O Tribunal Marítimo é um órgão autônomo cuja função mais conhecida é a apreciação de fatos, como acidentes, na água, decorrentes do ato de navegação, seja por meio de embarcações nacionais ou mesmo estrangeiras em território brasileiro, sendo esse conceito advindo da lei do Tribunal1. Sua extensão, definida na Convenção de 19822, está nas águas interiores, mar territorial, Zona Econômica Exclusiva e Plataforma Continental. Dessa forma, é na figura do Tribunal Marítimo que litígios de navegação são julgados, sendo grande auxiliar do Poder Judiciário.
A criação do Tribunal Marítimo ocorreu devido à necessidade de julgamento dos acidentes marítimos. Era um momento de reformulação política, com o fim da República Velha, com reformulação política, bem como período de investimentos estrangeiros, com o comércio internacional fomentado pela industrialização e pela cultura liberalista recém vigente3, natural que o comércio marítimo fosse intensificado, posto que era o meio de transporte internacional viável nos anos 30, e também o numero de acidentes dessa ordem aumentasse consideravelmente4.
Surge então a necessidade de um órgão competente para julgar e averiguar os acidentes e casos da navegação, já que até então fazia-se uso de Tribunais estrangeiros, quando o caso envolvia embarcações extraterritoriais em águas nacionais, colocando-se como uma necessidade para o pleno exercício de soberania do país, ou mesmo nos casos em que se fazia uso da justiça comum, carente de conhecimento específico para análise e julgamento das peculiaridades do transporte aquático.
O episódio mais marcante do período foi o acidente do navio alemão Baden5, em 24 de outubro de 1930, que se encontrava na Baía de Guanabara carioca. O navio estava deixando o porto do Rio de Janeiro, sendo notificado por meio de avisos – tiros de pólvora – que não poderia fazê-lo. Ignorando a mensagem, o comandante do navio Baden prosseguiu, sendo então atingido por um tiro de canhão de ordem do comandante de artilharia.
O resultado desse episódio foi desastroso, com 22 mortos e 55 feridos. Além da repercussão nacional, o caso refletiu também no âmbito internacional posto que o navio era alemão e vinha da Espanha seguindo para a Argentina. Como não havia nenhum órgão especializado para tratar e julgar do caso, no Brasil houve apenas um inquérito administrativo, de forma que a Alemanha passou a julgar o litígio em seu Tribunal Marítimo, a Corte Marítima de Hamburgo.
Esse evento demonstrou a já latente necessidade por um órgão específico para aferição e julgamento de acidentes marítimos, de forma que foi elaborado um anteprojeto6 prevendo a criação de Tribunais Marítimos Administrativos pela subcomissão parlamentar de Direito Marítimo.
O anteprojeto proposto data de 19317, apresentado por Hugo Gutierrez Simas, José Domingos Rache e José Figueira de Almeida, o qual estabelecia a criação de seis tribunais marítimos, em Belém (PA), um em Recife (PE), outro na Bahia, no Distrito Federal, em Santos (SP) e no Rio Grande (RS), bem como do Supremo Tribunal na capital, Rio de Janeiro. Rapidamente houve a publicação do mesmo, posteriormente havendo Decreto autorizando a criação dos Tribunais Marítimos Administrativos, sendo que apenas o do Rio de Janeiro for a efetivamente criado, posto ser o local de maior necessidade – então capital do Brasil – e pela ainda tímida divisão circunscricional do país.
Esse primeiro órgão foi criado no Brasil por meio do decreto 20.829 de 21 de dezembro de 1931, no contexto inserção da República Nova, no qual pairavam inúmeras mudanças legislativas, a exemplo do Código Penal, bem como as matérias de processo civil e penal cuja competência passou a ser estadual.
No tocante à legislação do Tribunal Marítimo, foi criada uma Comissão para organizar um regulamento da Diretoria Mercante, no qual constaria uma subcomissão para regulamentar o Tribunal. Em 1933, o Decreto 22.900 o desvincula da Direitoria da Marinha Mercante, ainda que sua primeira localização tenha sido na Diretoria, sendo o prédio adaptado para seu um tribunal. Passou a ser orgão sujeito à subordinação do Ministro da Marinha, datando apenas de 1934 a aprovação do Regulamento do órgão, por meio do Decreto nº 24.585 de 5 de julho desse ano, considerado o oficial de criação.
