Reforma do Código Civil

Assinatura eletrônica no projeto da reforma do Código Civil

Nas últimas décadas, a tecnologia transformou as relações sociais e os negócios jurídicos. A reforma do Código Civil incorporou um livro sobre Direito Digital para abordar desafios do meio digital, incluindo a regulamentação da assinatura eletrônica.

3/9/2024

Nas últimas décadas, a tecnologia alterou profundamente as relações sociais, sendo inevitável que os seus impactos repercutissem também nos atos e negócios jurídicos. A comissão de juristas responsável pela reforma do Código Civil, atenta a esse fenômeno, não apenas incluiu previsões que tangenciam a temática nos dispositivos sugeridos, como também previu um livro autônomo para o Direito Digital, com o intuito de harmonizar o ordenamento jurídico e abarcar os desafios e as peculiares do ambiente digital. Decorridas múltiplas reuniões e consultas, foi divulgado o relatório final, contemplando as contribuições que foram aprovadas.1

No livro dedicado ao Direito Digital foram introduzidas previsões sobre assinatura eletrônica, ante a migração das relações contratuais para o meio digital. A assinatura manuscrita, meio consolidado e amplamente utilizado para atestar a ciência e o consentimento de uma parte em relação ao teor de um documento2, coexiste com outra modalidade que vem ganhando crescente relevância, a assinatura eletrônica. As categorias existentes possuem grau progressivo de confiabilidade com relação a autoria, a integridade e a autenticidade, que se iniciam com a assinatura eletrônica simples, perpassam pela assinatura eletrônica avançada até atingir o seu maior nível com a assinatura eletrônica qualificada.

Na Europa, em 1999, foi elaborada a primeira regulamentação comunitária sobre o tema, a diretiva 1999/93/CE, oportunidade em que foram apresentados os elementos mínimos para a confiabilidade das assinaturas eletrônicas. A existência de instrumentos que permitissem o controle exclusivo do signatário e a verificação de eventuais alterações do seus dados foram atreladas à modalidade de assinatura eletrônica avançada, ao passo que o uso de certificado eletrônico qualificado emitido por prestador de servidor creditado, que assegurasse o nexo entre os dados de verificação da assinatura e a identicidade inequívoca ao signatário, foi associada à assinatura eletrônica qualificada. O cenário legal foi aperfeiçoado em 2014, com a edição do regulamento 910/14/CE (regulamento eIDAS), que, entre outros, determinou a existência de autoridade supervisora em cada Estado-Membro para regular o assunto naquela circunscrição e fixou a equivalência entre a assinatura eletrônica qualificada e a assinatura manuscrita.3

O Brasil legislou pela primeira vez sobre a matéria com a edição da MP 2.200-2, de 24/8/01, que instituiu a ICP-Brasil - Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira, a qual serve como fundamento para o funcionamento do sistema nacional de assinaturas eletrônicas. Complementarmente, a lei 14.063/20 definiu as modalidades de assinaturas eletrônicas, fazendo referência expressa às três espécies4, o que não existia até então, além de estabelecer suas aplicações em interações com entidades públicas e em determinados atos realizados por pessoas jurídicas.

Ante a ausência de dispositivos sobre assinatura eletrônica no Código Civil, o grupo de Direito Digital apresentou sugestões, em capítulo dedicado, no qual foram incorporadas as definições conceituais contidas no art. 4º, I a III da lei 14.063/20, bem como a presunção de veracidade ali fixada em prol das declarações que utilizam o sistema de certificação da ICP-Brasil, empregado nas assinaturas eletrônicas qualificadas.

Previsão relevante estabelece que, salvo disposição legal em sentido contrário, a validade de documentos constitutivos, modificativos ou extintivos de posições jurídicas que produzam efeitos perante terceiros depende de assinatura qualificada. O intuito foi assegurar que a espécie de assinatura eletrônica considerada mais segura, em termos de certeza quanto à identidade do signatário e integridade do conteúdo, e traz em si a possibilidade de checagem para fins probatórios, a modalidade qualificada, fosse  utilizada em atos jurídicos que possam afetar terceiros. A seara dos direitos reais é permeada de exemplos nesse sentido, como as operações de venda e compra de imóveis e de constituição de usufruto, que devem ser registradas no registro público para eficácia plena da publicidade registral. Atos afetos a outros ramos do Direito, como a instituição de legados ou a realização de doações de bens da parte disponível da herança também podem exigir o uso de assinatura eletrônica qualificada. Ponto distintivo adicional da proposta da Comissão é a previsão de que a assinatura eletrônica não serve como meio de comprovação da capacidade do signatário ou da inexistência de vícios na manifestação de vontade. A eficiência do método de assinatura eletrônica empregado não se confunde com a comprovação da capacidade do signatário em compreender o ato jurídico praticado e suas implicações.

