Na coluna de hoje analisaremos a alienação fiduciária de automóveis, com ênfase no procedimento da ação de busca e apreensão, introduzida pelo decreto 911/69, posteriormente modificado pela lei 10.931/2004. A ideia é, após breve conceituação do instituto, trabalhar o procedimento de busca e apreensão antes e depois das modificações introduzidas pela referida lei, bem como suas consequências no sistema como um todo.
Segundo o artigo 1.361 do Código Civil, considera-se fiduciária a propriedade resolúvel de coisa móvel infungível que o devedor com o escopo de garantia, transfere ao credor. Sobre este conceito, não é demais ressaltar, conforme discutido em colunas anteriores, que a alienação fiduciária é um fenômeno distinto da propriedade resolúvel, embora o próprio Código faça a confusão. O credor fiduciário ao celebrar o negócio não se torna proprietário do bem, muito menos o devedor fiduciante, titular reivindicante. O fundamento, para tanto, consiste no fato que embora deixe de ser de titularidade do devedor, o bem não ingressa diretamente no patrimônio do credor, na verdade, o que temos é um patrimônio afetado, desprovido de titular certo. Com efeito, o bem permanece como se tivesse sido abandonado ou renunciado, conservando-se em um "limbo jurídico", assemelhando-se à coisa fora do comercio, porém, aqui é por livre arbítrio das partes. Portanto, a alienação fiduciária não se confunde com propriedade resolúvel e, muito menos, com direito de garantia, constituindo, na verdade, instituto sui generis no universo jurídico.
Na prática, a alienação fiduciária de bens móveis é comum quando um comprador adquire um bem a crédito e permanece como possuidor direto e depositário do mesmo, respondendo por todos os encargos civis e penais a ele relacionados. O credor, por sua vez, toma o próprio bem em garantia e a propriedade somente é consolidada nas mãos do devedor fiduciante no momento da quitação integral da dívida. No caso dos automóveis, a alienação é registrada no documento de posse do veículo.
Desse modo, temos um instituto amplamente utilizado no Brasil, sobretudo, na compra de automóveis. O que tem ocorrido é também a tendência da alienação fiduciária substituir as garantias reais clássicas como o penhor, a anticrese e a hipoteca, pois sua estrutura jurídica, principalmente no que toca ao direito obrigacional e ao direito das coisas, é mais vantajosa tanto para o credor quanto para o devedor, favorecendo, dessa forma, a expansão do crédito, e, por conseguinte, o mercado de automotores. Em contrapartida, não há como negar que o instituto também tem se tornado a discussão principal de diversos processos.
Uma das discussões envolve o processo de busca e apreensão do bem móvel em caso de inadimplemento parcial, ou seja, de mora. Introduzido pelo Decreto lei 911/69, o procedimento foi alterado em 2004 pela lei 10.931, que, dentre as várias alterações, reduziu de quinze para cinco dias o prazo para purgação da mora pelo devedor fiduciante e para a consolidação da propriedade fiduciária nas mãos do credor. Vale breve análise da regulamentação em particular antes e após a lei de 2004.
Pelo decreto 911/69, em seu formato anterior à lei 10.931/04, despachada a inicial e executada a liminar, o réu era citado para em três dias apresentar contestação e/ou se já tiver pago 40% do preço financiado, purgar a mora. No caso da contestação, o devedor poderia somente alegar ou o pagamento do débito ou o cumprimento das obrigações contratuais. Para a purgação da mora, o juiz, tempestivamente agendaria prazo final não superior a dez dias. Se, mesmo assim, a mora não fosse purgada (independentemente da contestação), cinco dias após o decurso do prazo de defesa o juiz proferiria a sentença, consolidando a propriedade plena e exclusiva nas mãos do proprietário fiduciário (art. 3º, parágrafos). Tínhamos, dessa forma, um procedimento que garantia um prazo de quinze dias para a purgação da mora e direito de contestação anterior à consolidação da propriedade. Dessa forma, o sistema seguramente alicerçava-se nos princípios do devido processo legal, ampla defesa e contraditório, garantindo assim, tanto o devedor fiduciante, como o credor fiduciário.
