No último Registralhas, abordamos a origem dos juízes de paz no âmbito internacional, tal como sua origem em Portugal. Hoje daremos continuidade ao histórico lusitano, posto ser o mesmo da Justiça de Paz no Brasil.
O juiz de paz em Portugal começou da mesma forma que na Inglaterra, eram escolhidos os homens bons, sendo que sua figura veio a desaparecer com a nomeação régia de juízes1.
Em 1519 reaparece como conciliador, perdurando até a dominação espanhola e retornando com a Revolução Liberal, na qual a figura do Juiz de Paz se manteve igual até o CPC de 19392.
A legislação brasileira veio de Portugal, cumprindo relembrar que Império do Brasil3 era colônia da Corte Portuguesa. Dessa forma, a Justiça de Paz fora inserida no ordenamento brasileiro em 1827, após a independência e logo após a promulgação da Constituição de 1824.
Ainda que a lei dos Juízes de Paz date de três anos após a Constituição, já havia certa previsão na Carta Magna de 1824, em seus artigos 161 e 162, os quais tratam respectivamente da conciliação e regulação desse método alternativo de resolução de conflitos, determinado sua eletividade, tempo e forma de eleição4.
Assim, o escopo inicial desse instituto no Brasil era realizar a conciliação entre potenciais partes litigantes, antes que houvesse um processo judicial, tal como surgiu na Inglaterra.
Em 1934, com a Constituição do Estado Novo, a Justiça de Paz passa a ter as primeiras atribuição próprias, princípio da Justiça tal qual a conhecemos na atualidade, contudo com diferenças.
Conforme parágrafo 4º do artigo 104 da referida Carta Constitucional, "os Estados poderão manter a Justiça de Paz eletiva, fixando-lhe a competência, com ressalva de recurso das suas decisões para a Justiça comum".
Dessa forma, a Constituição de 1934 ainda não atribuiu à Justiça de Paz a atuação nos processos de casamento junto ao Registro Civil, delegando às legislações infraconstitucionais a realização dessa atividade. Cumpre salientar que a forma de escolher o juiz de paz estava apenas na Constituição de 1824, conforme artigo 162:
Art. 162. Para este fim haverá Juizes de Paz, os quaes serão electivos pelo mesmo tempo, e maneira, por que se elegem os Vereadores das Camaras. Suas attribuições, e Districtos serão regulados por Lei.
Com a Constituição de 1824, foram implementadas novidades à função da Justiça de Paz, finalmente permitindo à mesma operar no processo de habilitação de casamento, conforme dispôs artigo 124, inciso X:
Art 124 - Os Estados organizarão a sua Justiça, com observância dos arts. 95 a 97 e também dos seguintes princípios:
X - poderá ser instituída a Justiça de Paz temporária, com atribuição judiciária de substituição, exceto para julgamentos finais ou recorríveis, e competência para a habilitação e celebração de casamentos os outros atos previstos em lei.
Toma-se por conseguinte a forma da Justiça de Paz atual, limitando-a no tocante aos julgamentos, contudo atribuindo parte procedimental da habilitação de casamento.
Com a outorga da Constituição de 1967, conforme artigo 136, parágrafo 1º, alínea c, regula-se novamente a atividade:
Art 136 - Os Estados organizarão a sua Justiça, observados os arts. 108 a 112 desta Constituição e os dispositivos seguintes:
§ 1º - A lei poderá criar, mediante proposta do Tribunal de Justiça:
c) Justiça de Paz temporária, competente para habilitação e celebração de casamentos e outros atos previstos em lei e com atribuição judiciária de substituição, exceto para julgamentos finais ou irrecorríveis.
Referido texto foi advento da EC 1/69, dentro do contexto da ditadura militar. O escopo fundamentado no contexto do período era restringir as formas de acesso à Justiça, para que assim houvesse um controle político-militar maior. Dessa forma, a função que anteriormente tinha de auxiliar as Justiças Estaduais nos processos competentes fora retirada, ficando restrita à habilitação para casamentos, alguns atos e atribuição judiciária de fato, seu pressuposto de criação no Brasil, não mais poderia ser exercido em julgamentos finais e sem possibilidade de recorrer.
Outra mudança estava na criação e escolha dos juízes paz, sendo que na Constituição do Império era por meio de eleição, da mesma forma que vereadores da câmaras. Esse procedimento só voltou com a Constituição de 1988, até então a escolha era por meio dos chefes de Poderes.
