Registralhas

Qualificação dos títulos judiciais pelo oficial de registro de imóveis

O colunista aborda a qualificação dos títulos judiciais pelo oficial de registro de imóveis.

19/11/2013

O Poder Judiciário, na consecução de sua atribuição típica de distribuir Justiça, tem nos Ofícios Judiciais e Extrajudiciais o apoio necessário para materializar os atos essenciais à concretização desse fim. Os dois braços, Ofícios Judiciais e Ofícios Extrajudiciais, muito embora realizem atribuições distintas, sofrem, por parte do Poder Judiciário, regulação e controle, para perfeita harmonização dos atos geralmente tidos por burocráticos na missão de "dar a cada um o que é seu".

Dentre as serventias extrajudiciais, é nosso objetivo hoje focar no Registro de Imóveis, que tem suas atribuições definidas tanto na lei 8935/94, quanto na lei 6.015/73, entre outras tantas. Pela tremenda especificidade dos atos que ali aportam, compete ao Oficial do Registro de Imóveis qualificar os títulos apresentados para que a técnica seja a garantia dos direitos do cidadão.

O tema ora proposto, qualificação registral, é de extrema importância para todos os operadores do Direito, pois constitui a aferição necessária por parte do Oficial das qualidades essenciais do título apresentado, para que tenha ingresso no sistema registral.

Tal exercício de análise não é novidade no Brasil. O desembargador Ricardo Dip esclarece que "O Regulamento Hipotecário de 1865, que instituiu entre nós o procedimento da dúvida registrária, igualmente previa a tarefa qualificadora do Oficial do Registro, que, "duvidando da legalidade do título" (art. 69), quer por lhe parecer nulo, quer por lhe parecer falso (art. 74), poderia recusar-lhe a inscrição (no mesmo sentido, confiram-se os arts. 66 e 71 do Regulamento Hipotecário de 1890)"1.

Verifica-se, deste modo, que, embora tenha um caráter mais abrangente na atualidade, a qualificação registral realizada no século XIX já possuía seus traços essenciais. Ora, o exercício de valoração do título que ingressa na serventia, realizado pelo Registrador, visa, justamente, a verificar se este se encontra formalmente de acordo com a legislação e normas vigentes.

Conforme esclarece Flauzilino Araújo dos Santos, 1º Oficial de Registro de Imóveis de São Paulo/SP, "(...) é pacífica a necessidade de um ato inscritivo (registro ou averbação) na constituição, transmissão, modificação e extinção de direitos reais imobiliários e nos fatos modificativos das situações a eles correspondentes, que tenham como pressuposto título ou documento extrajudicial ou judicial, cumprindo, assim, os objetivos da publicidade registral"2.

Para que haja o ingresso do título, portanto, faz-se necessária uma prévia análise deste, para que se possa aferir se está apto à inserção no Registro Imobiliário. Este exercício de prudência, como se pode perceber, é de caráter eminentemente jurídico, tanto referente a aspectos formais do título, quanto, em alguns casos, a questões de direito material, tratados no conteúdo do título.

Para simplificar, a qualificação é essencial à harmonização, à observância dos princípios registrais, à observância de um sistema de legalidade e, porque não falar, moralidade, tudo tendo como objetivo maior a função social da propriedade (art. 5º XXIII da Constituição Federal) e, por decorrência, a dignidade da pessoa humana (art.1º, III, também da Constiuição).

Percebe-se, assim, a importância da atividade qualificadora realizada pelos titulares das serventias de Registro de Imóveis, haja vista que tal juízo irá determinar se um título (seja judicial ou extrajudicial) será, ou não, assentado (registro ou averbação). Ou seja, determinar-se-á se a pretensão de constituir, modificar ou extinguir determinados direitos reais ou pessoais (tanto em seu aspecto subjetivo -relacionados à titularidade do imóvel-, quanto em seu aspecto objetivo) irá, de fato, operar.

Tal qualificação registral é muito bem conceituada pelo Desembargador Ricardo Dip, que leciona: "Diz-se qualificação registral (imobiliária) o juízo prudencial, positivo ou negativo, da potência de um título em ordem a sua inscrição predial, importando no império de seu registro ou de sua irregistração"3.

Feita a abordagem geral quanto ao exercício de qualificação realizado pelo Oficial, podemos tratar, especificamente, da qualificação dos títulos judiciais. O inciso IV do art. 221 da lei 6.015 de 1973 (lei dos Registros Públicos) prevê a possibilidade de admissão de títulos judiciais nos Ofícios de Registro:

Art. 221 - Somente são admitidos registro:

IV - cartas de sentença, formais de partilha, certidões e mandados extraídos de autos de processo.

Como se percebe, portanto, o título executivo judicial é fruto de uma decisão jurisdicional estatal, advinda de um processo (tanto de jurisdição contenciosa, quanto voluntária). O que diferencia o título judicial dos títulos extrajudicial (administrativo, do Tabelião etc.) não é simplesmente por advir de um Magistrado; o que determina qualquer ausência de controle de conteúdo por parte do Registrador é o fato de ter passado pelo devido processo legal (contraditório e ampla defesa) e ter, na maioria dos casos, gerado a garantia da coisa julgada (art. 5º CF). Neste caso, o título judicial fica imune de qualquer qualificação quanto a seu conteúdo, na medida em que o Registrador não tem poder para revisar decisão judicial e muito menos para mitigar a coisa julgada material e/ ou formal (imutabilidade dos efeitos da sentença).

