1. Diretriz do Anteprojeto
Uma parcela substancial do anteprojeto de reforma do CC, formada pela comissão de juristas nomeada pelo presidente do Senado Federal, nada mais é do que a positivação do que, atualmente, já é admitido pela jurisprudência e pela doutrina.
Sob essa ótica, o anteprojeto, por si só, já serve como referência aos operadores do Direito e aos acadêmicos sobre o direito atual. Disso deu prova o próprio STJ, que já invocou o texto do anteprojeto mais de uma vez para fortalecer os argumentos1. O anteprojeto já serve como um instrumento de soft law2.
É, portanto, equivocado pensar que o anteprojeto estaria a criar um novo CC. A quantidade de artigos alterados não respaldaria uma ilação indevida como essa, pois, na verdade, a maior parte do que se altera não representa novidades normativas propriamente ditas.
Com efeito, as inovações normativas compõem uma parte pequena do anteprojeto. E são justificadas pelas transformações substanciais da sociedade em relação ao cenário social vigente desde a década de 1970, ambiente no qual o projeto do CC de 2002 foi gestado3.
O anteprojeto preserva a ideia principal de um CC, que é a de servir de centro normativo do Direito Privado. Nesse ponto, lembramos as seguintes didáticas palavras do jurista italiano Sandro Schipani na sua consagrada obra “El sistema jurídico romanístico y los Código Modernos”:
(...) Sem dúvida, nunca nos tempos modernos o código foi expressão da totalidade do direito produzido pelas leis de um Estado (...). Com efeito, o código só é o lugar onde foi fixado o núcleo mais sistematicamente ordenado do direito, e constitui o centro ao redor do qual o sistema se torna estável, com a ajuda da doutrina, no marco de um trabalho de aprimoramento contínuo.4
Fazer pousar no texto aquilo que está cavalgando nas asas dos ventos da jurisprudência e da doutrina é um imperativo de segurança jurídica, ainda mais em um país de dimensão continental como é o nosso.
A questão é prática!
Inúmeros magistrados brasileiros ao longo do nosso vasto território cumulam juízos de diferentes disciplinas jurídicas.
Não se duvida da notória capacidade técnica da magistratura brasileira. Mas é inevitável reconhecer que a dispersão das fontes do Direito Civil é um expressivo desafio para um magistrado que, em um dia, julga direito penal; no outro, direito administrativo; e, no outro, Direito Civil.
É grande o risco de esse magistrado – afogado em uma multidão de processos de diferentes disciplinas jurídicas – ignorar uma interpretação doutrinária ou jurisprudencial dominante para decidir um caso com base em uma ultrapassada intepretação literal do código ou em uma operação indevida de integração normativa.
E não é só aos magistrados que se endereça a lei!
Os cidadãos e os particulares também lançam mão do texto legal para guiarem-se no seu quotidiano. Não é razoável impor-lhes o ônus de “pescar” as regras em meio a um verdadeiro oceano de precedentes e obras doutrinárias. O mais provável é que eles acabem incorrendo no erro de confiar em uma ultrapassada interpretação literal do texto do Código ou em acreditar que o silêncio do texto do código significaria uma falta de regra jurídica.
O cidadão precisa ter o máximo de clareza das “regras do jogo”. Nesse ponto, é ainda atual a afirmação do clássico jurista alemão A. F. J. Thibaut5, que, ao defender a codificação do direito alemão no século XIX, vaticinava que “um código nacional simples, elaborado com pujança dentro do espírito alemão, será, em contrapartida, totalmente acessível a qualquer mente, inclusive as de leigos (...)”6.
Em uma sociedade como a nossa – que se tornou tão complexa nas últimas décadas –, convém que as principais regras civis que estão dispersas no ar, em meio a precedentes e doutrina, venham a aninhar-se no texto da lei formal, inclusive no CC.
2. Exemplos de positivação do direito atual
Sob essa ótica, passamos expor algumas regras do anteprojeto que apenas positivam o entendimento doutrinário e jurisprudencial majoritário atual, tudo para ilustrar o que expomos até agora.
É o caso dos animais.
