1. Introdução
A lei de liberdade econômica explicitou, no texto normativo, presunção que já era inerente à lógica estruturante do Direito Contratual. Trata-se da regra do art. 421-A do CC, que afirma que “os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção, ressalvados os regimes jurídicos previstos em leis especiais”.
A regra, ao mesmo tempo em que explicita a presunção, outrora tácita, admite a hipótese de ser ela afastada, mediante elementos concretos.
A lei da liberdade econômica, a par dessa presunção, enuncia que as relações contratuais privadas são regidas pela intervenção mínima e pela excepcionalidade da revisão contratual, conforme o vigente parágrafo único do art. 421 do CC.
A declaração de direitos de liberdade econômica constante da referida lei, no inciso VIII de seu art. 3º, define a baliza para essa intervenção mínima, ressaltando a relevância da paridade contratual, com destaque aos contratos empresariais (mas, em nossa leitura, a eles não se restringindo), ao dispor que é direito de liberdade econômica “ter a garantia de que os negócios jurídicos empresariais paritários serão objeto de livre estipulação das partes pactuantes, de forma a aplicar todas as regras de direito empresarial apenas de maneira subsidiária ao avençado, exceto normas de ordem pública”.
É reforçado o sentido do contrato como instrumento para o exercício da liberdade de iniciativa econômica, e, nessa medida, a compreensão da liberdade a ele inerente deve ser pautada na mesma ratio de reconhecimento do valor intrínseco de que a livre iniciativa é dotada.
Há, porém, um caminho legislativo a trilhar, na ampliação dos espaços de liberdade econômica nos contratos. O anteprojeto de reforma do CC busca avançar nesse necessário itinerário de prestígio à livre iniciativa e à liberdade econômica. Assim o faz atento aos conceitos e pressupostos que já constam do CC, sobretudo a partir do advento da lei 13.874/19.
Há, no anteprojeto, evidente ampliação da autonomia privada, permitindo a disposição, pelas partes, a respeito de temas que, hoje, se sujeitam a limites impostos por normas cogentes.
Assim procede o Anteprojeto consoante com as presunções legais de paridade e simetria, bem como é atento às situações em que essas presunções são afastadas por elementos concretos, podendo exigir outro tratamento jurídico.
Daí porque o exame desses conceitos é relevante para a adequada compreensão desses espaços de ampliação de autonomia privada.
2. Contratos paritários
A classificação de um contrato como paritário demanda saber se sua celebração decorreu de efetivas tratativas entre as partes sobre os comandos que integram o negócio jurídico, ou se a celebração ocorreu por meio da técnica de contratação por adesão de uma das partes às cláusulas predispostas ou a formulários definidos pela outra.
Classificar um contrato como paritário não pressupõe, necessariamente, avaliação do negócio jurídico sob a perspectiva da posição econômica relacional entre as partes, ou, mesmo, da maior ou menor assimetria informacional. Tampouco se trata de juízo sobre vulnerabilidade de algum dos contratantes, mas, sim, de constatar se o contrato foi negociado ou não.
Também não se trata de aferir se o contrato é equilibrado ou não sob o ponto de vista de sua equação econômico-financeira, ou se traz disposições equânimes sobre distribuição de direitos, deveres, riscos, ônus e benefícios.
Trata-se o contrato paritário, conforme a lição de Maria Helena Diniz, daquele em que a partes “discutem, na fase da puntuazione, os termos do ato negocial, eliminando os pontos divergentes mediante transigência mútua”, e discutem “amplamente e fixando as cláusulas ou as condições que regerão a relação contratual”.1
Segundo a mesma autora, aos contratos paritários se opõem os contratos de adesão, “por inexistir a liberdade de convenção, visto que excluem a possibilidade de qualquer debate e transigência entre as partes, uma vez que um dos contratantes se limita a aceitar as cláusulas e condições previamente redigidas e impressas pelo outro, aderindo a uma situação contratual já definida em seus termos”.
Ou seja: Conforme conceito amplamente conhecido e consagrado doutrinariamente, é paritário o contrato que não tenha sido celebrado mediante a técnica da adesão.2
A técnica de contratação por adesão é, em si mesma, concretamente, limitadora do efetivo exercício de escolhas por um dos contratantes, independentemente de suas razões. Pode-se afirmar que, nos contratos de adesão, há um inerente déficit de liberdade substancial de um dos contratantes, assim compreendido como um obstáculo concreto à livre realização de escolhas valorosas.3
Reitere-se: isso não decorre de vulnerabilidade inerente ou relacional de um dos contratantes. Trata-se de decorrência da técnica contratual empregada para a sua celebração.
