Reforma do Código Civil

Os danos extrapatrimoniais na reforma do Código Civil

Não é novidade que a proposta de atualização do Código Civil objetiva restabelecer o papel de coordenação que o Estatuto Jurídico possui, interagindo com outros sistemas normativos, como mecanismo de solidificar os novos paradigmas da responsabilidade civil e manter sua posição central no âmbito do direito privado.

28/11/2024

Não é novidade que a proposta de atualização do Código Civil objetiva restabelecer o papel de coordenação que o Estatuto Jurídico possui, interagindo com outros sistemas normativos, como mecanismo de solidificar os novos paradigmas da responsabilidade civil e manter sua posição central no âmbito do direito privado.

Na seara da responsabilidade civil, sobretudo, há o anseio de aprimoramento do instituto, à luz dos notáveis avanços sociais e do desenvolvimento tecnológico.

De modo geral, “o principal objetivo da ordem jurídica é proteger o lícito e reprimir o ilícito”1. Essa afirmação traz à memória o princípio romano de que a ninguém é dado o direito de causar danos a outrem (neminem laedere).

Em outras palavras, e em atenção à liberdade individual, cada ação (ou omissão) praticada traz uma consequência, de modo que a pessoa assume a responsabilidade por sua liberdade de escolha e por sua vontade.

Cediço que o dano pode ser definido como, “uma lesão a um bem jurídico, do que nasce uma obrigação de indenizar. Resulta de uma ofensa feita por terceiro a um direito, patrimonial ou não, que faz nascer, para o ofendido, o direito a uma indenização.”.

Cumpre anotar que, em relação à coletivização dos danos, a comissão de responsabilidade civil da V Jornada de Direito Civil, no ano de 2011, aprovou enunciado importante, com o seguinte teor: "a expressão 'dano' no art. 944 abrange não só os danos individuais, materiais ou imateriais, mas também os danos sociais, difusos, coletivos e individuais homogêneos a serem reclamados pelos legitimados para propor ações coletivas" (Enunciado n. 456). O enunciado doutrinário confirma a premissa de ampliação das categorias de danos reparáveis em nosso país. Parte-se ao estudo das respectivas modalidades, de forma pontual.

Para melhor compreensão, é pertinente lembrar que a função clássica de reparação representa uma forma de reação coercitiva do sistema legal, também compreendida como uma tutela negativa, que visa restaurar ou equilibrar uma posição jurídica prejudicada ou afetada pelo exercício de um direito subjetivo.

No entanto, naquelas situações em que o dano atinge a esfera extrapatrimonial do ofendido, capazes de causar dor, sofrimento à essência humana, não haverá a possibilidade de reparação, mas uma função compensatória da lesão experimentada.

Uma abordagem civil-constitucional – lastreada na dignidade humana e na valoração social – que foi a adotada para as propostas de alteração, parte do princípio de que a estrutura dos institutos e categorias só pode ser definida com base em sua função.

Durante bom tempo, houve uma ideia de que estes danos seriam conceituados como sendo de ordem moral, como forma de compensar o sofrimento humano.

No entanto, o conceito de dano extrapatrimonial vai além do aspecto de lesão à moral da pessoa.

Ao longo dos anos, contudo, vivenciamos uma expansão das espécies de danos de natureza extrapatrimonial, em razão de atitude de aceitação social de situações danosas e da necessidade de uma melhor técnica para facilitar a compreensão e a aplicação da função punitiva da lesão experimentada, o que levou ao surgimento de nonos tutelas para aplicação aos interesses imateriais pessoais, denominada “proliferação de danos”2.

Nesse sentido, a doutrina é a jurisprudência consolidou-se em definir as várias espécies de lesões que não são protegidas na esfera patrimonial.

O conceito de dano existencial está relacionado diretamente à influência negativa sobre a liberdade da pessoa e afeta atividades que são significativas ao indivíduo. Pode ser melhor compreendido como uma alteração capaz de afetar sua própria realização pessoal.

