Como vimos, a doutrina não é pacífica no que tange à possibilidade de inclusão de cláusulas não patrimoniais no pacto antenupcial, apesar de caminhar nesse sentido, até mesmo por uma tendência à despatrimonialização do Direito Privado como um todo. As divergências, no entanto, não se limitam a essa questão, alcançando as próprias cláusulas patrimoniais, como veremos nessa coluna.
O art. 256 do Código de 1916, versava que "é lícito aos nubentes, antes de celebrado o casamento, estipular, quanto aos seus bens, o que lhes aprouver", disposição esta reproduzida no Código atual, no art. 1639. O parágrafo único do artigo 1.640, no entanto, trouxe uma novidade apta a abalar as certezas relativas à amplitude dessa liberdade de escolha, dispondo que "poderão os nubentes, no processo de habilitação, optar por qualquer dos regimes que este código regula".
Ao prever a possibilidade de adoção pelos nubentes de qualquer dos regimes previstos no código o legislador estaria limitando o regime de bens a um desses regimes? Se não, qual o motivo da inserção desse parágrafo no novo Código?
A doutrina brasileira tradicionalmente consolidou o entendimento admitindo o princípio da livre estipulação do regime de bens numa acepção ampla, ou seja, que não restringe essa eleição do regime aos regimes regulados no Código. Nesse sentido, afirma-se que os nubentes podem não apenas escolher um dos quatro regimes legais, como também combiná-los, ou até criar regimes novos, desde que conformes à lei e à natureza do casamento1.
Esse modelo foi adotado em legislações como a francesa2 e a espanhola3. Há, no entanto, sistemas que optaram por circunscrever a liberdade de eleição do regime de bens àqueles elencados em lei, como a suíça e a mexicana4.
Deve-se recordar que o quadro dos princípios contratuais no Código anterior era o do século XIX, e todos os códigos desse século, a partir do Código Civil francês, se apresentavam fundamentalmente assentados sobre a ideia de vontade autonomamente declarada. Os contratos, nesse contexto de Estado Liberal, eram espaços de autonomia que precisavam ser garantidos, isto é, mantidos livres da interferência do Estado. Nesse sentido, nada mais condizente aos valores da época que conceder aos nubentes a maior liberdade possível para que pactuassem seu regime de bens.
O Código de 2002, no entanto, teve sua gênese num cenário principiológico distinto. Essa diferença pode ser atribuída à mudança do modelo jurídico do Estado liberal para o Estado de bem estar social, com uma consequente ênfase do ordenamento interventivo no sentido de preservar valores sociais fundamentais5.
Nesse contexto, houve naturalmente certa redução da margem de autonomia concedida aos particulares em suas relações jurídicas, fenômeno este conhecido por dirigismo contratual6. Assim, a inclusão do parágrafo único do art. 1.640, se vista como manifestação dessa tendência, poderia ser interpretada como uma restrição à liberdade de eleição do regime de bens, em prol da garantia dos direitos patrimoniais inerentes ao casamento e da segurança jurídica, tanto dos nubentes, quanto de terceiros.
No que tange aos terceiros, entra em relevo a questão da publicidade, a qual a lei procura assegurar pela exigência de registro do pacto antenupcial. Ora, para garantir a ciência de terceiros acerca das normas que regem o regime de bens, os nubentes precisariam andar sempre munidos de uma copia do pacto em sua certidão de casamento? Ou, ao contrário, restaria ao terceiro o prejuízo advindo da incerteza que a infinidade de pactuações diversas possíveis acarreta?
A interpretação desse parágrafo se mostra ainda mais delicada quando pensamos na operacionalidade do sistema registral. De fato, é requisito essencial do pacto antenupcial a forma pública, então este deve ser averbado na matrícula do imóvel. Ora, para que se dê o registro é preciso que o pacto esteja de acordo com o arcabouço jurídico que o regula, ou seja, que ele seja qualificado positivamente. Mas seria insustentável para o registrador fazer a qualificação dos diversos pactos antenupciais que chegam a registro se os cônjuges pudessem pactuar o que lhes aprouvesse, emprestando regimes estrangeiros ou inventando regimes novos, por exemplo.
1.4.2 A súmula 337 e o regime de separação obrigatória
Apesar de a regra geral atinente ao regime de bens ser a liberdade de escolha – entendida ora de forma ampla, ora de forma restrita e limitada aos quatro regimes do Código, como vimos – há certos casos em que a lei define apriorística e coercitivamente o regime de bens que vigirá em determinado matrimônio, e nestes casos aplica-se o chamado Regime de Separação legal ou obrigatória de bens.