É possível a celebração de contratos de adesão entre empresários, podendo, inclusive, caracterizar-se hipótese na qual sociedade de maior porte se submete aos termos preordenados nas condições gerais de contratação de uma sociedade de menor porte econômico.
O que atrai aos contratos de adesão, ou não-paritários, a disciplina que admite limites mais rígidos ao seu conteúdo (do que é exemplo o vigente art. 423 do CC) é a concreta impossibilidade, por uma das partes, de realizar escolhas diversas daquelas preordenadas pela outra, não importando se decorrentes da necessidade de dar eficiência a agilidade a um processo de contratação entre iguais, da massificação das relações contratuais, ou de eventual vulnerabilidade de uma das partes frente à outra.
É por isso que, aqui, a autonomia privada, como liberdade positiva formalmente assegurada em um espaço de não coerção, encontra óbices materiais (e não jurídicos) ao seu pleno exercício, haja vista que as condições concretas que propiciam seu exercício estão limitadas pelas circunstâncias derivadas da técnica de contratação inerente àquela operação econômica.
3. Contratos simétricos
Se a paridade contratual deriva da existência da oportunidade de prévias negociações, por não ter sido adotada a técnica de contratação por adesão, a simetria, diversamente, demanda exame da relação concreta entre os contratantes.
A simetria a que se referem o direito vigente e o anteprojeto de reforma do CC não consiste em perfeita igualdade entre os contratantes, nem sob o ponto de vista econômico, nem sob a ótica informacional.
Assimetrias informacionais são inerentes a qualquer contrato. Um dos contratantes, por exemplo, sempre terá mais informações sobre sua própria atividade do que o outro. Não basta, em regra, a assimetria informacional para afastar a presunção legal de que os contratos civis e empresariais são simétricos.
Da mesma forma, disparidades econômicas entre os contratantes são frequentes, e não bastam, em si mesmas, para afastar a presunção legal de simetria.
É que, por assimétricos, são compreendidos os contratos em que, conforme Rosenvald e Braga Netto, houver “dependência econômica de uma das partes”.
Ou seja: a disparidade deve ser de tal ordem que seja gerado o que os autores denominam de “efeito de aprisionamento” de um contratante frente ao outro.
Portanto, os elementos concretos que permitem afastar a presunção de simetria consistem naqueles que demonstram essa relação de dependência, esse efeito de aprisionamento, que acaba por solapar, em concreto, a liberdade de realização de escolhas.
Mais uma vez, ainda que sob perspectiva diversa, vem à tona a relevância da liberdade substancial, definida por Amartya Sen como a possibilidade concreta de realização de escolhas valorosas, considerando-se, assim, o contexto efetivo em que se situa o indivíduo ao qual as escolhas são formalmente oferecidas.4
Se, no contrato de adesão (não-paritário) o déficit de liberdade substancial deriva da técnica contratual empregada, no contrato assimétrico esse déficit é relacional, constatando-se que um dos contratantes se impõe, inteiramente, sobre o exercício efetivo da liberdade do outro contratante.
Como se observa, o contrato pode ser: (a) paritário e simétrico (o que é presumido pela lei vigente); (b) não-paritário (de adesão) e assimétrico; (c), paritário e assimétrico; ou (d) não-paritário (de adesão) e simétrico (como em contratos empresariais em que, não havendo sujeição de um contratante ao outro, adota-se a técnica de contratação por adesão).
Do que se depreende da lei da Liberdade Econômica, portanto, os conceitos de paridade e simetria são, ao fim e ao cabo, definidos pela efetiva possibilidade de realização de escolhas no âmbito do contrato, mediante a constatação sobre a existência ou não de grave déficit de liberdade substancial – embora as fontes desse déficit sejam distintas entre si em cada um dos conceitos (nos contratos de adesão, deriva da natureza própria da técnica de contratação; nos contratos assimétricos, da dependência de um contratante frente ao outro).
A norma que consagra as presunções de paridade e simetria presume, também, pois, em abstrato, a ausência de déficit relevante de liberdade substancial. Essa presunção não é arbitrária: decorre da necessidade lógica de assumir um ponto de partida que resida no ordenamento jurídico.
