranho caso do inimputável capaz - Parte II

Os autores discorrem sobre a interdisciplinariedade entre o Direito Civil e o Direito Penal.

3/11/2015

*O artigo foi escrito em coautoria com Thales Ferri e Bruno de Ávila Borgarelli

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Podemos afirmar que o Direito é uma só ciência, cuja finalidade é disciplinar condutas por meio da elaboração de normas jurídicas. A existência de distintos ramos do Direito (Civil, Penal, Processual Civil, etc.), tanto em nível acadêmico, como no âmbito jurisdicional, não abala a unidade da ciência jurídica; como adverte Goffredo Telles Júnior, "durante cinco anos do Curso, matérias muitas e diversas são explicitadas e estudadas. Mas, reparem, todas elas se prendem umas com as outras. Relacionam-se pelos seus primeiros princípios, pelos seus fundamentos, pelos fins que almejam. Em verdade, podemos até dizer que, durante todo o Curso numa Faculdade de Direito, só cuidamos de uma única disciplina: A Disciplina da Convivência Humana"1.

Nestes termos, o Direito deve ser estudado e aplicado de maneira interdisciplinar2, de modo que suas diversas áreas interajam, rompendo o tradicional isolamento teórico e prático3, mas, para tanto, faz-se necessário um pressuposto lógico: a harmonia do sistema jurídico. Tal harmonia não impede que existam conflitos aparentes entre normas jurídicas (antinomia), os quais devem ser solucionados pelos critérios hierárquico, cronológico e da especialidade, mas excetuada tal hipótese, deve-se evitar a promulgação de normas jurídicas que se excluam, ou seja, que estejam em real conflito. Impõe-se, portanto, que o Direito seja concebido como um sistema harmônico de normas jurídicas, não produzindo conflitos reais e ao mesmo tempo evitando lacunas (anomia) – eventuais lacunas são observadas apenas na lei e não no Direito, já que ele mesmo "supre seus espaços vazios, mediante a aplicação e criação de normas", como bem esclarece Maria Helena Diniz4.

Tratando especificamente da interdisciplinariedade entre o Direito Civil e o Direito Penal, observamos que até a promulgação da lei 13.146/15 (Estatuto da Pessoa com Deficiência), esses dois ramos do Direito encontravam-se em plena harmonia. Com efeito, são incontáveis as relações entre os diversos institutos de Direito Civil e Penal, entre as quais podemos destacar a independência relativa entre as jurisdições civil e criminal, e os reflexos penais e processuais penais a partir do advento do Código Civil de 2002, que reduziu a maioridade civil de 21 para 18 anos. Tratemos, brevemente, de cada uma dessas questões, antes da análise do referido Estatuto.

O princípio da independência relativa entre as jurisdições civil e penal decorre da interpretação conjunta dos arts. 65, 66, 67, incisos I a III, e 386, incisos, I a VII, do Código de Processo Penal, e 935 do Código Civil, extraindo-se as seguintes regras:

a) Faz coisa julgada no juízo cível a sentença penal condenatória transitada em julgado, pois, como adverte Carlos Roberto Gonçalves, "estariam comprovados a autoria, a materialidade do fato ou dano, o nexo etiológico e a culpa (dolo ou culpa stricto sensu) do agente"5;

b) Também faz coisa julgada na esfera civil a absolvição em razão de excludente de antijuridicidade (CP, art. 123, I a III, entre outras causas legais ou supralegais), por excludente de culpabilidade, descriminante putativa, quando provada a inexistência material do fato e quando provado que o réu não concorreu para a infração penal (CPP, arts. 65, 66, e 386, I, IV e VI, CP, arts. 20, § 1º, 21, 22, 26, e 28, § 1º, e CC, art. 188, I e II); excetuam-se apenas as absolvições por legítima defesa com "aberratio ictus" (CP, art. 73) e por estado de necessidade agressivo, restando ao condenado na esfera civil propor ação regressiva, respectivamente, contra o autor da agressão e o causador da situação de perigo (CC, arts. 929 e 930)6;

c) Não fazem coisa julgada na esfera civil as absolvições criminais por não haver prova da existência do fato, em razão do fato não constituir infração penal, por não existir prova de ter o réu concorrido para a infração penal, por não existir prova suficiente para a condenação (CPP, arts. 66, 67, III, 386, II, III, V e VII, e CC, arts. 186, 927, "caput", e 935), e por não ter sido caracterizada a culpa do réu em delito culposo (muitas vezes a culpa levíssima não é suficiente para o aperfeiçoamento da tipicidade, embora o seja para configurar o ato ilícito na esfera civil)7;

d) Finalmente, não fazem coisa julgada na esfera civil a decisão de arquivamento de inquérito policial ou de peças de informação, bem como a decisão que julga extinta a punibilidade (CPP, art. 67, I e II).