Com a Constituição de 1988, num contexto de crescente democratização e em meio aos princípios decorrentes dessa forma de governo após um longo período de ditadura, por meio do artigo 98, inciso II dessa Magna Carta:
Art. 98. A União, no Distrito Federal e nos Territórios, e os Estados criarão:
II - justiça de paz, remunerada, composta de cidadãos eleitos pelo voto direto, universal e secreto, com mandato de quatro anos e competência para, na forma da lei, celebrar casamentos, verificar, de ofício ou em face de impugnação apresentada, o processo de habilitação e exercer atribuições conciliatórias, sem caráter jurisdicional, além de outras previstas na legislação.
Assim, o juiz de paz passa a ser eleito por meio do voto direto, com mandato de quatro anos. Não há disposição específica no tocante à reeleição, permanecendo com funções conciliatórias, competente ainda para celebrar casamentos e verificar de ofício ou por meio de impugnação o processo de habilitação.
O caráter jurisdicional continuou a ser limitado conforme legislação específica e estadual, sendo que no caso do DF, cabe à União. Como a Constituição apenas delimitou a competência há o questionamento com relação à limitação dessas legislações específicas, o que foi decidido por meio da ADIn 2.938, demonstrando a ementa abaixo resposta à questão da jurisdição e certas limitações à atuação do Juiz de Paz:
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI N. 13.454/00 DO ESTADO DE MINAS GERAIS. JUIZ DE PAZ. ELEIÇÃO E INVESTIDURA. SIMULTANEIDADE COM AS ELEIÇÕES MUNICIPAIS. PRINCÍPIO MAJORITÁRIO. PREVISÃO NO ART. 117, DA CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DE MINAS GERAIS. AUSÊNCIA DE IMPUGNAÇÃO. INVIABILIDADE DA AÇÃO DIRETA. 1. A viabilidade da ação direta reclama a impugnação. O conjunta dos preceitos que tratam da matéria, sob pena de inocuidade da própria declaração de inconstitucionalidade. 2. A ausência de impugnação do teor de preceitos constitucionais repetidos na lei impugnada impede o conhecimento da ação direta. Precedentes [ADI n. 2.132/MC, Relator o Ministro MOREIRA ALVES, DJ 05.04.2002; ADI n. 2.242, Relator o Ministro MOREIRA ALVES, DJ 19.12.2001 e ADI n. 2.215, Relator o Ministro CELSO DE MELLO, DJ 26.04.2001]. JUIZ DE PAZ. ELEIÇÃO E INVESTIDURA. APLICAÇÃO SUBSIDIÁRIA DO CÓDIGO ELEITORAL E DA LEGISLAÇÃO FEDERAL ESPECÍFICA. INCONSTITUCIONALIDADE. NORMA COGENTE. 3. Não há falar-se, no que tange à legislação atinente à criação da justiça de paz, em aplicação subsidiária do Código Eleitoral [Lei n. 4.737/65], bem como da legislação federal específica, de observância obrigatória em todo território nacional. JUIZ DE PAZ. ELEIÇÃO E INVESTIDURA. FILIAÇÃO PARTIDÁRIA. OBRIGATORIEDADE. PROCEDIMENTOS NECESSÁRIOS À REALIZAÇÃO DAS ELEIÇÕES. CONSTITUCIONALIDADE. ART. 14, § 3º, E 98, II, DA CB/88. COMPETÊNCIA FEDERAL. 4. A obrigatoriedade de filiação partidária para os candidatos a juiz de paz [art. 14, § 3º, da CB/88] decorre do sistema eleitoral constitucionalmente definido. 5. Lei estadual que disciplina os procedimentos necessários à realização das eleições para implementação da justiça de paz [art. 98, II, da CB/88] não invade, em ofensa ao princípio federativo, a competência da União para legislar sobre direito eleitoral [art. 22, I, da CB/88]. JUIZ DE PAZ. ELEIÇÃO E INVESTIDURA. FIXAÇÃO DE CONDIÇÕES DE ELEGIBILIDADE PARA CONCORRER ÀS ELEIÇÕES. INCONSTITUCIONALIDADE. COMPETÊNCIA DA UNIÃO. ART. 14 E ART. 22, I, DA CB/88. 6. A fixação por lei estadual de condições de elegibilidade em relação aos candidatos a juiz de paz, além das constitucionalmente previstas no art. 14, § 3º, invade a competência da União para legislar sobre direito eleitoral, definida no art. 22, I, da Constituição do Brasil. JUIZ DE PAZ. COMPETÊNCIAS FUNCIONAIS. ARRECADAR BENS DE AUSENTES OU VAGOS. FUNCIONAR COMO PERITO. NOMEAR ESCRIVÃO AD HOC. CONSTITUCIONALIDADE. MATÉRIA MERAMENTE ADMINISTRATIVA. COMPETÊNCIA FEDERAL. ART. 98, II, DA CB/88. 