Nos contratos de seguro a obrigação do segurador é garantir o interesse legítimo do segurado contra riscos predeterminados que possam atingir bens ou pessoas. Para isso, o segurador deve constituir e administrar um fundo mutual com recursos para custear as indenizações decorrentes dos danos, ou o pagamento de capital segurado quando se tratar de seguros de pessoas.
A segunda obrigação do segurador e não menos importante que a primeira, é pagar a indenização em casos em que o risco predeterminado se materialize. Essa situação – de concretização do risco materializado -, é tecnicamente denominada de sinistro, uma palavra com origem latina que significa nocivo, contrário, funesto, infeliz1.
Na técnica de seguros a palavra adquiriu outro significado mais compatível com as operações de seguro: sinistro é o momento em que ocorre um acontecimento previamente previsto no contrato firmado entre as segurador e segurado e, dá início a um importante momento de atuação do segurador que é a regulação do sinistro, que culminará com o pagamento dos valores contratuais devidos, ou com a recusa fundamentada do segurador.
A regulação de sinistro não foi tratada com minúcias no CC de 2002 e, no entanto, sempre se mostrou momento sensível das relações securitárias, porque é na regulação que se apuram os fatos que originaram os danos; a existência ou não de agravação de risco, ou seja, o exame da conduta do segurado ou de seu preposto no momento do evento danoso; a extensão dos danos e os valores necessários para a indenização ou pagamento do capital segurado; e, nos casos de recusa do sinistro a apuração dos fatos e provas que levaram o segurador a concluir pelo não pagamento.
No cotidiano das relações contratuais entre segurados e seguradores, que por vezes envolvem outros seguradores em modelos de cosseguro ou, empresas resseguradoras contratadas pelo segurador, a realização da regulação de sinistro é um momento de especial relevância da boa-fé e dos deveres anexos de cooperação e confiança entre as partes.
Exatamente por isso, o tema merecia tratamento mais apurado do CC e a subcomissão de contratos cuidou para que isso acontecesse, recebendo ao final a aprovação da relatoria geral e dos demais integrantes da comissão de revisão e atualização do CC.
Os artigos que tratam de regulação de sinistros foram, sem dúvida, um avanço para o CC de 2002 e, por certo, contribuirão para viabilizar melhores relações entre segurados e seguradores, o que sempre será positivo para a ampliação do acesso a seguros e para a pacificação das relações contratuais.
- A regulação de sinistros na revisão e atualização do CC
O segurado é quem melhor conhece o interesse legítimo e os riscos aos quais ele está exposto. Nessa medida, cabe a ele informar na proposta de seguro todas as circunstâncias referentes ao interesse legítimo, seja este um bem ou uma pessoa, para que possam ser analisados todos os riscos que podem ocorrer e, para que seja possível segregar os que podem ser incluídos no contrato de seguro e aqueles que não são seguráveis.
Nem todos os riscos são seguráveis porque nem todos possuem estudos satisfatórios de frequência e severidade, dois elementos essenciais para que os seguradores possam organizar e administrar o fundo mutual. Quando os estudos estatísticos sobre frequência e severidade estão em quantidade adequada e, consequentemente, os cálculos de probabilidade são mais confiáveis, então o risco pode ser inserido na classificação de segurável e compor o rol de riscos predeterminados dos contratos de seguro.
A determinação dos riscos predeterminados que serão inseridos no contrato de seguros depende, fundamentalmente, das informações prestadas pelo segurado seja pelo comando legal da boa-fé como princípio que deve ser observado entre as partes, seja porque tecnicamente é do segurado o conhecimento sobre as especificidades do interesse legítimo e dos riscos aos quais está potencialmente submetido.
Com o avanço da tecnologia o conhecimento dos segurados sobre o interesse legítimo e riscos a que estão expostos, se tornou ainda mais relevante porque existem atividades empresariais desenvolvidas que são de pouco conhecimento para a maioria das pessoas, exatamente porque ancoradas em tecnologia de ponta, inovações ainda pouco utilizadas em outras áreas produtivas da sociedade. Mas são amplamente conhecidas pelo segurado que as utiliza.
Por outro lado, o segurador é quem detém maior experiência na realização dos atos necessários para a regulação do sinistro. É do segurador o dever de liderar a regulação exatamente porque conhece os melhores meios para que ela se desenvolva com segurança, celeridade e confiabilidade.