O dano existencial atinge as atividades realizadoras pessoais, é sobretudo um dano ao direito de personalidade, atingindo elementos externos essenciais ao livre desenvolvimento pessoal. É uma renúncia involuntária a uma ou mais atividades necessárias (por um período que realmente atrapalhe a vida da vítima), ou que sejam fonte de bem-estar pessoal, ainda que não sejam remuneradas. (...). Trata-se de um abandono involuntário de atividades pessoais essenciais que fazem parte do dia a dia da pessoa – ainda que não haja interpessoalidade (como na alimentação, higiene etc.), bem como uma renúncia involuntária das relações intersubjetivas pessoais, em distintos ambientes, em diferentes circunstâncias, construídas em razão de diversos interesses (de saúde, de lazer, de cultura, de religiosidade, de trabalho etc.). (SOARES. 2017. P. 119). 

Trata-se de uma construção doutrinária originada no Direito Italiano – danno esistenziale – e que foi positivado no ordenamento jurídico brasileiro pela reforma trabalhista (lei  13.467/17).

Oportuno destacar que essa espécie de danos pode, ou não, estar relacionada ao cometimento de danos materiais, visto que pode resultar de diversas situações, como acidentes, doenças, discriminação ou violações de direitos, impactando suas relações sociais, com amigos, família, capaz de alterar até a percepção de si mesmo e a capacidade de usufruir da vida de forma plena.

Por sua vez, a definição de dano moral é tida como o prejuízo que atinge a esfera psíquica da vítima e “consiste na lesão de direitos cujo conteúdo não é pecuniário, nem comercialmente redutível a dinheiro. Em outras palavras, podemos afirmar que o dano moral é aquele que lesiona a esfera personalíssima da pessoa (seus direitos da personalidade)”

O dano moral nada tem a ver com a dor, mágoa ou sofrimento da vítima ou de seus familiares. O pesar e consternação daqueles que sofrem um dano extrapatrimonial não passam de sensações subjetivas, ou seja, sentimentos e vivências eminentemente pessoais e intransferíveis, pois cada ser humano recebe os golpes da vida de forma única, conforme seu temperamento e condicionamentos (ROSENVALD. Et. Al. 2014, p. 333). 

A diferença entre ambas as espécies noticiadas reside no fato de que o dano moral se limita ao próprio acontecimento, enquanto o dano existencial possuiria consequências duradouras, e se mostra necessária para compreender a ampliação do conceito de dano extrapatrimonial.

Ocorre que a pessoa humana, e sua dignidade, assume o ponto central de todo o ordenamento constitucional brasileiro, o que fomentou o aperfeiçoamento da matéria no sistema jurídico.

Sobre esse assunto, o Professor Pietro Perlingieri afirma que “o fato jurídico, como qualquer outra entidade, deve ser estudado nos dois perfis que concorrem para individuar sua natureza: a estrutura (como é) e a função (para que serve). (...) A função do fato determina a estrutura, a qual segue - não precede - a função” (PERLINGIERI. 2008, p. 642).

Nesse aspecto, um dos desafios da reforma reside na necessidade de trazer uma tipologia aberta para traduzir corretamente o alcance da lei, capaz de compreender que o dano extrapatrimonial representa um gênero da responsabilidade civil, apto a receber a tutela estatal e a proteção jurídica, tal qual expresso no artigo 5º, inciso X.

Assim sendo, temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo o qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar a promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos. (SARLET. 2024, p. 60). 

Para ilustrar, é possível imaginar um guarda-chuvas que representa o gênero dos danos extrapatrimoniais. Sob a proteção desse guarda-chuvas estão as diversas espécies de danos imateriais, como o dano moral, dano existencial, dano estético, dano à imagem, dano à intimidade, dano temporal, danos à saúde (psicofísica, inclusive subcategorias como dano estético e psicológico) e outras formas autônomas de danos.

Com reforma, busca-se assegurar essa nova tipologia aberta, cuja premissa reside na necessidade de uma distinção entre dano moral e dano existencial, a fim de compreender o dano extrapatrimonial, os quais não podem ser tomados como sinônimos.