7. Lei estadual que define como competências funcionais dos juízes de paz a arrecadação provisória de bens de ausentes e vagos, nomeando escrivão ad hoc, e o funcionamento como perito em processos não invade, em ofensa ao princípio federativo, a competência da União para legislar sobre direito processual civil [art. 22, I, da CB/88]. JUIZ DE PAZ. COMPETÊNCIAS FUNCIONAIS. PROCESSAR AUTO DE CORPO DE DELITO. LAVRAR AUTO DE PRISÃO. RECUSA DA AUTORIDADE POLICIAL. INCONSTITUCIONALIDADE. PROCESSO PENAL. COMPETÊNCIA DA UNIÃO PARA LEGISLAR. ART. 22, I, DA CB/88. 8. Lei estadual que define como competências funcionais dos juízes de paz o processamento de auto de corpo de delito e a lavratura de auto de prisão, na hipótese de recusa da autoridade policial, invade a competência da União para legislar sobre direito processual penal [art. 22, I, da CB/88]. JUIZ DE PAZ. COMPETÊNCIAS FUNCIONAIS. PRESTAR ASSISTÊNCIA AO EMPREGADO NAS RESCISÕES DE CONTRATO DE TRABALHO. INEXISTÊNCIA DOS ÓRGÃOS PREVISTOS NO ART. 477 DA CLT. INCONSTITUCIONALIDADE. DIREITO DO TRABALHO. COMPETÊNCIA DA UNIÃO PARA LEGISLAR. ART. 22, I, DA CB/88. 9. Lei estadual que define como competências funcionais dos juízes de paz, na ausência dos órgãos previstos no art. 477 da CLT, a prestação de assistência ao empregado nas rescisões de contrato de trabalho, invade a competência da União para legislar sobre direito do trabalho [art. 22, I, da CB/88]. Função já assegurada pelo § 3º do mesmo preceito legal. JUIZ DE PAZ. COMPETÊNCIAS FUNCIONAIS. ZELAR PELA OBSERVÂNCIA DAS NORMAS RELATIVAS À DEFESA DO MEIO AMBIENTE E VIGILÂNCIA ECOLÓGICA SOBRE AS MATAS. PROVIDÊNCIAS NECESSÁRIAS AO SEU CUMPRIMENTO. CONSTITUCIONALIDADE. ART. 225 E 98, II, DA CB/88. 10. Lei estadual que define como competência funcional do juiz de paz zelar, na área territorial de sua jurisdição, pela observância das normas concernentes à defesa do meio ambiente e à vigilância sobre as matas, rios e fontes, tomando as providências necessárias ao seu cumprimento, está em consonância com o art. 225 da Constituição do Brasil, desde que sua atuação não importe em restrição às competências municipal, estadual e da União. JUIZ DE PAZ. PRERROGATIVAS. PRISÃO ESPECIAL. INCONSTITUCIONALIDADE. PROCESSO PENAL. COMPETÊNCIA DA UNIÃO PARA LEGISLAR. ART. 22, I, DA CB/88. DIREITO ASSEGURADO PELO ART. 112, § 2º, DA LOMAN [LC 35/75]. 11. Lei estadual que prevê em benefício dos juízes de paz o recolhimento a prisão especial invade a competência da União para legislar sobre direito processual penal [art. 22, I, da CB/88]. Direito já assegurado pelo art. 112, § 2º, da LOMAN [LC n. 35/75]. 12. Ação direta julgada parcialmente procedente.
(STF - ADI: 2938 MG , Relator: EROS GRAU, Data de Julgamento: 09/06/2005, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJ 09-12-2005 PP-00004 EMENT VOL-02217-2 PP-00199)
Assim, fixou-se a eleição do juiz de paz, incluindo-a no sistema eleitoral, e principalmente a atividade da Justiça de Paz como sem caráter jurisdicional. No trato dessa questão, inclusive, houve ampla análise pelo STF na ADIn 954, concluindo ser atividade qualificada como magistratura eletiva, com competência de caráter judiciário – inerente à conciliação – mas, sem poder exercer atividade jurisdicional, algo vedado constitucionalmente no artigo 98, inciso II.
A Justiça de Paz surgiu em um contexto bastante turbulento da história, demonstrando-se, ainda que com inúmeras modificações, ser fundamental como órgão de auxílio ao Judiciário, atuando em situações que demandariam tempo do Judiciário e são de grande relevância para a sociedade.
Atualmente, permanece nos países que tratamos, cada qual com suas peculiaridades devido aos seus sistemas jurídicos, bem como evolução histórica, atuando em consonância com as demandas políticas e sociais de cada período.