Tem à sua disposição extenso rol de peritos, técnicos, especialistas que podem auxiliar na identificação das causas do dano e da extensão deles, inclusive para dimensionar o valor dos salvados que é o nome que se dá aos bens que sofreram o risco, porém ainda possuem um valor econômico e podem ser vendidos no estado em que se encontram, com o resultado sendo revertido para o fundo mutual abatidas as despesas administrativas suportadas pelo segurador.
Assim, o melhor caminho para obtenção de bons resultados na regulação de sinistros passa, necessariamente, pela colaboração e confiança entre segurador e segurado quando o sinistro ocorre.
O art. 771 do CC de 2002 determina
Art. 771. Sob pena de perder o direito à indenização, o segurado participará o sinistro ao segurador, logo que o saiba, e tomará as providências imediatas para minorar-lhe as consequências.
Parágrafo único. Correm à conta do segurador, até o limite fixado no contrato, as despesas de salvamento consequente ao sinistro.
A expressão “logo que o saiba” é bastante imprecisa e, em consequência, deu margem a inúmeros conflitos porque para os seguradores quanto mais cedo forem avisados do sinistro, mais cedo iniciarão o trabalho de identificação das causas e dos danos se valendo de elementos que serão encontrados apenas nos primeiros momentos subsequentes ao sinistro e, depois, fatalmente se perderão.
É o que acontece, por exemplo, em acidentes rodoviários com transporte de carga, em incêndios de grandes proporções em áreas industriais, em acidentes com máquinas agrícolas entre outros. Quanto mais cedo o aviso de sinistro chegar ao segurador, mais celeremente serão tomadas as medidas para aferição da existência da cobertura no contrato de seguro e, das consequências danosas a serem indenizadas.
No anteprojeto de revisão e atualização do CC o caput do art. 771 recebeu nova redação
Art. 771. Sob pena de perder o direito à indenização, o segurado participará o sinistro ao segurador, no prazo de quinze dias de sua ciência inequívoca, e tomará as providências imediatas para minorar-lhe as consequências.
Foi estabelecido um prazo de 15 dias contados da data da inequívoca ciência do segurado sobre a ocorrência do sinistro, o que contempla de forma bastante confortável as peculiaridades brasileiras de grande extensão territorial, dificuldade de comunicação em algumas áreas do país, e mesmo peculiaridades do próprio segurado que, por vezes, possui vários estabelecimentos empresariais espalhados em diferentes regiões e isso provoca a demora em receber informações atualizadas do que se passa em cada um deles.
O parágrafo 1º obriga o segurador a colocar na proposta de seguro e no contrato, com destaque, a necessidade de comunicação no prazo de 15 dias e especificar o local – endereço físico ou digital -, para onde deverá ser enviada a comunicação de sinistro pelo segurado.
Atento às dificuldades que podem ocorrer em especial quando o sinistro decorre de fato de grandes proporções, como os desastres climáticos, por exemplo, o parágrafo 2º determina que a ausência do aviso de sinistro não implicará perda do direito à indenização, se o segurado provar que não tinha razoáveis condições razoáveis de tê-lo feito como ocorreu em maio de 2024 em muitas regiões do Estado do Rio Grande do Sul, por ocasião de graves eventos climáticos que provocaram enchentes, deslizamento de terra, destruição de cidades, estradas, pontes, viadutos, interromperam o fornecimento de energia elétrica e o funcionamento do sistema de saneamento.
Muitos segurados sequer podiam acessar suas empresas para saber se estavam ou não alagadas, ou para mensurar os danos que haviam decorrido do alagamento.
É certo que acontecimentos dessa proporção se tornam de conhecimento público e, por essa razão, o segurador não poderá alegar que não tinha ciência do fato. Basta que circunscreva a área atingida pelo evento de grandes proporções e verifique as apólices de diferentes ramos de seguro que possui nessa região. De todo modo, precisa ser informado para que possa iniciar a regulação e aferição da extensão dos danos.
A perda do direito à indenização só ocorrerá nos termos do parágrafo 3º do art. 771 do anteprojeto de revisão e atualização do CC, quando transcorridos 60 dias contados da data da ciência inequívoca do sinistro sem comunicação ao segurador. Mesmo em eventos de grande repercussão em áreas nas quais o segurador tenha apólices de seguro, é preciso que o segurado comunique o sinistro e com isso dê início ao processo de regulação que, ao final, irá determinar quais as coberturas e quais valores indenitários serão de obrigação do segurador.