O decreto 24.585/34 dispõe que o Tribunal terá jurisdição sobre toda a costa, mares interiores e vias navegáveis8, não adotando as circunscrições marítimas, previstas no anteprojeto, tornando esse Tribunal Marítimo no Rio de Janeiro o único competente por todo o território nacional.
Essa Corte foi inicialmente composta por um presidente, o diretor Geral da Marinha Mercante, e mais cinco juízes, o Capitão dos Portos do DF e Estado do RJ, um professor de Direito marítimo em instituto oficial de ensino superior ou bacharel em direto notoriamente especializado na matéria, com mais de dez anos de atividade forense; um delegado das Sociedades dos Oficiais da Marinha Mercante, com personalidade jurídica; um delegado dos armadores nacionais; e um delegado das companhias de seguros nacionais, com sedeou agência no Distrito Federal9.
Efetivamente, apenas em 1935 o Tribunal passou a exercer suas funções, precisamento no dia 20 de fevereiro quando houve a reunião dos membros em uma sessão preparatória. Toda esse processo formal demonstra a influência juridical alemã na instauração do órgão. Desde a pressão pelas autoridades germânicas após o episódio com o navio Baden, até o anteprojeto, cuja organização baseava-se totalmente no Tribunal alemão, inclusive no que tange à divisão em circunscrições, que só anos depois seria efetivado. Até mesmo a primeira biblioteca do Tribunal continha julgados alemães, considerados base para o exercício das atividades. Esse período, portanto, retrata o esforço brasileiro em adaptar o modelo alemão às necessidades brasileiras.
Essa estrutura se manteve por um longo período, apenas a Diretoria Mercante, atual Capitania dos Portos10, em 1940 mudou de lugar, sendo que o Tribunal continua na mesma localização até os dias atuais.
Como mencionado, o decreto 24.585/34 foi a primeira legislação acerca do "Tribunal Marítimo Administrativo"11, competindo a esse fixar a natureza e extensão dos acidentes da navegação, examinando a causa determinante e circunstâncias em que se verificarem de embarcações mercantes nacionais, em águas nacionais ou estrangeiras, e com embarcações estrangeiras, mercantes ou não, excetuadas as militares, em águas nacionais12.
Sua jurisdição era exercida sobre toda a costa, mares interiores e vias navegaveis, ainda que tivesse competência no que tange a acidentes de embarcações brasileiras no estrangeiro. Havia ainda atribuições subsidiárias, como por exemplo dar pareceres e até propor ao poder público recompensas aos que prestaram serviços à marinha Mercante ou em acidentes marítimos, tendo ainda algumas funções administrativas de auxílio à Marinha Mercante13. Merecem destaque as deliberações e decisões do Tribunal, apresentadas ao Conselho da Marinha mercante para que esse aperfeiçoasse a regulamentação e legislação de materias concernentes.
O Tribunal vem cumprindo, ainda, a realização do registro14 das propriedades das embarcações mercantes nacionais, havendo prazo de seis meses para que os proprietários solicitassem documento e regularizassem sua situação.
No ano de 1945, com o advento do decreto lei 7.676, passou a ser denominado apenas Tribunal Marítimo, sem o termo "Administrativo", ainda efetivamente sua atribuições permanecessem a mesma. houve uma reorganização do Tribunal Marítimo e, além disso, foi suprimido o termo Administrativo, o que em nada alterou sua atuação e atribuições.
Quase nove anos depois, foi publicada a lei 2.180, de 5 de fevereiro de 1954, em vigor atualmente, Lei do Tribunal Marítimo. Apesar da entrada em vigor dessas duas legislações, o decreto 24.585/34 só seria expressamente revogado por outro de 10 de maio de 1991. Ainda assim, até esse ano conviveram harmonicamente as legislações.
No ano de 1957, devido à necessidade de normas para uniformizar e regular os inquéritos realizados, foi publicada a obra "Acidentes de Navegação e Registro de Propriedade Marítima", contendo procedimentos a serem adotados para a instauração de inquéritos.