No Brasil, bastante conhecida é a função do juiz de paz na "celebração"5 do casamento. Cabe aos estados exemplificar suas funções e até mesmo o âmbito da jurisdição dos Juízes de Paz, mas também em inúmeros conflitos, prevenindo que evoluam e até mesmo sejam "judicializados", atuando de fato como auxiliares do povo como um todo.
O estado de MG é um dos poucos que regulamentou a atividade, consoante demanda de cada estado. Em SP, por exemplo, há uma espécie de "concurso"6, para o mesmo, ainda que haja a previsão de eleição direta, o que além de dificultar a atuação dos mesmos para com a sociedade, acaba por ferir a disposição constitucional.
Fora apresentado o PL 705/13, pelo deputado estadual Edmir Chedid (DEM), regulamentando a Justiça de Paz no estado de SP, conforme prevê a CF (art. 98, inciso II). O projeto, todavia, foi arquivado em março desse ano.
Urge, dessa forma, a necessidade de regulamentar melhor a Justiça de Paz, seja no tocante à sua atuação, especificidades e atribuições, de forma a permitir que essa atividade tão relevante ao longo da história e na atualidade esteja de acordo com o atual contexto de Democracia.
É possível concluir, portanto, que a Justiça de paz, como o próprio nome diz, e um instrumento extremamente eficaz na pacificação social, na linha de raciocínio do novo CPC que prega uma verdadeira justiça restaurativa por meio de conciliação, arbitragem e mediação sem gerar grandes custos ao Estado. A instrumentalização definitiva da Justiça de Paz, para que possa dirimir questões referentes ao processo de habilitação, outras atribuições administrativas em matéria registral e principalmente, a conciliação e pacificação da sociedade é além do resgate histórico de instituição tão importante, verdadeira consecução de uma justiça moderna.
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Bibliografia
CESCA Jane Elisabeth, NUNES Thomaz Cesca. Da necessidade da evolução do Direito e da Justiça: Os Meios não adversariais de resolução de conflitos no Brasil e no Direito Alienígena. Revista Eletrônica do Curso de Direito da UFSM, Jul. 2006, Vol. 1, Número 2
PEDROSO João, TRINCÃO Catarina e DIAS, João Paulo. Percursos da informalização e da desjudicialização: Por caminhos da reforma da administração da justiça. Coimbra OPJP, 2001
BRASIL, Constituição de 1824.
BRASIL, Constituição de 1988.
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1 Cf. PEDROSO João, TRINCÃO Catarina e DIAS, João Paulo. Percursos da informalização e da desjudicialização: Por caminhos da reforma da administração da justiça. Coimbra OPJP, 2001, pp. 213 Apud CESCA Jane Elisabeth, NUNES Thomaz Cesca. Da necessidade da evolução do Direito e da Justiça: Os Meios não adversariais de resolução de conflitos no Brasil e no Direito Alienígena. Revista Eletrônica do Curso de Direito da UFSM, Jul. 2006, Vol. 1, Número 2, pp. 16.
2 Cf. PEDROSO João, TRINCÃO Catarina e DIAS, João Paulo. Percursos da informalização e da desjudicialização: Por caminhos da reforma da administração da justiça. Coimbra OPJP, 2001, pp. 213 Apud CESCA Jane Elisabeth, NUNES Thomaz Cesca. Da necessidade da evolução do Direito e da Justiça: Os Meios não adversariais de resolução de conflitos no Brasil e no Direito Alienígena. Revista Eletrônica do Curso de Direito da UFSM, Jul. 2006, Vol. 1, Número 2, pp. 16.
3 Denominação do período.
4 Artigo 162 da Constituição de 1824 diz, acerca dos juízes de paz previstos no dispositivo anterior que “Para este fim, haverá juizes de paz, os quais serão eletivos pelo mesmo tempo e maneira que se elegem os vereadores das Câmaras, suas atribuições e serao regulados por lei própria”
5 Termo coloquial, restando correta a atribuição no procedimento de habilitação do casamento.
6 Cita-se como exemplo o último edital para juiz de paz do Estado de São Paulo, o qual dispunha:
"DO PROCESSO SELETIVO
O processo de seleção será composto de duas fases, quais sejam:
1.1.A primeira fase, de caráter eliminatório, será realizada pela Divisão de Justiça da Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania, cuja finalidade é analisar a regularidade da documentação apresentada;
1.2.A segunda fase, de caráter classificatório, será realizada pela Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania, com o objetivo de apreciar e selecionar, de forma discricionária, os(as) candidatos(as) cujas documentações foram verificadas regulares na primeira fase".
*O artigo foi escrito em coautoria com Ana Laura Pongeluppi, estudante da Faculdade de Direito da USP e pesquisadora jurídica.