O interesse legítimo pertence ao segurado e, ele ou seus beneficiários, têm o dever contratual de levar o fato ao conhecimento do segurador, ainda que se trate de fato notório como a queda de um avião com a lista de passageiros divulgada oficialmente e com a constatação de que todos foram a óbito. Mesmo assim, é dever dos beneficiários comunicarem porque é preciso apresentar documentos comprobatórios para que o segurador possa regular o sinistro e efetuar o pagamento do capital segurado.
Os dois prazos estabelecidos – 15 dias para noticiar o sinistro e 60 dias como prazo máximo para essa comunicação -, com acolhida de situações excepcionais em que o segurado demonstre que não era possível efetuar a comunicação, certamente serão positivas para solucionar conflitos que até hoje são comuns nas relações entre segurados e seguradores. A complexidade da sociedade contemporânea obriga a abandonar expressões vagas como logo que o saiba, e adotar a objetividade dos prazos e da determinação do início da contagem.
O anteprojeto de revisão e atualização do CC criou, ainda, alguns artigos novos para tratar com maior cuidado da regulação de sinistros.
Estabeleceu, por exemplo, no art. 771-A que compete ao seguradora realizar o trabalho de regulação do sinistro para aferir os fatos, as causas, a cobertura do risco, a extensão dos danos e a possibilidade de ressarcimento ao fundo mutual. Em outras palavras, tornou claro para todos em que consiste regular um sinistro, quais etapas deverão ser cumpridas e desse modo, contribuiu para maior transparência nas relações entre as partes contratantes.
O parágrafo único do art. 771-A determina que a regulação do sinistro poderá ser feita diretamente pelo segurado com seus colaboradores ou por terceiros contratados para essa finalidade, inclusive peritos e empresas especializadas, que deverão atuar sob responsabilidade do segurador, inclusive no tocante ao tempo despendido para as atividades inerentes à regulação.
O regulador de sinistro seja ele colaborador do segurador ou terceirizado por este, tem o dever de agir conforme a boa-fé e probidade e atuar sempre com correção, imparcialidade e celeridade no cumprimento de suas obrigações e atividades, nos termos da redação do art. 771-D, introduzido pelo anteprojeto.
Essa determinação vai viabilizar que os reguladores de sinistro, internos ou externos, sejam cada vez mais preparados para o exercício profissional da atividade, sendo possível acreditar que no futuro próximo possam constituir entidades representativas e agregarem um código de ética às suas funções, o que é amplamente desejável e positivo.
A mora do segurador no cumprimento da obrigação de pagar a indenização ou o capital segurado, nos termos do art. 772 do anteprojeto de revisão e atualização do CC, gera a incidência de correção monetária no valor devido com aplicação de índices oficiais, juros de mora desde a data em que a obrigação deveria ter sido paga e, acrescida de honorários contratuais de advogado e perdas e danos quando comprovados em favor do segurado.
Nesse aspecto, tanto quanto no que diz respeito ao prazo de aviso de sinistro, é preciso ponderar que determinados sinistros oferecem alto grau de complexidade para sua regulação. É o que acontece, por exemplo, quando para a regulação for necessário obter documentos que sejam expedidos por autoridades portuárias ou alfandegárias de outros países, ou, quando para a correta identificação da causa do acidente aéreo seja necessário aguardar o laudo do órgão público brasileiro responsável pela apuração, ou, ainda, quando existam dificuldades objetivas para acessar a região em que o sinistro ocorreu.
Todos esses fatos deverão ser objeto de informação do segurador para o segurado e corretor de seguro, para que possam acompanhar o desenvolvimento da regulação, colaborar no que for possível e compreender as causas da dificuldade.
Necessária, ainda, uma última reflexão sobre os termos do art. 771-C do anteprojeto que atualizou o CC para solucionar outra causa de conflito nas relações entre segurados e seguradores: o relatório final de regulação de sinistro e sua publicidade.
Determina o art. 771-C
Art. 771-C. Nos casos de negativa de cobertura parcial ou total, o relatório final de regulação do sinistro, quando solicitado, deve ser compartilhado com o segurado ou com o beneficiário do seguro.
Parágrafo único. Nos contratos paritários e simétricos, os documentos que compõem o processo de regulação e liquidação do sinistro são confidenciais.