Observe-se, independentemente da espécie, os danos extrapatrimoniais devem ser interpretados à luz da Constituição, de forma que sua conceituação se resume a todo o tipo de ofensa à pessoa humana.

Em outras palavras, o dano extrapatrimonial “será aquele que representar lesão a interesse conectado à cláusula geral de tutela da pessoa humana, cujo fundamento reside no princípio da dignidade da pessoa humana, previsto no art. 1º, III, da CF” (REIS JÚNIOR. 2022. p. 48).

Oportuno relembrar que a finalidade precípua da responsabilidade civil é a intenção de reparar ou compensar um dano específico, o que justifica uma sistemática distinção entre o dano moral e dano extrapatrimonial, com uma definição jurídica aberta, com fins de assegurar a primazia da função reparatória.

Inclusive, a proposta de reforma do Código assegura à vítima a faculdade de escolher, conforme o caso, a reparação in natura do dano (art. 947, § 2º), consagrando a ideia fundamental da precedência da restauração do estado de coisas afetado pelo dano, como tendência à desmonetização do dano extrapatrimonial, diante da natural inconsistência de uma resposta exclusivamente pecuniária a uma violação existencial, inspirado no artigo 566 do CC de Portugal.

A intenção de não inserir as nomenclaturas das várias categorias é evitar insegurança jurídica decorrente de uma desorganização conceitual. A medida se assemelha ao que estabelece o artigo 1.738 do Código Civil da Argentina, como forma de construir um entendimento mais unificado e evitar confusão entre as várias espécies de danos, com critérios claros de aplicação, para a moderação dos poderes judiciais, equilibrados por uma função que incentive os agentes econômicos a investirem em governança e accountability.

Nesse contexto, houve a necessidade de adaptar a responsabilidade civil aos ordenamentos mais avançados, com fins de evitar que prevaleça a aplicação jurisprudencial desordenada e permitir que o instituto prevaleça como um “sistema de gestão de riscos e de restauração de equilíbrio” na relação jurídica, que tenha sido injustamente lesionado.

A sugestão é de fixar parâmetros de condutas para evitar a prática, ou a reiteração, de uma ação ou omissão contrária ao direito, antes mesmo da ocorrência do dano.

Nessa linha de ideias, a para alteração legislativa adota a aplicação do dever geral de cuidado, com inspiração na função preventiva, sobretudo após o advento do Código Civil da Nação Argentina (art. 1.710), como necessidade de uma parcimônia de comportamentos antijurídicos e não apenas a contenção de danos.

Desta forma, a reparação dos danos extrapatrimoniais amplia seu escopo de atuação, contribuindo não apenas para a solução de conflitos, mas também para a prevenção de danos e a promoção de uma convivência social mais harmônica e segura. 

Referências 

CARRÁ, Bruno Leonardo Câmara. Todo dano é indenizável? In: ROSENVALD, Nelson; MILAGRES, Marcelo. Responsabilidade Civil: novas tendências. São Paulo: Foco Jurídico, 2017. 

FARIAS, Cristiano Chaves de, ROSENVALD, Nelson. Direito das obrigações. 4ª ed., 2010, p. 501. 

TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil: volume único - 14. ed.. rev., atual. e ampl. - Rio de .Janeiro : Método, 2024. 

CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 11. ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 1. 

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro: Responsabilidade Civil. São Paulo: Saraiva, 2020. 

FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson; BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Curso de direito civil: responsabilidade civil. 4ª ed. Salvador: JusPodivm, 2017. 

NESPOLI, Arthur Lutiheri Baptista; MARQUESI, Roberto Wagner. Teoria dos efeitos da lesão: os novos danos e sua taxonomia. Rio de Janeiro: Civilistica.com. a. 12, n. 2, 2023. Disponível aqui. Data de acesso 21/10/2024. 

NETO, Amaro Alves de Almeida. Dano existencial a tutela da dignidade da pessoa humana. ano 6. p. 21-53. São Paulo: Ed. RT. 2005. 