Todavia, a lei 10.931/2004, pensada para o fomento do mercado, trouxe regras que alteraram o procedimento de busca e apreensão, em prejuízo do devedor fiduciante. O artigo 56 da lei conferiu nova redação aos parágrafos do artigo 3º do decreto-lei 911/69. Agora, cinco dias após o proferimento da liminar, a propriedade é consolidada nas mãos do credor fiduciário, que já poderá requerer a expedição de novo certificado de registro de propriedade em seu próprio nome ou de terceiro por ele indicado. Para tanto, os únicos requisitos são os atinentes à petição inicial (art. 282 CPC) que dá causa à liminar, destacando o valor da causa dado pelo saldo devedor em aberto1 e as provas indispensáveis, isto é, o contrato de alienação fiduciária e a notificação da mora do devedor, emitida pelo Ofício de Títulos e Documentos, com a assinatura do devedor fiduciante, para comprovar o recebimento2.
Como proprietário, o credor pode inclusive proceder aos atos de alienação a terceiros do bem. Neste caso, aplicar-se-á o preço do seu crédito, bem como as despesas de cobrança, sendo que o saldo remanescente caberá ao devedor (art. 3º, parágrafo 1º, decreto lei 911, modificado pela lei 10.931/04).
O devedor fiduciante é citado apenas após a efetivação da liminar de busca e apreensão, oportunidade em que poderá quitar a dívida e exigir a restituição do bem livre de qualquer ônus (art. 3º, parágrafo 2º). O réu também pode requerer a restituição do pagamento e, caso a Ação de Busca e Apreensão seja declarada improcedente, caberá também multa ao credor – novidade introduzida pela lei 10.931/04.
Óbvio que, com as modificações, o intuito do legislador foi agilizar a venda dos bens retomados, conferindo fluidez e dinamicidade ao mercado, bem como celeridade ao sistema processual. Aliás, esse tem sido o foco das legislações mais recentes. No passado, trabalhávamos com um sistema mais lento, porém seguro, hoje pleiteámos um sistema ágil, porém mais sujeito a erros e insegurança. Ora, a redução considerável do prazo para purgação da mora e a consolidação da propriedade do credor anterior ao direito de defesa do réu, torna a situação muito mais gravosa para o devedor fiduciante. Agravamento este, que constitui verdadeira reformatio in pejus. Absurda é a reforma que piora a situação em prejuízo do devedor fiduciante, ao determinar a imediata execução da reprimenda.
De fato, a quantidade de litígios cresceu exponencialmente, não sendo acompanhada pelo aparelhamento estrutural dos tribunais, cada vez mais abarrotados de processos. A solução mais fácil foi, então, mudar a lei para tornar os processos mais rápidos. Contudo, não há como negar o compromisso jurídico entre duas necessidades sociais: a necessidade de certas regras que podem, sobre grandes zonas de conduta, serem aplicadas com segurança jurídica, e a adaptação, isto é, a capacidade de se ajustar às realidades sociais concretas, bem como aos novos aspectos práticos da vida. Para tanto, requer-se uma cooperação entre legisladores, operadores do direito e cidadãos, em benefício de uma via prática, mas segura. De nada adianta a velocidade processual em prejuízo do direito de uma das partes, na prática, tal concepção significaria a falência do sistema.
Apesar do instituto ora tratado ser pura relação de consumo, entre os muitos direitos do consumidor suprimidos, é possível destacar mais do que um direito, um princípio que não pode ser esquecido, que é o da vedação ao retrocesso social. Na medida em que os direitos do consumidor constituem garantia fundamental impera o princípio da vedação ao retrocesso social. Pelo referido princípio, todo consumidor que tiver pago mais de 40% do preço financiado não pode ver o prazo ser reduzido para cinco dias, ainda que a purgação da mora ocorra de forma simples, sem a incidência de encargos. É necessária a conjugação das duas regras jurídicas, o decreto 911 com a lei 10.931, abarcando o que há de melhor nos dois mundos para manter uma pequena paridade num modelo jurídico tão rígido com a figura do consumidor. Não se quer aqui, de forma alguma, estimular a inadimplência ou a mora, o que é necessário é que se flexibilizem as regras para garantir a solvência e a pacificação num sistema norteado pela nova figura do superendividado.
O que se quer dizer, por todo o exposto, é que a reforma legislativa abordada pela lei 10.931/04 acabou por constituir verdadeira reformatio in pejus em prejuízo do réu, com grande falha do sistema que deixa de se preocupar com seus resultados e com a necessidade de cada parte, em prejuízo de seu objetivo fundamental, isto é, como diria Chiovenda, dar a quem tem razão, tudo aquilo e precisamente aquilo a que essa pessoa tem direito.
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1REsp n. 207.186/SP, 4º Turma, DJ 28.06.1999
2REsp n. 160.795/SP, 3ª Turma. DJ. 13.06.2005