De um lado, o art. 19 do anteprojeto pontifica: “Art. 19. A afetividade humana também se manifesta por expressões de cuidado e de proteção aos animais que compõem o entorno sociofamiliar da pessoa”. Esse dispositivo, com didatismo, reconhece que há um direito da personalidade vinculado aos animais de estimação. Uma consequência prática disso é que agredir um animal de estimação pode acarretar o dever de indenizar dano moral causado ao titular. Afinal, dano moral é, por definição, a violação de direito da personalidade7.
De outro lado, o art. 91-A reconhece a natureza jurídica especial dos animais, a atrair um regime jurídico diverso do aplicável aos bens em geral8.
Outro exemplo é a DAV - Diretiva Antecipada de Vontade lato sensu, a qual pode ser dividida em DAV stricto sensu e em DAC, tema sobre o qual já tivemos a oportunidade de aprofundar em outra ocasião9. Trata-se de atos jurídicos já admitidos atualmente pela doutrina e prática jurídica majoritária.
De um lado, os §§ 1º e 2º do art. 15 do anteprojeto reconhecem o direito de toda pessoa natural em elaborar diretrizes antecipadas para seu tratamento de de saúde, inclusive com indicação de seu representante10.
De outro lado, os arts. 1.778-A e 1.778-B do anteprojeto11 disciplinam a DAC, deixando claro o direito de toda pessoa em predeterminar como deverá ser a condução de sua curatela caso futuramente ela venha perder a lucidez.
Mais uma positivação do direito atual está no § 2º do art. 1.688 do anteprojeto. Trata-se de preceito que faz justiça especialmente às mulheres que, apesar de terem-se casado no regime da separação de bens, dedicaram-se aos cuidados da família (Economia do Cuidado). O preceito estabelece o direito delas a receberem alimentos compensatórios no caso de extinção do casamento, direito esse já hoje admissível. Como lembra Flávio Tartuce, os alimentos compensatórios é uma “construção desenvolvida no Brasil por Rolf Madaleno, a partir de estudos do Direito Espanhol e Argentino”12. Tivemos a oportunidade de aprofundar o tema em outro artigo13.
Em relação ao livro de contratos, seguiram a mesma linha tanto a respectiva subcomissão (da qual tive a honra de ser relator e de trabalhar ao lado das geniais professoras Angélica Carlini e Cláudia Lima Marques e do enciclopédico professor Carlos Eduardo Pianovski Ruzyk) quanto a relatoria-geral (integrada pelos Professores Flávio Tartuce e Rosa Nery).
O art. 422 do anteprojeto aprimora a redação atual do CC para deixar claro o que já é pacífico na doutrina atual: A boa-fé tem de ser observada nas fases pré-contratual, contratual e pós-contratual14.
A cláusula de hardship, já conhecida da prática contratual e recomendada pelos princípios unidroit relativos a contratos comerciais internacionais15, ganha sede legal própria. É o art. 480 do anteprojeto, que estabelece que as partes podem pactuar o dever de tentativa de negociação previamente a eventual tentativa de revisão ou resolução contratual por conta de eventual desequilíbrio superveniente16.
Até os smart contracts – tão recorrentes na sociedade moderna – encontram amparo no anteprojeto. Essa figura se caracteriza pela presença da tecnologia na celebração, na reformulação, na extinção ou na execução do contrato. O art. 435-A do anteprojeto fixa o que a comunidade jurídica atual já admite: a vontade humana inicial tem de ser prestigiada, inclusive para efeitos de definição de deveres e responsabilidade17.
Muitos outros exemplos poderiam ser aqui trazidos, até porque, como se disse, a maior parte do anteprojeto é apenas a positivação do direito atual.
3. Exemplos de inovações normativas
Mas há também inovações normativas, fruto das transformações sociais das últimas décadas.
Por exemplo, a realidade atual de inúmeras famílias recompostas, com casais com filhos de casamentos anteriores, não é compatível com a atual previsão do parágrafo único do art. 551 do CC.
Esse dispositivo estabelece que, no caso de doação de um bem a duas pessoas casadas entre si sem especificação da fração ideal de cada um (doação conjuntiva a casal), haverá o direito de acrescer automaticamente.
