Reforma do Código Civil

Personalidade internacional

O texto aborda o Estudo de Atualização do Código Civil brasileiro, entregue ao presidente do Senado, senador Rodrigo Pacheco. O foco principal está na análise e nas críticas ao tratamento do conceito de "personalidade" no artigo 1.º do Código Civil.

27/8/2024

 Todas as críticas são benvindas ao Estudo de Atualização do Código Civil Brasileiro, entregue ao E. Presidente do Senado Federal, Senador Rodrigo Pacheco, em 17.4.2024, e elas suscitam oportuna ocasião de debate acadêmico, tão salutar na democracia e tão importante para o crescimento cultural do país. 

A Douta Subcomissão de Teoria Geral de Direito Privado, chamada de “Subcomissão da Parte Geral”, em rico e moderno trabalho, elaborado pelos professores Rodrigo Mudrovitsch – relator parcial, Ministro João Otávio de Noronha, Rogério Marrone de Castro Sampaio e Estela Aranha trouxe significativos apontamentos para a melhora substancial do texto da Parte Geral do Código Civil. 

O Livro I, Título I, Capítulo I, artigo primeiro da Parte Geral do Código Civil cuida especificamente da centralidade do tema “personalidade”, como correspondente à investidura da pessoa como sujeito de direitos, aquela mesma pessoa, aquele mesmo sujeito, a quem o comando da Constituição Federal assegura “o exercício de direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional”.1 

O tema desse capítulo, portanto, é personalidade e capacidade jurídica e seus desdobramentos (capacidade de exercício, auto curatela e prova de estado). 

O artigo 1.º do Código Civil não cuida do chamado “direito de personalidade, ou de humanidade”, tampouco de “capacidade de exercício”, mas da centralidade do ser como sujeito de direitos, embora se valha de marcos temporais naturais e precisos, do começo e do fim da vida humana, para também fixar balizas para o começo e o fim da personalidade. Mas não se pode confundir “personalidade” com “humanidade”.           

Nesta expressão, tão eloquente – pessoa – , há muitos segredos revelados da história do ocidente e  da transposição ética do conceito de “pessoa” para   o direito civil. 

Estudo recente realizado pelo Instituto dos Advogados de São Paulo – nessa parte elaborado pelos Professores  Silmara Juny de Abreu Chinelatto, Hamid Charaf Bdine Junior e Diogo Leonardo Machado de Melo – nos oferece muitas ocasiões de debate. Principia referido estudo por criticar a inserção da expressão “personalidade internacional” no parágrafo criado, para o artigo 1.º do vigente Código Civil Brasileiro, que tem o seguinte texto: “nos termos dos tratados internacionais dos quais o País é signatário, reconhece-se personalidade internacional a todas as pessoas em território nacional, garantindo-lhes direitos, deveres e liberdades fundamentais”. 

A expressão, “país signatário” está na Lei 8.078, de 11.9.90 (art. 7º. caput), sem que nesses mais de 30 anos de vigência da Constituição Federal de 1988 se saiba ter sido esse artigo objeto de qualquer corrigenda por parte das Altas Cortes do País. 

Evidentemente, o parágrafo 2.º, do artigo 5.º da Constituição Federal é muito mais amplo do que o parágrafo proposto para integrar o art. 1.º do CC, pois confere natureza de norma constitucional ao tratado internacional sobre direitos humanos de que o Brasil seja parte, depois de aprovado por decreto legislativo e mandado executar por decreto presidencial. 

A razão de ser da sugestão de redação para artigo 1.º, parágrafo único do Código Civil é outra. 

A expressão “personalidade de direito internacional“, para todos quantos estão em território nacional, brasileiros, natos e naturalizados, estrangeiros, refugiados, asilados e apátridas faz reavivar expressamente a eficácia civil, em território nacional, dos direitos fundamentais reconhecidos pelo Brasil em tratados e em convenções internacionais, embora já sedimentados na cultura jurídica de nosso país. 

Quanto à ideia de trazer o tema ao Código Civil, não é demais considerar, como nos lembrou a Professora Claudia Lima Marques, em discussões da Comissão, que o revogado Código Civil de 1916, em seu artigo 3º., tinha artigo muito expressivo, que não veio de ser repetido no Código Civil de 2002, com o seguinte texto: A lei não distingue entre nacionais e estrangeiros quanto à aquisição e ao gozo dos direitos civis. 