Por se tratar de regime imposto por lei, e que, portanto, não faz necessário o pacto antenupcial, depreendemos que deva haver alguma motivação que induziu o legislador a inclui-lo no ordenamento, o que pode ser nitidamente percebido a partir de breve leitura do dispositivo legal:
Art. 1.641: É obrigatório o regime da separação de bens no casamento:
I – das pessoas que o contraírem com inobservância das causas suspensivas da celebração do casamento;
II – da pessoa maior de setenta anos
III – de todos os que dependerem, para casar, de suprimento judicial.
Do inciso I do aludido dispositivo, inferimos que o regime de separação legal aos casos de inobservância das causas suspensivas de celebração do casamento tem o objetivo de evitar confusão patrimonial de velhas relações com o novo casamento.
Já nos incisos II e III, podemos reunir e presumir da intenção legiferante a intenção protetiva quanto aos bens jurídicos tutelados. Por serem pessoas com maior vulnerabilidade afetiva e jurídica, o ordenamento ressalva a si a prerrogativa de impor-lhes o regime legal, para protege-los de oportunistas, e desestimular golpes de natureza pecuniária que possam abalar o instituto do casamento.
O que nos parecia imediato e nítido, no entanto, sofreu razoável alteração quando o Supremo Tribunal Federal editou a súmula 377, que dispõe: "no regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento".
Em poucas palavras, a Corte Suprema impingiu fortes consequências ao regime de separação legal de bens. Anteriormente, a única diferença entre o regime de separação legal e aquele convencionado, era a própria imposição legal, ou seja, era o mesmo regime, ora sendo aplicado em comum acordo entre os nubentes, ora sendo imposto pela lei pelas razões de que tratamos acima. Partindo-se de sua implementação, no entanto, o regime legal passa a contar com a comunicação das massas de bens dos cônjuges, desde que adquiridos pelo esforço comum na constância do casamento7.
Ora, se a maior característica do regime de separação de bens é justamente a incomunicabilidade dos bens adquiridos na constância do casamento, porque esse elemento não foi mantido no regime obrigatório, cuja única diferença em tese seria a coercitividade?
Antes de tudo, é preciso analisar o contexto em que a súmula foi editada. Em 1964, ano de sua publicação, vigia o Código Civil de 1916, que dispunha, em seu art. 259, que prevaleceriam, se nada convencionado em diverso, os princípios da comunhão parcial, quanto à comunicação dos adquiridos na constância do casamento, a qualquer outro regime. Ora, foi sobre esse fundamento legal que se erigiu a súmula 377. O objetivo dessa norma era proteger a mulher, que à época era ainda considerada relativamente incapaz e em muitos casos não tinha atividade remunerada, ficando assim muito fragilizada pela incomunicabilidade de bens.
Esse contexto mudou substancialmente nas últimas décadas. A mulher não apenas é hoje equiparada constitucionalmente ao homem em tudo, como também, no plano dos fatos, conquistou uma boa parcela do mercado de trabalho. A proteção que antes fazia-se imperativa, atualmente não encontra mais razão de ser. Por isso mesmo o art. 259 foi revogado. Mas então porque manter vigente a súmula?
Como vimos, o intuito da imposição do regime de separação de bens é proteger o patrimônio do cônjuge tido como vulnerável, como os maiores de 70 anos, que representam a maioria dos casos. Mas se é assim, o regime de separação convencional não cumpriria essa mesma função, pois impediria a comunicação dos bens? Por outro lado, a súmula possibilita que os bens adquiridos por esforço comum se comuniquem, flexibilizando a imposição legal em prol da igualdade entre os cônjuges e o equilíbrio da relação. Nesse sentido, a convenção de um regime de separação total, apesar de atender a primeira vista o intuito protetivo da regra, violaria a tutela imposta pela sumula, que é menos superficial.
Por exemplo, se uma senhora de 80 anos casa-se com um rapaz de 20, o regime será o de separação legal de bens, ou seja, os bens dos cônjuges não se comunicarão pelas núpcias. Impede-se, com isso, o famigerado "golpe do baú". Por outro lado, isso não impede que os cônjuges somem esforços para adquirir determinados bens durante o casamento. Seria justo que um bem adquirido pelo esforço de ambos, mas titularizado pelo rapaz, não pudesse se comunicar à senhora por conta de um regime cujo escopo deveria ser justamente sua proteção?