PAMPLONA FILHO. Rodolfo; ANDRADE JÚNIOR, Luiz Carlos Vilas Boas. A torre de babel das novas adjetivações do dano. Revista Fórum de Direito Civil, Belo Horizonte, v. 3, n. 5, p. 29-50, jan./abr. 2014.  

PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. 

REIS JUNIOR. Antonio dos. Função Promocional da Responsabilidade Civil: um modelo de estímulos à reparação espontânea dos danos. 1. ed. Indaiatuba: Editora Foco, 2022. E-book. 

ROSENVALD, Nelson. Por uma tipologia aberta dos danos extrapatrimoniais. Migalhas Jurídicas. Edição. 325209, 23 abr. 2020. Disponível aqui. Acesso em: 19 out. 2024. 

_________________. As Funções da Responsabilidade Civil. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2022. E-book. 

SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 11. ed. 2024, p. 60. 

SILVA, João Carlos. Multifuncionalidade da Responsabilidade Civil: Uma Análise Contemporânea. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2022. 

SOARES, Flaviana Rampazzo. et. al. Danos extrapatrimoniais no direito do trabalho. 1. ed. São Paulo: LTr, 2017.

__________

1 CAVALIERI FILHO. 2014, p. 1.

2 Esse conceito de ‘proliferação de danos’ foi apresentado pelo professor Nelson Rosenvald, em razão da multiplicidade de danos identificados, sobretudo pelo Direito Comparado, na medida em que a cada direito fundamental violado haveria uma definição de danos da forma mais ampla possível, tais como: “dano biológico” (relacionado à saúde), “danos por férias frustradas” etc. (Cf. ROSENVALD. 2020. p. 1). Na mesma linha de raciocínio, o Professor Rodolfo Pamplona Filho define essa circunstância como sendo uma “Torre de Babel”, metáfora utilizada para ilustrar a complexidade da adjetivação dos danos que sugere a necessidade de um diálogo claro e efetivo entre as diversas áreas do Direito, a fim de construir um entendimento mais unificado sobre as diferentes formas de dano e sua reparação, de forma mais justa e adequada, evitando-se confusões entre as várias espécies de danos extrapatrimoniais, semelhantes ao que teria acontecido na passagem bíblica (Cf. PAMPLONA FILHO. et. al. 2015).

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Colunistas

Flávio Tartuce é pós-doutor e doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUCSP. Professor Titular permanente e coordenador do mestrado da Escola Paulista de Direito (EPD). Professor e coordenador do curso de mestrado e dos cursos de pós-graduação lato sensu em Direito Privado da EPD. Patrono regente da pós-graduação lato sensu em Advocacia do Direito Negocial e Imobiliário da EBRADI. Diretor-Geral da ESA da OABSP. Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT). Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família em São Paulo (IBDFAMSP). Advogado em São Paulo, parecerista e consultor jurídico. Relator-Geral da proposta da reforma do Código Civil.

Luis Felipe Salomão é ministro do Superior Tribunal de Justiça. Corregedor Nacional de Justiça. Membro da Corte Especial do STJ. Presidente da comissão de juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil.

Marco Aurélio Bellizze é ministro do Superior Tribunal de Justiça. Membro da 3ª Turma. Membro da 2ª Seção. Membro da Comissão de Jurisprudência. Professor da Fundação Getúlio Vargas desde 2021. Coordenador Acadêmico da FGV/Exame de Ordem. Vice-presidente da comissão de juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil.

Rosa Maria de Andrade Nery é professora associada de Direito Civil da Faculdade de Direito da PUC/SP. Livre-Docente, doutora e mestre em Direito pela PUC/SP. Árbitra em diversas câmaras de arbitragem do Brasil. Foi Procuradora de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo por 20 anos e desembargadora do Tribunal de Justiça o Estado de São Paulo por 15 anos. Titular da cadeira de número 60 da Academia Paulista de Direito. Professora do curso de graduação e de pós-graduação em Direito da PUC/SP e professora colaboradora do Centro Universitário Ítalo-Brasileiro. Relatora da proposta da reforma do Código Civil.