Reforma do Código Civil

A posse na atualização do Código Civil

O texto trata da evolução histórica e jurídica dos conceitos de posse e propriedade no Brasil, com destaque para as mudanças trazidas pela CF/88. Inicialmente, aborda como o Código Civil de 1916 tratava a propriedade como um direito quase absoluto e a posse como uma manifestação subordinada à propriedade.

2/10/2024

1. Posse e propriedade: conceito e funcionalização dos institutos 

Em um país continental como o Brasil, associado ao fato da questão das imensas desigualdades socioeconômicas, em grande parte advindas da própria história da colonização o tratamento da posse e propriedade sempre reclamou especial atenção por parte do legislador.

Nesse passo de ideias, não custa relembrar que posse e propriedade são fenômenos jurídicos de antigo desenvolvimento, contando com análise profícua na doutrina e na própria legislação. O Código Civil de 1916 cuidou de estipular o sentido destes institutos. Assim é que o seu art. 524 estabelecia que “a lei assegura ao proprietário o direito de usar, gozar e dispor de seus bens, e de reavê-los do poder de quem quer que injustamente os possua”. Por sua vez, o art. 485 da lei hoje revogada assim previa: “considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício pleno, ou não, de algum dos poderes inerentes ao domínio, ou propriedade”.

Válido nos parece o registro de que a propriedade era, à época, o direito de ter a coisa e dela se servir de modo (quase) absoluto; a posse, por seu turno, representava o exercício, sobre a coisa, de algum ou alguns dos poderes que compunham a propriedade, quais sejam: o uso, o gozo, a disposição e a reivindicação. A posse constituía, sob esse prisma, mera exteriorização das faculdades concedidas ao proprietário.1

Nesse sentido, pode-se dizer até que a propriedade se cercava de ares que beiravam o absolutismo significando afirmar, portanto, que na redação do Código Beviláqua, deferiu-se ao proprietário o direito de livremente usar, gozar, reaver ou dispor da coisa que lhe pertencia. Desse modo, a destinação a ser conferida aos bens era indiferente, bastando que se resguardasse ao proprietário a ampla prerrogativa de se valer deles para a satisfação de interesses puramente egoístas. 

Com o passar do tempo, a própria mutação histórica com a queda dos regimes totalitários, a redemocratização de vários países e o surgimento das constituições democráticas trouxeram novos contornos para a posse e propriedade. Assim, redesenhar esses velhos conceitos de propriedade e de posse tornou-se um imperativo, e um importante passo nesse sentido foi tomado com a promulgação da Constituição da 1988, cujo texto proclamou nova visão ao direito de propriedade, alargando-se a ideia da sua funcionalização, pela consagração de duas disposições expressamente direcionadas à regulamentação do instituto: numa delas, se garante o direito à propriedade privada (art. 5º, XXII) e, na outra, é condicionado o exercício desse direito à observação do princípio da função social (art. 5º, XXIII). Além disso, ao tratar dos princípios da ordem econômica, o artigo 170 da Constituição torna a se referir à propriedade privada e à sua função social.

Se descortina, então, novo horizonte. A visão outrora prevalecente, que outorgava ao proprietário um direito praticamente absoluto sobre a coisa, cede diante da feição socializante inaugurada pela Constituição de 1988. Continua o proprietário, albergado na tutela de seu direito de usar e gozar do que lhe pertence, mas o exercício do direito de propriedade somente se considera regular se o seu titular for capaz de equacionar seus interesses particulares com o imperativo de utilidade social, que não condiz, em absoluto, com o uso dos bens para fins puramente especulativos ou egoístas.

Assim, tomando-se a necessidade de conferir concretude a função social, não somente foi a propriedade referida como direito e garantia individual e como princípio da ordem econômica, mas ganhou também, nas palavras de Anderson Schreiber e Gustavo Tepedino, a indicação de um conteúdo mínimo, particularmente, no que tange à propriedade imobiliária.

Desse modo, o artigo 186 da Constituição de 1988 esquadrinhou os requisitos objetivos para o atendimento da função social da propriedade rural, por meio de critérios bem definidos: I – aproveitamento racional e adequado; II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores. Do mesmo modo, a a propriedade imobiliária urbana somente terá cumprida sua função social quando atender às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor.2

A Constituição de 1988, corroborando com a nova vertente socializadora, cuidou de estabelecer as sanções a que se sujeitam os proprietários de imóveis desidiosos na concessão da função social à propriedade. Em se tratando da propriedade urbana, elas podem passar pelo parcelamento ou edificação compulsórios, pela imposição do imposto progressivo no tempo e, em última instância, pela desapropriação do bem. Sendo rural a propriedade, caberá à União promover a desapropriação por interesse social, para fins de reforma agrária, do imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, tudo sem prejuízo do aumento progressivo do imposto territorial rural, de forma a desestimular a manutenção de propriedades improdutivas.