Assim, se o marido vier a falecer, a sua fração ideal no bem não irá para seus herdeiros (como eventuais filhos de anteriores casamentos), mas sim se reverterá em proveito da viúva (que eventualmente tem filhos de casamento anterior). Com a posterior morte da viúva, o bem integralmente irá para herdeiros da viúva (como os filhos que ela teve de relacionamentos anteriores). Nada irá para os filhos unilaterais daquele marido falecido. Trata-se de uma situação absolutamente incompatível com a realidade familiar moderna. O direito de acrescer na doação conjuntiva só tem sentido quando o casal donatário só possui filhos comuns, os quais, ao final, serão os destinatários da liberalidade após a morte de ambos os pais.
Por isso, o anteprojeto altera o parágrafo único do art. 551 do CC18 para estabelecer que o direito de acrescer depende de previsão expressa no contrato de doação. Desse modo, o doador, ao verificar que o casal configura uma família recomposta com filhos de relacionamentos anteriores, provavelmente não haverá de estabelecer o direito de acrescer.
4. Conclusão
Em uma sociedade tão complexa e heterogênea como é a contemporânea, o CC tem de primar por garantir o máximo de liberdade aos indivíduos, sem, porém, descuidar dos limites de ordem pública impostos pela boa-fé, pela vedação ao abuso de direito e por outros baluartes do Direito.
É claro que o texto do anteprojeto haverá de passar por eventuais ajustes no processo legislativo, como é natural em qualquer proposição legislativa. Mas uma certeza nos parece reinar: a de que o anteprojeto conseguiu concentrar, em si, aquilo que carece de atualização em um CC do Nosso Tempo.
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1 É o caso, por exemplo, do voto do Ministro Antonio Carlos Ferreira no julgamento do REsp 2.022.649/MA.
2 Para aprofundamento: OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. Soft Law e Direito Privado Estrangeiro: fontes úteis aos juristas brasileiros. Disponível aqui. Publicado em 17 de janeiro de 2023.)
3 O projeto do CC de 2002 começu a ser elaborado em 1969 e iniciou a tramitar no Congresso Nacional em 1975.
4 Tradução livre de excerto extraído de: SCHIPANI, Sandro. El sistema jurídico romanístico y los Código Modernos. Fondo Editorial: Lima/Peru, 2015.
5 Anton Friedrich Justus Thibaut defendia a codificação das leis civis, em oposição à Friedrich Carl von Savigny, que rejeitava a ideia de uma codificação pelo fato de o Direito ser fruto do espírito do povo (Volksgeist), e não da razão.
6 THIBAUT, A. F. J. Sobre la necesidad de um derecho civil general para Alemania. In: THIBAUT y SAVIGNY. La Codificacion: uma controversia programatica basada em suas obras Sobre la necesidad de um derecho civil general para Alemania y De la vocacion de nuestra época para la legislacion y la ciência del derecho. Traducción del alemán de Jose Diaz Garcia. Madrid: Editorial Aguilar, 1970, p. 19.
7 Ressalva-se que alguns direitos da personalidade, por vezes, assumem categoria própria na Responsabilidade Civil, como a estética morfológica humana, cuja vulneração significa dano estético.
8 Art. 91-A. Os animais são seres vivos sencientes e passíveis de proteção jurídica própria, em virtude da sua natureza especial.
§ 1º A proteção jurídica prevista no caput será regulada por lei especial, a qual disporá sobre o tratamento físico e ético adequado aos animais.
§ 2º Até que sobrevenha lei especial, são aplicáveis, subsidiariamente, aos animais as disposições relativas aos bens, desde que não sejam incompatíveis com a sua natureza, considerando a sua sensibilidade.
9 OLIVEIRA, Carlos E. Elias de. Diretiva Antecipada de Vontade Lato Sensu: o que deve acontecer com a vida, o corpo e o patrimônio no caso de perda de lucidez ou de morte? Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, Agosto 2023 (Texto para Discussão 320). Disponível aqui.
10 “Art. 15. Ninguém pode ser constrangido a submeter-se a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica.
§ 1º É assegurada à pessoa natural a elaboração de diretivas antecipadas de vontade, indicando o tratamento que deseje ou não realizar, em momento futuro de incapacidade.
§ 2º Também é assegurada a indicação de representante para a tomada de decisões a respeito de sua saúde, desde que formalizada em prontuário médico, instrumento público ou particular, datados e assinados, com eficácia de cinco anos.
(...)
11 Art. 1.778-A. A vontade antecipada de curatela deverá ser
formalizada por escritura pública ou por instrumento particular
autêntico.”