Assim, conforme já escrevemos, “se o Direito assegura formalmente aos entes privados um espaço de exercício de liberdade, em um lugar de não coerção, a presunção que emerge do dado formal é a de que, precisamente por não ter havido, em tese, coerção, esse exercício da autonomia seria, efetivamente, livre em termos substanciais. No plano lógico formal não seria possível, sem qualquer outro elemento adicional, presumir um conflito prima facie: o indivíduo, em tese, dentro dos limites do ordenamento, pode fazer escolhas livres. Se escolheu algo dentro desses limites, supõe-se, salvo demonstração em contrário ou outro fator objetivo”.5
Não se constatando a presença desse déficit, de modo efetivamente relevante para tolher o concreto exercício da autonomia privada, as presunções se mantêm hígidas.
4. Paridade e simetria no anteprojeto de reforma do CC
Cabe, por fim, trazer exemplos da relevância das qualificações dos contratos como paritários e simétricos no âmbito do Anteprojeto de Reforma do CC.
De modo congruente com que já consta da lei da liberdade econômica, o anteprojeto reprisa a enunciação dos princípios da intervenção mínima e da excepcionalidade da revisão contratual, situando-os no âmbito dos contratos civis e empresariais paritários.
É o que deriva do já citado art. 3º, inciso VIII da lei da liberdade econômica, que assegura a prevalência da autonomia privada nos “negócios jurídicos empresariais paritários”.
Assim, a redação proposta passa a ser a seguinte:
Art. 421. ..................................................................................
§ 1° Nos contratos civis e empresariais, paritários, prevalecem o princípio da intervenção mínima e da excepcionalidade da revisão contratual.
A regra proposta, assim como a vigente Declaração de Direitos de Liberdade Econômica (art. 3º, inciso VIII da LLE), não exige a presença da simetria contratual (ausência de relação de dependência de um contratante frente ao outro, apta a gerar “efeito de aprisionamento”), mas, apenas, a paridade (ou seja, não se tratar de contrato de adesão). Isso se deve ao fato de que assimetria nem sempre é apta a justificar a maior intervenção estatal por meio de normas cogentes.
Nesse sentido, tem o cuidado o Anteprojeto de, ao reconhecer que dados contratos empresariais são naturalmente assimétricos, afastar a aplicação de regramentos que não sejam coerentes com a lei especial ou com as demais normas que regem essas modalidades contratuais, dando tratamento próprio a essa assimetria – que não será, necessariamente, paternalista.
É o que decorre da disposição do projetado art. 421-C, em seu parágrafo 1º, inciso I:
Art. 421-C. Os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos, se não houver elementos concretos que justifiquem o afastamento desta presunção, e assim interpretam-se pelas regras deste Código, ressalvados os regimes jurídicos previstos em leis especiais.
§ 1º Para sua interpretação, os contratos empresariais exigem os seguintes parâmetros adicionais de consideração e análise:
I - os tipos contratuais que são naturalmente díspares ou assimétricos, próprios de algumas relações empresariais, devem receber o tratamento específico que consta de leis especiais, assim como os contratos que decorram da incidência e da funcionalidade de cláusulas gerais próprias de suas modalidades;
Da mesma forma, o art. 421-B, inciso I do anteprojeto assegura que o tratamento de contratos empresariais, mesmo assimétricos, deve ser coerente com as funções (notadamente, econômicas) que derivam de sua inserção em cadeias produtivas, de modo a evitar tratamentos paternalistas pontuais que causem prejuízos à unidade funcional que deriva de operações econômicas empresariais estruturadas nessas cadeias:
Art. 421-B. Deve-se levar em conta para o tratamento legal e para a identificação das funções realizadas pelos diversos tipos contratuais, a circunstância de disponibilizarem:
I - bens e serviços ligados à atividade de produção e de intermediação das cadeias produtivas, típicos dos contratos celebrados entre empresas;
A referência à simetria, ao lado da paridade, vem à tona, sobretudo, quando o Anteprojeto traz normas que ampliam sensivelmente a autonomia privada - inclusive, tornando dispositivas regras que, hoje, definem limites cogentes.
Um exemplo se refere à impossibilidade de o juiz reduzir a cláusula penal sob fundamento de ser excessiva. A regra, prevista atual art. 473 do CC, passa a autorizar a intervenção do juiz ou árbitro apenas se algum das presunções legais de simetria e paridade for afastada em concreto:
Art. 413. (...)