No que se refere à aquisição da maioridade civil aos 18 anos a partir da vigência do Código Civil de 2002 (art. 5º, "caput"), a interpretação mais coerente com a harmonia do sistema aqui defendida – e que acabou prevalecendo – foi no sentido de que todas as normas do Código de Processo Penal que exigiam curador ao réu ou ofendido menor de 21 anos e maior de 18 foram revogadas pelo diploma civil8; manteve-se, todavia, a circunstância atenuante e a redução dos prazos prescricionais pela metade em relação aos réus menores de 21 anos e maiores de 18 na data do delito (CP, arts. 65, I, e 115).

Contudo, o Estatuto da Pessoa com Deficiência rompeu a harmonia do sistema, pois a partir de sua vigência, considerará absolutamente incapazes somente os menores de 16 anos (CC, art. 3º); conforme lição de lição de Moacyr Petrocelli de Ávila Ribeiro, "averiguando-se alguns reflexos imediatos do novo regime jurídico das incapacidades, de pronto, pode-se inferir que todas as pessoas que foram interditadas em razão de enfermidade ou deficiência mental passam, com a entrada em vigor do Estatuto, a serem consideradas, ope legis, plenamente capazes. Vale dizer, tratando-se de lei que versa sobre o estado da pessoa natural, a disposição normativa tem eficácia e aplicabilidade imediata"9.

Obviamente que as disposições do Código Penal relacionadas aos inimputáveis e semi-imputáveis permanecem intocadas (art. 26, "caput" e parágrafo único), mas a nova lei criou um conflito real em nosso sistema jurídico, como será demonstrado. Para tanto, algumas breves considerações sobre a teoria geral do crime se fazem necessárias.

Analiticamente e segundo a teoria finalista da ação bipartida, o crime pode ser definido como o fato típico e antijurídico, funcionando a culpabilidade como pressuposto de aplicação da pena10. Fato típico é aquele fato descrito em lei como crime ou contravenção penal, enquanto a antijuridicidade é a contrariedade de um fato típico ao ordenamento jurídico, ou seja, todo fato típico é, em princípio, antijurídico, salvo quando amparado por alguma causa de justificação (eximente), conforme a teoria do caráter indiciário da ilicitude ("ratio cognoscendi"), de Mayer11. Interessa-nos, aqui, tratar da culpabilidade.

Culpabilidade é o juízo de reprovação exercido sobre o autor de um fato típico e antijurídico. Claus Roxin define a culpabilidade como o "agir ilícito apesar da idoneidade para ser destinatário de normas"12, mas foi Reinhard Frank quem primeiramente cuidou do tema com distinção, ao ligá-lo à ideia de reprovabilidade13. Culpabilidade, portanto, é reprovabilidade, ou ainda, censurabilidade, isto é, o juízo de reprovação ou censura dirigido sobre o autor de um fato típico e ilícito – Damásio de Jesus cita um antigo provérbio alemão, segundo o qual "a culpabilidade não está na cabeça do réu, mas na do juiz; o dolo, pelo contrário, está na cabeça do réu"14.

São elementos da culpabilidade: potencial consciência da ilicitude, exigibilidade de conduta diversa e imputabilidade. Cada excludente de culpabilidade (dirimente) prevista no Código Penal afasta um desses elementos: o erro de proibição exclui a potencial consciência da ilicitude, a coação moral irresistível e a obediência hierárquica afastam a exigibilidade de conduta diversa, enquanto a inimputabilidade por doença mental, desenvolvimento mental incompleto ou retardado, ou por embriaguez completa resultante de caso fortuito ou força maior, afasta a imputabilidade (CP, arts. 21, 22, 26, "caput", 27 e 28, § 1º)15.

Cuidaremos, na próxima coluna, da última excludente, eis que relacionada às nefastas inovações do Estatuto da Pessoa com Deficiência. Até lá!

Referencias Bibliográficas

CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 18 ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Teoria Geral do Direito Civil. 27 ed. São Paulo: Saraiva, 2010, v. 1.

FRANK, Reinhard. Sobre la estructura del concepto de culpabilidad. Collección Maestros del Derecho Penal. Dirigida por Gonzalo D. Fernandes. Coordinada por Gustavo Eduardo Aboso. Traducción por Gustavo Eduardo Aboso y Tea Löw. 3 Reimp. Buenos Aires: Editorial IB de F, 2011.

GOMES, Luiz Flávio; MACIEL, Silvio. A teoria da "ratio cognoscendi" e a dúvida do juiz sobre as excludentes de ilicitude. Disponível em https://ww3.lfg.com.br/public_html/article.php?story=200903091520177, acesso em 21.03.2012.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro: Responsabilidade Civil. 6 ed. São Paulo: Saraiva, 2011, v. 4.

JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal. 19 ed. São Paulo: Saraiva, 1995, v. 1.

RIBEIRO, Moacyr Petrocelli de Ávila. Estatuto da Pessoa com Deficiência: A revisão da teoria das incapacidades e os reflexos jurídicos na ótica do notário e do registrador. Disponível em https://www.cnbsp.org.br/?pG=X19leGliZV9ub3RpY2lhcw==&in=MTA3NDQ=&filtro=1, acesso em 28.08.2015.