“Art. 1.778-B. O juiz deverá conferir prioridade à diretiva antecipada de curatela relativamente:
I - a quem deva ser nomeado como curador;
II - ao modo como deva ocorrer a gestão patrimonial e pessoal pelo curador;
III - a cláusulas de remuneração, de disposição gratuita de bens ou de outra natureza.
Parágrafo único. Não será observada a vontade antecipada do curatelado quando houver elementos concretos que, de modo inequívoco, indiquem a desatualização da vontade antecipada, inclusive considerando fatos supervenientes que demonstrem a quebra da relação de confiança do curatelado com a pessoa por ele indicada.
12 TARTUCE, Flávio. Direito Civil: direito de família. Rio de Janeiro: Forense, 2023, p. 601.
13 OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. Economia do Cuidado e Direito de Família: alimentos, guarda, regime de bens, curatela e cuidados voluntários. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, maio 2024. Disponível em: www.senado.leg.br/estudos.
14 Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar os princípios da probidade e da boa-fé nas tratativas iniciais, na conclusão e na execução do contrato, bem como na fase de sua eficácia pós-contratual
15 Nas palavras do art. 6.2.2. dos Princípios Unidroit Relativos a Contratos Comerciais Internacionais, “há hardship quando sobrevêm fatos que alteram fundamentalmente o equilíbrio do contrato, seja porque o custo do adimplemento da obrigação de uma parte tenha aumentado, seja porque o valor da contraprestação haja diminuído e (a) os fatos ocorrem ou se tornam conhecidos da parte em desvantagem após a formação do contrato; (b) os fatos não poderiam ter sido razoavelmente levados em conta pela parte em desvantagem no momento da formação do contrato; (c) os fatos estão fora da esfera de controle da parte em desvantagem; e (d) o risco pela superveniência dos fatos não foi assumido pela parte em desvantagem. Unidroit é o Instituto Internacional para a Unificação do Direito Privado. Os referidos Princípios Unidroit são um instrumento de soft law. Para aprofundamento: OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. Soft Law e Direito Privado Estrangeiro: fontes úteis aos juristas brasileiros. Disponível aqui. Publicado em 17 de janeiro de 2023.)
16 Art. 480. As partes podem estabelecer que, na hipótese de eventos supervenientes que alterem a base objetiva do contrato, negociarão a sua repactuação.
Parágrafo único. O disposto no caput não afasta eventual direito à revisão ou resolução do contrato no caso de frustração da negociação, desde que atendidos aos requisitos legais.
17 Art. 435-A. A proposta pode ser oferecida para aceitação por aplicativos digitais interativos ou autoexecutáveis no ambiente da internet e sua existência, validade e eficácia dependem dos seguintes requisitos:
I - que seja completa e clara;
II - plena clareza das informações prestadas ao oblato quanto ao manejo da sequência de assentimentos da cadeia de blocos posta para a aceitação da proposta;
III - forma clara e de fácil acesso, para que seja procedida a verificação da interrupção do processo de aceitação da proposta;
IV - plena clareza acerca do mecanismo que autentica a veracidade dos dados externalizados como elementos integrantes da futura contratação;
V - plena clareza das condições de sua celebração e dos seus riscos, no momento da manifestação inicial do aderente;
§ 1º A proposta e a aceitação realizadas pela forma prevista no caput deste artigo vinculam a parte que, em nome próprio ou representada por outrem, realizou ou autorizou a sequência de assentimentos da cadeia proposta para a realização dessa específica contratação.
§ 2º Os contratos autoexecutáveis dependem de prévia e plena clareza das condições de sua celebração e dos seus riscos, no momento da manifestação inicial do aderente.
§ 3º Para a plena clareza das informações de que trata o § 2º deste artigo, a proposta deverá conter informações que permitam ao oblato verificar a autenticidade de dados externos ser expressada por escrito, ainda que em meio virtual.
18 Art. 551. ..................................................................................
§ 1º Se os donatários, em tal caso, forem casados entre si ou viverem em união estável, subsistirá na totalidade a doação para o cônjuge ou convivente sobrevivos, desde que haja estipulação expressa nesse sentido.
§ 2º Se os doadores indicarem como donatários mais de uma pessoa, e pretenderem que, na falta de uma, os donatários remanescentes recebam a parte que ao outro cabia, devem expressamente fazer constar da escritura pública disposição fixando o direito de acrescer.