Justamente pelo fato de o Oficial de Registro de Imóveis não analisar o mérito da decisão que embasa o título judicial, muitos erroneamente concluem que não deve haver qualquer tipo de qualificação quando se trata destes títulos. Em verdade, o juízo prudencial também deve ser realizado diante dos títulos judiciais. Porém, neste caso, deve-se limitar à análise de elementos extrínsecos e formais do título.

O atual Corregedor Geral da Justiça do Estado de São Paulo, Desembargador José Renato Nalini, em decisão de Apelação Cível4, esclareceu que:

É certo que os títulos judiciais submetem-se à qualificação registrária, conforme pacífico entendimento do E. Conselho Superior da Magistratura:

"Apesar de se tratar de título judicial, está ele sujeito à qualificação registrária. O fato de tratar-se o título de mandado judicial não o torna imune à qualificação registrária, sob o estrito ângulo da regularidade formal. O exame da legalidade não promove incursão sobre o mérito da decisão judicial, mas à apreciação das formalidades extrínsecas da ordem e à conexão de seus dados com o registro e a sua formalização instrumental" (Ap. Cível nº 31881-0/1).

Percebemos, portanto, que deve, sim, haver qualificação registral quanto aos títulos judiciais, porém esta não se dará de modo irrestrito e ilimitado. A atividade do Registrador, logo, não deve tratar do mérito da decisão, mesmo que acredite haver desacerto nesta, afinal o ordenamento jurídico já prevê uma diversa gama de recursos processuais, não cabendo à serventia extrajudicial rever decisão judicial transitada em julgado. Aqui é bom mencionar, ainda, que, caso o Órgão Julgador afronte determinado princípio registral e determine, sob o crivo do contraditório, a sua realização terá o registrador que cumprir a ordem, ainda que, sob ponto de vista do registro, o ato em si não deveria gerar cumprimento.

Assim, a qualificação dos títulos judiciais por parte do Oficial de Registro de Imóveis irá se restringir, fundamentalmente, a algumas questões de cunho formal. Dentre elas está à análise da competência do juiz ou Órgão Judiciário que prolatou a decisão presente no título. Deve-se analisar, tão somente, se há incompetência absoluta, pois a incompetência relativa só interessa às partes, sendo ausente o interesse público. O Registrador deve ainda analisar outras questões de ordem pública e auxiliar a Justiça, devolvendo muitas vezes o título para complementações necessárias.

Também será analisada pelo Registrador a presença dos elementos mínimos para o registro. Assim, a decisão presente no título judicial deve respeitar os princípios basilares do direito registral imobiliário. Deverão ser atendidos, por exemplo, os princípios da especialidade objetiva e da continuidade.

O denominado princípio da continuidade pode ser depreendido da leitura dos artigos 195 e 237 da lei 6.015 de 1973, que determinam:

Art. 195 - Se o imóvel não estiver matriculado ou registrado em nome do outorgante, o oficial exigirá a prévia matrícula e o registro do título anterior, qualquer que seja a sua natureza, para manter a continuidade do registro.

Art. 237 - Ainda que o imóvel esteja matriculado, não se fará registro que dependa da apresentação de título anterior, a fim de que se preserve a continuidade do registro.

Já o princípio da especialidade objetiva consta da redação do §2º art. 225 da mesma lei:

Art. 225 - Os tabeliães, escrivães e juízes farão com que, nas escrituras e nos autos judiciais, as partes indiquem, com precisão, os característicos, as confrontações e as localizações dos imóveis, mencionando os nomes dos confrontantes e, ainda, quando se tratar só de terreno, se esse fica do lado par ou do lado ímpar do logradouro, em que quadra e a que distância métrica da edificação ou da esquina mais próxima, exigindo dos interessados certidão do registro imobiliário.

§ 2º Consideram-se irregulares, para efeito de matrícula, os títulos nos quais a caracterização do imóvel não coincida com a que consta do registro anterior.

É necessário ressaltar que a qualificação dos títulos judiciais não é tema nem um pouco simples, já que, na prática registral, muitas vezes não é clara a distinção entre uma análise meramente formal (extrínseca) e uma análise que invada o mérito da decisão judicial. Justamente por isso, necessário acompanhar as decisões do Conselho Superior da Magistratura e da Corregedoria Geral da Justiça, pois, a partir de tal jurisprudência, será possível constatar, em casos concretos, os limites deste juízo prudencial realizado pelo Oficial de Registro de Imóveis.

Ao contrário do que se possa imaginar, a qualificação negativa de um título judicial não tem por objetivo afrontar o magistrado. O grande objetivo é auxiliar o Poder Judiciário para que o ato seja praticado da forma mais perfeita possível. É interesse do Registrador a qualificação positiva, porém quando o título é qualificado de forma negativa o incidente ocorre exatamente na tutela do cidadão para a preservação do seu basilar direito de propriedade, garantia fundamental estatuída no art. 5º, caput, da Constituição Federal.

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1DIP, Ricardo Henry Marques (1991), "Sobre a Qualificação no Registro de Imóveis". pg. 08.

2DOS SANTOS, Flauzilino Araújo (2004), "Sobre a Qualificação de Títulos Judiciais no Brasil", pg. 03.

3DIP, Ricardo Henry Marques (1991), "Sobre a Qualificação no Registro de Imóveis", pg. 12.

4Apelação Cível 0017376-73.2012.8.26.0100, Apelante: Rosa Mary Fonseca Ribeiro, Apelado: 8º Oficial de Registro de Imóveis da Capital, Voto 21.114, Rel. Des. José Renato Nalini.

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Colunista

Vitor Frederico Kümpel é juiz de Direito em São Paulo e doutor em Direito pela USP.