RODRIGUES, Silvio. Direito Civil: Responsabilidade Civil. 20 ed. rev. e atual. 5ª tiragem. São Paulo: Saraiva, 2008, v. 4.

ROXIN, Claus. Estudos de Direito Penal. Tradução de Luís Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.

TAVARES, Everkley Magno Freire; BEZERRA, Gilvante Correa. Interdisciplinariedade: uma concepção emergente no ensino superior do Direito, in Revista da ESMARN (Escola da Magistratura do Rio Grande do Norte), v. 3, n. 1, set. 2006.

WELZEL, Hans. Derecho Penal Alemán. 11 ed. 4 ed. en español. Traducción del alemán por los professores Juan Bustos Ramírez y Sergio Yáñez Pérez. Santiago: Editorial Jurídica de Chile, 2011.

ZIMIANI, Doroteu Trentini; HOEPPNER, Márcio Grama. Interdisciplinariedade no ensino do Direito, in Revista Unipar, v. 16, n. 2, abr./jun. 2008.

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1 Apud ZIMIANI, Doroteu Trentini; HOEPPNER, Márcio Grama. Interdisciplinariedade no ensino do Direito, in Revista Unipar, v. 16, n. 2, abr./jun. 2008, p. 106.

2 Zimiani e Hoeppner identificam a escassez de estudos interdisciplinares no âmbito do Direito, fazendo a seguinte advertência: “O que se observa no exercício da atividade jurídica é a existência de muitos profissionais com conhecimento fragmentado do Direito, voltados para especialidades, dissociados da realidade social, restritos a atuarem numa determinada área, por interesses estritamente particulares, sem contribuírem de maneira mais ampla para a justiça, contrariando o perfil que se espera dos operadores do Direito (op. cit., p. 104 e 105).

3 Sobre tal necessidade, confira-se: TAVARES, Everkley Magno Freire; BEZERRA, Gilvante Correa. Interdisciplinariedade: uma concepção emergente no ensino superior do Direito, in Revista da ESMARN (Escola da Magistratura do Rio Grande do Norte), v. 3, n. 1, set. 2006, p. 231-239.

4 Curso de Direito Civil Brasileiro: Teoria Geral do Direito Civil. 27 ed. São Paulo: Saraiva, 2010, v. 1, p. 72.

5 Direito Civil Brasileiro: Responsabilidade Civil. 6 ed. São Paulo: Saraiva, 2011, v. 4, p. 335.

6 Neste sentido: CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 18 ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 212.

7 No mesmo sentido: RODRIGUES, Silvio. Direito Civil: Responsabilidade Civil. 20 ed. rev. e atual. 5ª tiragem. São Paulo: Saraiva, 2008, v. 4, p. 148.

8 Exemplos: CPP, arts. 15 e 34.

9 Estatuto da Pessoa com Deficiência: A revisão da teoria das incapacidades e os reflexos jurídicos na ótica do notário e do registrador. Acesso em 28/8/2015.

10 JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal. 19 ed. São Paulo: Saraiva, 1995, v. 1, p. 397-397, em sentido diverso da concepção originária da teoria finalista da ação, de Hans Welzel, que é tripartida (Derecho Penal Alemán. 11 ed. 4 ed. en español. Traducción del alemán por los professores Juan Bustos Ramírez y Sergio Yáñez Pérez. Santiago: Editorial Jurídica de Chile, 2011, p. 77 e 87).

11 Apud GOMES, Luiz Flávio; MACIEL, Silvio. A teoria da "ratio cognoscendi" e a dúvida do juiz sobre as excludentes de ilicitude. Acesso em 21/3/2012.

12 Estudos de Direito Penal. Tradução de Luís Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 87.

13 Eis a lição de Reinhard Frank: "En la búsqueda de una expresión breve que contenga todos todos los mencionados componentes del concepto de culpabilidad, no encuentro otra que la reprochabilidad. Culpabilidad es reprochabilidad. Esta expresión no es linda, pero no conozco otra mejor" (Sobre la estructura del concepto de culpabilidad. Collección Maestros del Derecho Penal. Dirigida por Gonzalo D. Fernandes. Coordinada por Gustavo Eduardo Aboso. Traducción por Gustavo Eduardo Aboso y Tea Löw. 3 Reimp. Buenos Aires: Editorial IB de F, 2011, p. 39).

14 Op. cit., p. 403.

15 A Lei de Drogas (lei 11.343/06) também prevê a dependência e o efeito de droga decorrente de caso fortuito ou força maior como excludentes de imputabilidade, aplicáveis a qualquer infração penal e não apenas aos delitos relacionados a substâncias entorpecentes (art. 45, "caput").

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Colunista

Vitor Frederico Kümpel é juiz de Direito em São Paulo e doutor em Direito pela USP.