São comandos que não decorrem, apenas, da autoridade, mas de via de liberdade e de paridade recíproca entre todas as Nações.  Há, portanto, aqui, um pequeno, mas significativo avanço dogmático que admite argumentação mais ampla para a compreensão da igualdade que brota da civilidade e não apenas da cidadania. 

Todos são sujeitos de direitos fundamentais e titulares de posições jurídicas reconhecidas pelo Direito Internacional e pelo Direito Constitucional Brasileiro, evidentemente, nos limites que a Carta Magna os permite, com expressão clara na experiência civil e nas peculiares situações jurídicas que passaram a se estabelecer com mais frequência na vida de relações civis de cidadãos e não cidadãos. 

O ser investido de personalidade tem “capacidade de direito”, experimenta poderes e deveres, situações de vantagens e de desvantagens, e transita no mundo de suas experiências jurídicas, na ordem interna e internacional. Tudo isso é condizente com a identificação do personagem (o sujeito, a pessoa) que – no mundo dos fenômenos jurídicos – é protagonista, com desenvoltura, de essencialidades e pontencialidades de sua humanidade ou de sua especial forma de estar no mundo: viver e ser livre. 

Propício o reconhecimento, portanto, de que a qualidade de sujeito de direitos, qualidade de que estão investidos todos, em território brasileiro, na mesma condição de dignidade do sujeito nacional, evidentemente nos limites que a Constituição Federal impõe, cria o “sujeito de direito internacional”. 

Assim, como ensina a Prof.ª Flávia Piovesan, "os tratados internacionais de direitos humanos, menos que estabelecer o equili'brio de interesses entre os Estados (como ocorre com os tratados internacionais tradicionais), buscam garantir o exerci'cio de direitos e liberdades fundamentais. A partir desta perspectiva, na~o apenas o Estado, mas tambe'm o indivi'duo passa a ser sujeito de direito internacional”.2 (grifei) 

Pode ser que o texto deva merecer a corrigenda que os doutos Professores sugerem, mas ser suprimido o texto para não contrariar o conteúdo e alcance disposto no § 2.º do artigo 5.º da Constituição Federal pareceu-nos, com todo o respeito, uma medida que não caminha no sentido do mote do estudo proposto pelo Senado à Comissão: avançar, atualizar e compreender vicissitudes do nosso tempo.

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1 Preâmbulo da Constituição Federal da República Federativa do Brasil.

2 Fla'via Piovesan. A protec¸a~o internacional dos direitos humanos e o direito brasileiro, RDCI 26/34.

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Colunistas

Flávio Tartuce é pós-doutor e doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUCSP. Professor Titular permanente e coordenador do mestrado da Escola Paulista de Direito (EPD). Professor e coordenador do curso de mestrado e dos cursos de pós-graduação lato sensu em Direito Privado da EPD. Patrono regente da pós-graduação lato sensu em Advocacia do Direito Negocial e Imobiliário da EBRADI. Diretor-Geral da ESA da OABSP. Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT). Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família em São Paulo (IBDFAMSP). Advogado em São Paulo, parecerista e consultor jurídico. Relator-Geral da proposta da reforma do Código Civil.

Luis Felipe Salomão é ministro do Superior Tribunal de Justiça. Corregedor Nacional de Justiça. Membro da Corte Especial do STJ. Presidente da comissão de juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil.

Marco Aurélio Bellizze é ministro do Superior Tribunal de Justiça. Membro da 3ª Turma. Membro da 2ª Seção. Membro da Comissão de Jurisprudência. Professor da Fundação Getúlio Vargas desde 2021. Coordenador Acadêmico da FGV/Exame de Ordem. Vice-presidente da comissão de juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil.

Rosa Maria de Andrade Nery é professora associada de Direito Civil da Faculdade de Direito da PUC/SP. Livre-Docente, doutora e mestre em Direito pela PUC/SP. Árbitra em diversas câmaras de arbitragem do Brasil. Foi Procuradora de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo por 20 anos e desembargadora do Tribunal de Justiça o Estado de São Paulo por 15 anos. Titular da cadeira de número 60 da Academia Paulista de Direito. Professora do curso de graduação e de pós-graduação em Direito da PUC/SP e professora colaboradora do Centro Universitário Ítalo-Brasileiro. Relatora da proposta da reforma do Código Civil.