O preceito da função social, portanto, deve ser adequadamente equacionado. A medida não pode ser vista tão-somente como uma barreira a impor limites negativos ao exercício da propriedade; mais do que isso, a função social impõe, num sentido propositivo, a promoção dos valores que servem de base para o ordenamento, como o direito social à moradia, o objetivo de construir uma sociedade justa e solidária e o princípio da dignidade da pessoa humana. Assim, a função social não se contrapõe à noção de propriedade privada, mas a preenche, de modo a consistir no autêntico fundamento da atribuição desse direito a um titular.

A velha noção da propriedade como direito absoluto cede, pois, diante da nova concepção de poder-dever, em que o direito de propriedade supre não apenas as necessidades e interesses pessoais do seu titular, mas representa importante instrumento de promoção da pessoa e dos interesses da coletividade. 

2. O regime jurídico da posse no ordenamento brasileiro: teorias possessórias e a função social da posse 

Revisitadas as bases que fundamentam o direito de propriedade, cumpre também proclamar uma nova concepção do instituto da posse, que sói escapar das clássicas teorias formuladas por Savigny e Ihering.

Trilhando ainda, esse passeio pela história, passa-se à análise da matéria no Código Civil de Reale, que conferiu à posse o mesmo tratamento que lhe tinha sido atribuído pelo diploma anterior. Vejamos, por exemplo, o conteúdo descrito no art. 1.196 do Código de 2002, “considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade”.

Na redação proposta para reforma e atualização do Código, foi acrescentado o parágrafo único, estendendo-se o alcance da posse, também para os bens incorpóreos. Vejamos a redação proposta: “Considera-se possuidor todo aquele que tem, sobre coisa corpórea, o exercício de fato, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade. Parágrafo único. A regra do caput se aplica aos bens imateriais no que couber, ressalvado o disposto em legislação especial”.

Como podemos notar, subsistiram as bases da teoria objetiva, formulada por Ihering, segundo a qual a posse seria composta pela conjugação de dois elementos: corpus (que se manifesta pelo interesse econômico do possuidor sobre a coisa, e não necessariamente por sua apreensão física direta e intermitente) e animus (aqui considerado não no sentido da intenção de ser proprietário, conforme pretendeu Savigny, mas como o ânimo de se comportar em relação à coisa, da mesma forma como faria o seu dono).

Outra visão sobre o tema, contudo, se torna possível. Reordenada a concepção tradicional da propriedade, que passa a ter de atender, para ser resguardada, a uma função social, não há razão para deixar de aplicar também à posse a mesma noção de funcionalização. Emergem então as denominadas teorias sociológicas da posse, que rompem com a perspectiva estática desse instituto como mera conjugação de fatores ligados ao interesse do possuidor para proclamar a sua autonomia em relação à propriedade.

A posse, nesse contexto, não é mera aparência da propriedade, devendo ser encarada sob uma vertente constitucionalizada, especialmente no tocante aos preceitos constitucionais do direito social à moradia (art. 6º), da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), da justiça e solidariedade (art. 3º, I) e dos vetores contidos, em particular, no referido art. 186 da Constituição da República, que impõe o aproveitamento adequado da propriedade rural – a demandar, por consequência, o exercício apropriado do direito à posse. Apesar de não merecer expressa consagração no texto legal, não se pode deixar de reconhecer que, em um ordenamento centrado nos valores constitucionais acabados de mencionar, também a posse tem uma função social a cumprir.

A exemplo do que se passa com a propriedade, cuja proteção se funda não só na titularidade comprovada no registro imobiliário, mas no modo do seu exercício, também a tutela da posse passa a depender da destinação que lhe é dada pelo titular do direito sobre a coisa. Deixa-se de lado, então, a tecnicidade das noções formuladas por Savigny e Ihering. A posse já não se basta como simples resultado de uma somatória de elementos estáticos (corpus e animus, já referidos); a sua funcionalização exige do possuidor comportamentos comissivos, cabendo fazer da propriedade um meio que atenda à moradia, ao trabalho e aos interesses da coletividade, mais que aqueles estritamente atinentes ao próprio possuidor.

A consagração de novos valores constitucionais, voltados para a realização da dignidade humana e a funcionalização de institutos privados, permite o desabrochar de uma releitura do papel da posse no ordenamento jurídico brasileiro, o que pode contribuir inclusive com a boa resolução dos conflitos possessórios suscitados em nossos Tribunais.