Nesse sentido, não se poderia admitir a estipulação de um regime de separação total nas hipóteses previstas no art. 1.641, ou seja, nos casos legais de regime obrigatório.
1.4.3 Inalterabilidade do regime de bens.
Até o Código de 2002 vigia o princípio da imutabilidade do regime de bens. Uma vez escolhido, ou imposto, o regime de bens ao casal, este não poderia ser mudado na constância do casamento, como forma de proteger não apenas os cônjuges como também a terceiros. Atualmente, o princípio da imutabilidade foi mitigado, possibilitando a alteração mediante alvará judicial, de acordo com o artigo 1.639, paragrafo 2o, dando assim maior autonomia às partes para determinar os rumos do próprio patrimônio8.
Nesse aspecto, entra em relevo a questão do pacto a termo. O estabelecimento apriorístico de um termo para o regime de bens violaria a segurança jurídica que o princípio da imutabilidade objetivava proteger? Afinal, o fim de um regime trata-se no fundo de uma mudança no regime de bens. Mas, estando previsto no próprio pacto, e tendo uma data predeterminada, não seria exatamente imprevisível, uma vez que o pacto é dotado de plena publicidade.
Por outro lado, para a mudança do pacto na constância do casamento é necessário o alvará judicial. Por analogia, poder-se-ia possibilitar o termo, mas submetendo a mudança que ele implica ao alvará judicial, garantindo assim a segurança tanto dos cônjuges quanto de terceiros, apesar de garantir simultaneamente certa liberdade aos cônjuges.
Com essas reflexões, desejamos aos nossos leitores uma semana de bênçãos e até o próximo Registralhas!
Bibliografia
Gonçalves, Carlos Roberto, Direito Civil brasileiro, v. VI, 7ª ed., São Paulo, Saraiva, 2010.
Maluf, Carlos Alberto D., Curso de Direito de Família, São Paulo, Saraiva, 2013.
Pereira, Caio Mario da Silva, Instituições de Direito Civil, v. V, 16ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2006.
Pereira, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, v. III, 10a ed., Rio de Janeiro, Forense, 2001.
Pereira, Lafayette Rodrigues, Direitos de Família, Brasília, Senado Federal, Conselho Editorial: Superior Tribunal de Justiça, 2004.
Rodrigues, Silvio, Direito Civil, v. VI, São Paulo, Saraiva, 2002.
Venosa, Silvio de Salvo, Teoria Geral dos Contratos, v. III, 3a ed., São Paulo, Atlas, 2003.
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*O artigo foi escrito em coautoria com Giselle Viana, graduanda da Faculdade de Direito da USP e pesquisadora jurídica.
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1Nesse sentido, v.d. C. R. Gonçalves, Direito Civil brasileiro, v. VI, 7ª ed., São Paulo, Saraiva, 2010, p. 430; L. R. Pereira, Direitos de Família, Brasília, Senado Federal, Conselho Editorial: Superior Tribunal de Justiça, 2004, p. 189; C. M. S. Pereira, Instituições de Direito Civil, v. V, 16ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2006; C. A. D. Maluf, Curso de Direito de Família, São Paulo, Saraiva, 2013, p. 243; S. Rodrigues, v. VI, São Paulo, Saraiva, 2002, p. 174-175.
2Diz o artigo 1.387 do Código francês: "La loi ne régit l’association conjugale, quant aux biens, qu’a défaut de conventions spéciales, que les époux peuvent faire comme ils lê jugent à propôs, pourvu qu’elles me soient pás contraíres aux bonnes moeurs ni aux disposition qui suivent."
3Segundo o código civl espanhol, "El régimen económico del matrimonio será el que los cónyuges estipulen en capitulaciones matrimoniales, sin otras limitaciones que las establecidas en este Código."
4S. Rodrigues, Direito Civil, v. VI, São Paulo, Saraiva, 2002, p. 175.
5S. de S. Venosa, Teoria Geral dos Contratos, v. III, 3a ed., São Paulo, Atlas, 2003, p 45.
6C. M. da Silva, Instituições de Direito Civil, 10a ed., v.III, Rio de Janeiro, Forense, 2001.
7C. R. Gonçalves, Direito Civil brasileiro, v. VI, 7ª ed., São Paulo, Saraiva, 2010, p. 423.
8L. R. Pereira, Direitos de Família, Brasília, Senado Federal, Conselho Editorial: Superior Tribunal de Justiça, 2004, pp. 187-189.