Atualmente, foram publicadas leis, decretos e documentos normativos para complementar a organização e funcionamento, sendo composto por sete juízes de características profissionais determinadas por lei. Essas características são ser bacharel em Direito especializado em Direito Marítimo e em Direito Internacional; especialista em navios e navegação e oficiais da Marinha15. São escolhidos pelo Poder Executivo e vinculados ao Ministério da Marinha16 inclusive no tocante ao orçamento e provimento desse para funcionamento do órgão.
O Tribunal Marítimo continua apresentando "jurisdição"17 em todo o território nacional, definição dessa retomada da da Convenção de 198218, a qual define essa extensão da soberania do Estado costeiro indo além do território e águas interiors. Trata-se de órgão autônomo e auxiliar do Poder Judiciário, vinculado ao Comando da Marinha, permanecendo como órgão julgador de acidentes e fatos da navegação marítima, fluvial e lacustre, bem como mantenedor do Registro da Propriedade Marítima, de armadores de navios brasileiros, do Registro Especial Brasileiro (REB) e dos ônus que incidem sobre as embarcações nacionais19.
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Bibliografia
ACCIOLY, Hidelbrando, NASCIMENTO E SILVA, G. E. Do, CASELLA, Paulo Borba. Manual de Direito Internacional Público, São Paulo, Saraiva, 2009
SANTOS, Maria Gonzáles Ferreira dos. Ana'lise de acidentes com embarcac¸o~es em a'guas sob jurisdic¸a~o brasileira – uma abordagem preventiva.
RESEK Francisco. Direito Internacional Público, São Paulo, Saraiva, 2010.
TRIBUNAL MARÍTIMO, 80 anos do Tribunal Marítimo. Rio de Janeiro, O Tribunal, 2014.
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1 Artigo 10, Lei nº 3.543 de 11 de fevereiro de 1959.
2 H. ACCIOLY, G.E DO NASCIMENTO E SILVA, P. B. CASELLA, Manual de Direito Internacional Público, São Paulo, Saraiva, 2009.
3 J.R. de LIMA LOPES, O direito na história, São Paulo, Max Limonad, 2002, p. 380 a 381.
4 Site do Portal do Tribunal Marítimo.
5 TRIBUNAL MARÍTIMO, 80 anos do Tribunal Marítimo. Rio de Janeiro, O Tribunal, 2014, p. 19.
6 M. G. F DOS SANTOS, Ana'lise de acidentes com embarcac¸o~es em a'guas sob jurisdic¸a~o brasileira – uma abordagem preventiva. Dissertação de mestrado, 2013, p. 40. https://dissertacoes.poli.ufrj.br/dissertacoes/dissertpoli1163.pdf
7 TRIBUNAL MARÍTIMO, 80 anos do Tribunal Marítimo. Rio de Janeiro, O Tribunal, 2014, p. 120
8 BRASIL, Decreto 24.585 de 5 de Julho de 1934.
9 TRIBUNAL MARÍTIMO, 80 anos do Tribunal Marítimo. Rio de Janeiro, O Tribunal, 2014, p. 21.
10 Órgãos cuja função é fazer o registro e a fiscalização dos navios estrangeiros, conforme Lei nº 7.652 de 3 de fevereiro de 1988.
11 Denominação oficial do Decreto 24.585 de 5 de julho de 1934.
12 BRASIL. Artigo 10, Decreto 24.585 de 5 de julho de 1934.
13 BRASIL. Decreto 24.585 de 5 de julho de 1934.
14 BRASIL. Lei nº 7.652 de 3 de fevereiro de 1988.
15 BRASIL, Lei nº 3.543 de 11 de fevereiro de 1959, artigo 2º.
16 BRASIL, Lei nº 3.543 de 11 de fevereiro de 1959, artigo 1º.
17 Por ser órgão apenas auxiliar do Judiciário e suas decisões não serem fazerem coisa julgada material, sujeitando ao reexame dos Tribunais, trata-se de jurisdição anômala.
18 F. RESEK. Direito Internacional Público, São Paulo, Saraiva, 2010, p. 385.
19 BRASIL, Lei 2.180 de 5 de fevereiro de 1954.
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*O artigo foi escrito em coautoria com Ana Laura Pongeluppi, graduanda da Faculdade de Direito da USP e pesquisadora jurídica.