A integração da tecnologia no Direito, refletida na reforma do Código Civil e na criação do livro autônomo para o direito digital, marca um avanço significativo na adaptação do ordenamento jurídico às novas realidades digitais. A inclusão das modalidades de assinatura eletrônica no sistema jurídico brasileiro, com ênfase na assinatura eletrônica qualificada, demonstra um esforço deliberado para garantir segurança e confiabilidade nos atos jurídicos em um ambiente digital cada vez mais presente. A reforma, portanto, não apenas harmoniza o direito com as novas tecnologias, mas também estabelece limites claros para assegurar a integridade dos atos jurídicos. Dessa forma, o Código Civil atualizado oferece uma base sólida para lidar com os desafios do ambiente digital, promovendo uma maior segurança jurídica e adaptabilidade em um cenário de constantes inovações tecnológicas.

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1 Disponível aqui.

2 Para Béatrice Fraenkel, antropóloga especializada em antropologia da escrita, a assinatura surgiu como um símbolo da identidade moderna que se estabelecia, incorporando o eu individua, a capacidade de emitir juízos morais, de agir conforme a legislação e de consentir e estabelecer relações sociais. Com o crescimento da alfabetização, a disseminação das normas escritas e a criação de governos  mais burocráticos, a assinatura tornou-se um instrumento de validação capaz de converter um documento escrito em um ato jurídico. FRAENKEL, B. La signature, gene`se d’un signe. Paris: Gallimard, 1992.

3 Na Alemanha apenas as assinaturas eletrônicas qualificadas, conforme definido no Art. 3(12) do Regulamento eIDAS, atendem aos requisitos de forma eletrônica estabelecidos pelo § 126-A do Código Civil Alemão (BGB), podendo substituir a forma escrita legalmente exigida. Apenas  documentos eletrônicos assinados com assinatura eletrônica qualificada possuem o mesmo valor probatório que os documentos em papel, de acordo com o Código de Processo Civil (seção 371-A (1) ZPO).

4 Art. 4º Para efeitos desta Lei, as assinaturas eletrônicas são classificadas em:

I - assinatura eletrônica simples:

a) a que permite identificar o seu signatário;

b) a que anexa ou associa dados a outros dados em formato eletrônico do signatário;

II - assinatura eletrônica avançada: a que utiliza certificados não emitidos pela ICP-Brasil ou outro meio de comprovação da autoria e da integridade de documentos em forma eletrônica, desde que admitido pelas partes como válido ou aceito pela pessoa a quem for oposto o documento, com as seguintes características:

a) está associada ao signatário de maneira unívoca;

b) utiliza dados para a criação de assinatura eletrônica cujo signatário pode, com elevado nível de confiança, operar sob o seu controle exclusivo;

c) está relacionada aos dados a ela associados de tal modo que qualquer modificação posterior é detectável;

III - assinatura eletrônica qualificada: a que utiliza certificado digital, nos termos do § 1º do art. 10 da Medida Provisória nº 2.200-2, de 24 de agosto de 2001.

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Colunistas

Flávio Tartuce é pós-doutor e doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUCSP. Professor Titular permanente e coordenador do mestrado da Escola Paulista de Direito (EPD). Professor e coordenador do curso de mestrado e dos cursos de pós-graduação lato sensu em Direito Privado da EPD. Patrono regente da pós-graduação lato sensu em Advocacia do Direito Negocial e Imobiliário da EBRADI. Diretor-Geral da ESA da OABSP. Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT). Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família em São Paulo (IBDFAMSP). Advogado em São Paulo, parecerista e consultor jurídico. Relator-Geral da proposta da reforma do Código Civil.

Luis Felipe Salomão é ministro do Superior Tribunal de Justiça. Corregedor Nacional de Justiça. Membro da Corte Especial do STJ. Presidente da comissão de juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil.

Marco Aurélio Bellizze é ministro do Superior Tribunal de Justiça. Membro da 3ª Turma. Membro da 2ª Seção. Membro da Comissão de Jurisprudência. Professor da Fundação Getúlio Vargas desde 2021. Coordenador Acadêmico da FGV/Exame de Ordem. Vice-presidente da comissão de juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil.

Rosa Maria de Andrade Nery é professora associada de Direito Civil da Faculdade de Direito da PUC/SP. Livre-Docente, doutora e mestre em Direito pela PUC/SP. Árbitra em diversas câmaras de arbitragem do Brasil. Foi Procuradora de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo por 20 anos e desembargadora do Tribunal de Justiça o Estado de São Paulo por 15 anos. Titular da cadeira de número 60 da Academia Paulista de Direito. Professora do curso de graduação e de pós-graduação em Direito da PUC/SP e professora colaboradora do Centro Universitário Ítalo-Brasileiro. Relatora da proposta da reforma do Código Civil.