A regulação de sinistro deve ser concluída com a apresentação de um relatório realizado pelo regulador, interno ou externo, e avaliado pelo segurador. Esse relatório e os documentos que o acompanham, produzido com recursos do segurador precisa, obrigatoriamente, ser compartilhado com o segurado?
A resposta não tem a racionalidade que seria desejável porque as circunstâncias podem ser bastante complexas. Imagine um seguro de responsabilidade civil empregador em que os beneficiários são os colaboradores de uma empresa que produz melaço de cana. Ocorrido o sinistro o segurador desloca para o local uma equipe para realizar a vistoria e constatar quais as causas do acidente e os danos causados, já sabendo que o evento provou a morte de três colaboradores da empresa segurada.
No local o regulador de sinistros constata que há indisfarçável revolta dos colaboradores do setor com o fato ocorrido e consegue, por meio de troca de mensagens de aplicativo ou até em um encontro fora das instalações do segurado, obter informações de que há notória negligência com a segurança do trabalho, que os EPIs não são satisfatórios, que não há treinamento para o exercício de atividades mais perigosas e outras da mesma natureza. Dois colaboradores se dispõem a prestar essas informações por escrito e assiná-las com firma reconhecida em cartório.
O segurador embasado nessas informações e tendo constatado que o evento ocorreu por falha do colaborador, que não havia sido adequadamente capacitado para operar o equipamento que causou a explosão, nega cobertura para o sinistro sob alegação de agravação de risco. Deve compartilhar com o segurado o relatório final que menciona o nome dos colaboradores e as informações que eles prestaram?
Essas e outras circunstâncias semelhantes são mais comuns na experiência da regulação de sinistros de seguros do que podem imaginar aqueles que não acompanham com assiduidade esse cotidiano. Inúmeros outros exemplos poderiam ser trazidos como laudos técnicos que demonstram cabalmente que as obras civis executadas pelo segurado utilizavam menor quantidade de concreto por medida de economia, ou que estavam diferente da planta aprovada junto aos órgãos da administração pública em evidente prática ilícita. O segurador tem obrigação de mostrar ao segurado as provas que conseguiu reunir contra ele?
Assim, a solução do art. 771-C é bastante positiva. Para os contratos de seguro massificados e quase sempre regulados pelo CDC, lei 8.078, de 1990, se o segurado solicitar o relatório final em caso de recusa parcial ou total do pagamento da indenização pelo segurador, o documento deverá ser compartilhado.
Para os contratos de seguro paritários e simétricos formalizado entre empresas que ocupam a posição de segurador e segurado, para riscos não massificados como riscos de engenharia, responsabilidade civil para empregados, produtos, poluição, riscos nominados ou operacionais, entre outros, o relatório final não será compartilhado em razão de seu caráter confidencial.
Nos contratos paritários e simétricos não há impedimento para que as partes formem um conselho de disputas, ou seja, um conselho administrador de conflitos que se reúna todas as vezes em que for necessária a regulação de um sinistro ao longo do período de vigência da apólice, com objetivo de discutir com transparência e objetividade as circunstâncias, os dados obtidos, confrontar informações diferentes e, ao final, chegarem a um bom termo para solução do sinistro.
Conclusão
O anteprojeto de revisão e atualização do CC foi concebido para ser uma contribuição para a melhoria das relações jurídicas civis no país. Partiu de dados concretos encontrados nas decisões dos tribunais mais importantes do país, dos debates das jornadas de Direito Civil e, da experiência dialogada entre profissionais das mais diferentes práticas jurídicas.
É um projeto que prima pela solução de problemas, pela simplificação de medidas, pela efetividade das normas e princípios para que alcancem o cidadão comum e contribuam para que sua vida, pessoal e empresarial, seja mais simples e melhor.
É correto pensar que outros aprimoramentos poderão ser incluídos e certamente serão nos debates que o parlamento fará. Mas no estado em que se encontra o anteprojeto ele, certamente, honra as intenções de Miguel Reale e contribui para que a vida em sociedade seja mais bem estruturada.
No aspecto específico aqui tratado – a regulação de sinistros nos contratos de seguro-, o anteprojeto trouxe excelente contribuição e, com toda certeza, será muito útil para pacificar as relações entre segurados e seguradores.
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1 ALVIM, Pedro. O Contrato de Seguro. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999.