Com efeito, nas ações possessórias, a exemplo da reintegração de posse, é possível que o magistrado, antes de conceder a medida antecipatória e restituir a posse ao demandante, verifique se o pretendente de fato dava vida à função social constitucionalmente imposta. Sopesando-se os interesses daqueles que, de um lado, tratam com desídia a propriedade e apenas a têm como componente patrimonial e, de outro, dos que dela extraem suas potencialidades e nela vivem, provendo suas dignidades, pode-se concluir que prevalecem os derradeiros.

Outra não é a conclusão de Nelson Rosenvald e Cristiano chaves de farias, para quem “quando houver divergência entre os anseios do proprietário que deseja a posse, mas nunca lhe deu a função social, e, de outro lado o possuidor, que mantém ingerência econômica sobre o bem, concedendo função social à posse, será necessário priorizar a interpretação que mais sentido possa conferir à dignidade da pessoa humana”.3 

3. Considerações finais 

Diga-se, finalmente, que o presente texto não tem viés político ou sociológico, eis que a proposta é apenas a de ressaltar que os valores inaugurados pela Constituição da República de 1988, quando incidentes sobre o regime jurídico da posse e da propriedade, são suficientes para municiar a doutrina e sobretudo a jurisprudência de elementos que permitam atingir, nas lides de natureza possessória, soluções menos apegadas ao aspecto individual-econômico da propriedade e mais consentâneas com a necessidade de se prover moradia e trabalho aos que clamam por eles, tendo sido esse paradigma amplamente conservado na proposta de atualização do Código Civil.

A funcionalização da posse, portanto, representa importante passo para a adequada interpretação deste instituto e para a resolução das lides nele calcadas. Se tal será ou não o bastante para solver em definitivo a controvérsia é polêmica que escapa ao mérito deste trabalho, que tenciona indicar, ao menos, uma via possível rumo à melhor interpretação a prevalecer sobre a posse no país. 

4. Referências 

FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direitos reais. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. 

IHERING, Rudolf von. Teoria simplificada da posse. Belo Horizonte: Líder, 2004.  

SCHREIBER, Anderson; TEPEDINO, Gustavo. A garantia da propriedade no direito brasileiro. Revista da Faculdade de Direito de Campos, a. VI, n. 6, junho de 2005, p. 101-119. 

__________

1 Para IHERING - cuja teoria foi absorvida tanto pelo Código Civil de 1916 como pelo diploma atual, conforme acentuaremos oportunamente - a posse “é o poder de fato e a propriedade o poder de direito sobre a coisa”. Prossegue o jurista afirmando que “a propriedade sem a posse seria um tesouro sem chave para abri-lo, uma árvore frutífera sem a competente escada para colher-lhe os frutos” para, afinal, concluir que “tirar a posse é paralisar a propriedade” (IHERING, Rudolf von. Teoria simplificada da posse. Belo Horizonte: Líder, 2004, p. 8-9). 

2 SCHREIBER, Anderson; TEPEDINO, Gustavo. A garantia da propriedade no direito brasileiro. Revista da Faculdade de Direito de Campos, a. VI, n. 6, junho de 2005, p. 103-104.

3 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direitos reais. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 50-53.

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Colunistas

Flávio Tartuce é pós-doutor e doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUCSP. Professor Titular permanente e coordenador do mestrado da Escola Paulista de Direito (EPD). Professor e coordenador do curso de mestrado e dos cursos de pós-graduação lato sensu em Direito Privado da EPD. Patrono regente da pós-graduação lato sensu em Advocacia do Direito Negocial e Imobiliário da EBRADI. Diretor-Geral da ESA da OABSP. Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT). Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família em São Paulo (IBDFAMSP). Advogado em São Paulo, parecerista e consultor jurídico. Relator-Geral da proposta da reforma do Código Civil.

Luis Felipe Salomão é ministro do Superior Tribunal de Justiça. Corregedor Nacional de Justiça. Membro da Corte Especial do STJ. Presidente da comissão de juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil.

Marco Aurélio Bellizze é ministro do Superior Tribunal de Justiça. Membro da 3ª Turma. Membro da 2ª Seção. Membro da Comissão de Jurisprudência. Professor da Fundação Getúlio Vargas desde 2021. Coordenador Acadêmico da FGV/Exame de Ordem. Vice-presidente da comissão de juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil.

Rosa Maria de Andrade Nery é professora associada de Direito Civil da Faculdade de Direito da PUC/SP. Livre-Docente, doutora e mestre em Direito pela PUC/SP. Árbitra em diversas câmaras de arbitragem do Brasil. Foi Procuradora de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo por 20 anos e desembargadora do Tribunal de Justiça o Estado de São Paulo por 15 anos. Titular da cadeira de número 60 da Academia Paulista de Direito. Professora do curso de graduação e de pós-graduação em Direito da PUC/SP e professora colaboradora do Centro Universitário Ítalo-Brasileiro. Relatora da proposta da reforma do Código Civil.