Parágrafo único. Em contratos paritários e simétricos, o juiz não poderá reduzir o valor da cláusula penal sob o fundamento de ser manifestamente excessiva, mas as partes, contudo, podem estabelecer critérios para a redução da cláusula penal
A mesma ratio se aplica à proposta quanto às cláusulas de limitação de indenização e de não indenizar:
Art. 946-A. Em contratos paritários e simétricos, é lícita a estipulação de cláusula que previamente exclua ou limite o valor da indenização por danos patrimoniais, desde que não viole direitos indisponíveis, normas de ordem pública, a boa-fé ou exima de indenização danos causados por dolo.
Há, de outro lado, exemplos de ampliação da autonomia privada que prevalecerão mesmo se afastada a presunção de simetria, bastando manter-se hígida a presunção de paridade (ou seja, não haver a demonstração de tratar-se de contrato de adesão).
Um exemplo é a autorização para a celebração do pacto marciano, por meio do qual o credor pode se apropriar do objeto da garantia, sem a necessidade de excussão, desde que “mediante aferição de seu justo valor e restituição do supérfluo”:
Art. 1.428. ............................................................................
§ 1º Não se aplica o disposto no caput nos negócios jurídicos paritários se houver cláusula que autoriza que o credor se torne proprietário da coisa objeto da garantia mediante aferição de seu justo valor e restituição do supérfluo.
A regra, a rigor, pode ser altamente benéfica ao devedor, uma vez que, nos casos ordinários de excussão da garantia, em segunda hasta pública, o bem pode vir a ser arrematado por valor muito inferior ao da avaliação. Isso não ocorre no pacto marciano, em que não haverá a apropriação pelo credor por valor inferior ao da avaliação. Por isso, a simetria entre os contratantes, mesmo ausente, não é necessária à validade do pacto, bastando que o exercício efetivo da autonomia privada na sua adoção seja bilateral (não derivando de formulário ou condições gerais de contratação).
O mesmo raciocínio se aplica ao comando projetado no art. 421-D, que dispõe, “salvo nos contratos de adesão ou por cláusulas predispostas em formulários”, a possibilidade as partes deliberarem em seus contratos sobre “parâmetros objetivos para a interpretação e para a revisão de cláusulas negociais”; “hipóteses e pressupostos para a revisão ou resolução contratual”; “alocação de riscos e seus critérios, definida pelas partes, que deve ser observada e respeitada”, “glossário com o significado de termos e de expressões utilizados pelas partes na redação do contrato” e “interpretação de texto normativo”.
Em todas essas hipóteses, o que se exige é que a disposição não seja unilateral, preordenada, de modo rígido, por um dos contratantes (ou seja, que se mantenha hígida a presunção de que o contrato é paritário), mesmo que, em concreto, haja assimetria entre os contratantes.
Busca-se, com isso, equilibrar o efetivo exercício de liberdade com a segurança jurídica derivada da força obrigatória dos contratos e dos ditames da intervenção mínima e da excepcionalidade da revisão contratual.
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1 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: teoria das obrigações contratuais e extracontratuais. 23. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 89.
2 Nesse mesmo sentido, NORONHA, Fernando. O Direito dos Contratos e seus Princípios Fundamentais. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 117, e TEPEDINO, Gustavo; KONDER, Carlos Nelson; BANDEIRA, Paula Greco. Fundamentos do Direito Civil. Contratos. Vol. 3. Rio de Janeiro: Forense, 2020, 76. TARTUCE, Flavio. Direito Civil. Teoria Geral dos Contratos e Contratos em Espécie. Vol. 3. Rio de Janeiro: Forense, 2024, p. 28; 70; ROSENVALD, Nelson; BRAGA NETTO, Felipe. CC Comentado. São Paulo: Juspodivm, 2024, p. 618.
3 Para Amartya Sen, “a liberdade de troca e transação é ela própria uma parte essencial das liberdades básicas que as pessoas têm razão para valorizar”. SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Trad. Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. P. 20.
4 SEN, Amartya. Desenvolvimento como Liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 32.
5 PIANOVSKI RUZYK, Carlos Eduardo. Institutos Fundamentais do Direito Civil e Liberdade(s). Rio de Janeiro: GZ, 2011.