Reforma do Código Civil

A importância da multifuncionalidade da responsabilidade civil

No próprio CC de 2002 há uma preocupação com a regra da responsabilidade contratual e da responsabilidade aquiliana, sem uma sistematização bem definida, o que retrata uma responsabilidade relacionada, sobretudo, aos problemas da propriedade e do descumprimento de obrigações.

6/8/2024

A proposta da Comissão de Juristas para alteração legislativa adota a aplicação do dever geral de cuidado, com inspiração na função preventiva, como necessidade de uma parcimônia de comportamentos antijurídicos e não apenas a contenção de danos.

Trata-se de uma nova abordagem, com ferramentas que se aproximem mais de uma forma de proteção positiva, sem que isso represente o fim do juízo sobre a conduta que se reprova.

Em um desafio concentrado para o aprimoramento legislativo da vida civil, frente às novas perspectivas para a transformação social, foi aprovada a proposta de atualização do Código Civil, agora em tramitação no Congresso Nacional.

A subcomissão de Juristas responsável pelo microssistema de responsabilidade civil apresentou sugestões que visam restabelecer o papel de coordenação do Código, interagindo com outros sistemas normativos, à luz dos notáveis avanços sociais e do desenvolvimento tecnológico. A finalidade primordial é de solidificar os novos paradigmas da responsabilidade civil e manter o Código Civil como posição central no âmbito do direito privado.

Mas não é só: essa modernização possibilita oferecer critérios objetivos ao instituto da responsabilidade civil e valorizar as funções da responsabilização, situação capaz de fortalecer o sistema jurídico e a cidadania, além de estabelecer um marco orientativo doutrinário que conduza ao aperfeiçoamento de decisões judiciais, o que, por sua vez, trará maior segurança jurídica.

Em geral, os estudos sobre responsabilidade civil começam relembrando o princípio romano de que a ninguém é dado o direito de causar danos a outrem (neminem laedere).  Assim, em atenção à liberdade individual, cada ação (ou omissão) praticada, traz uma consequência, de modo que a pessoa assume a responsabilidade por sua liberdade de escolha e por sua vontade.

Ao longo dos anos, houve uma abordagem do tema sob o enfoque de sua estrutura, sem que houvesse uma normatização bem clara de sua funcionalidade. No próprio Código Civil de 2002 há uma preocupação com a regra da responsabilidade contratual e da responsabilidade aquiliana, sem uma sistematização bem definida, o que retrata uma responsabilidade relacionada, sobretudo, aos problemas da propriedade e do descumprimento de obrigações.

Coube, portanto, à Doutrina e à Jurisprudência trazer contornos e alguns parâmetros para evitar decisões díspares.

Algumas dificuldades enfrentadas pelos operadores do Direito reside no modelo de subjetividade que foi adotado, pelo qual o agente só responderia se causasse dano a outrem, de maneira intencional ou ao agir com imprudência, negligência ou imperícia.

Conscientes dessas questões, a jurisprudência e a Doutrina iniciaram uma das primeiras manifestações de avanço, ao conduzir uma interpretação mais sensível às exigências da sociedade, que trouxe o surgimento da inversão do ônus da prova e da presunção de culpa, o que, por sua vez, abriu fronteiras para a objetivação da responsabilidade.

Uma abordagem civil-constitucional – lastreada na dignidade humana e na valoração social – que foi a adotada para as propostas de alteração, parte do princípio de que a estrutura dos institutos e categorias só pode ser definida com base em sua função. Isso significa que só é possível compreender a natureza de um instituto após entender para que ele serve, ou seja, qual é sua função1.

No atual modelo, a responsabilidade civil atua apenas como um mecanismo de reparação; aliás, esse é o primeiro conceito que se tem à mente quando tratamos o assunto: indenização. Isso nos levou a um debate que possibilitou verificar que a função tradicional do instituto é a reparatória, ou compensatória.

E, ao trilharmos um caminho compreensivo, é possível perceber, sem muito esforço, que a responsabilidade civil tem passado por mudanças significativas desde o seu surgimento, sobretudo no que se refere ao reconhecimento de novos valores merecedores de tutela do Estado, mesmo porque "nem todo dano é ressarcível"2.

Além disso, há uma variedade de preocupações relacionadas à (in)suficiência que a função ressarcitória tem demonstrado3, sobretudo por se revelar uma medida mais genérica, bem distante do significado de outrora, mesmo porque, não raras vezes, as consequências de condutas ilícitas ou riscos assumidos vão além do indivíduo afetado, afetando interesses coletivos e a própria estrutura social.

A alteração de conteúdo, significado e função, deve ser vista como um acontecimento natural e até esperado nos institutos jurídicos, marcados pela sua historicidade e relatividade4.

As principais democracias liberais adotam a multifuncionalidade da responsabilidade civil5, tendo em vista a mudança de paradigma do sistema de responsabilização, além da segurança jurídica e previsibilidade que traz, exatamente o que os agentes econômicos buscam, até mesmo para prefixar seus custos e calcular investimentos.

Nesse contexto, ao reconhecer o grande avanço que a sociedade contemporânea sofreu nos últimos anos, sobretudo relacionado à realidade tecnológica, somado à objetivação da responsabilidade civil e ao crescimento das hipóteses de dano, emerge a necessidade de se identificar os riscos e se verificar o papel – e a relevância – de suas funções, bem como de seus instrumentos de atuação.

A proposta de reforma manteve a primazia da função clássica de reparação – compensatória –, à luz do princípio da reparação integral, com uma abordagem que visa maior efetividade ao instituto, conforme parâmetro do "princípio da tutela efetiva".

Nesse contexto, propusemos a reforma do art. 927 e a redação de novos artigos, para a organização do fator jurídico determinante da responsabilidade - nexo de imputação -, além da identificação dos aspectos que determinam a obrigação de indenizar, o que permitiria a coexistência de regras da responsabilidade subjetiva e objetiva da ação antijurídica.

Com a ressignificação da responsabilidade civil e a ampliação da “tutela efetiva da vítima”, cresce uma tendência de maior aplicação da função preventiva, tido como retrato da importância de combater de forma incisiva a prática de comportamentos considerados inaceitáveis na sociedade.

Para alguns estudiosos, a medida possuiria também um efeito didático, pois o receio "de ser tachado como culpado por descurar da adoção de medidas necessárias de prevenção de danos, pedagogicamente impele potenciais causadores de danos a uma atuação cautelosa no exercício de sua atividade econômica". (Rosenvald, 2022, p. 430).

 O STJ tem enfatizado que "a função preventiva essencial da responsabilidade civil é a eliminação de fatores capazes de produzir riscos intoleráveis". (Informativo n. 574, REsp 1.371.834-PR, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti; e Informativo n. 538, REsp 1.354.536-SE, Rel. Min. Luís Felipe Salomão).

A proposta da Comissão de Juristas para alteração legislativa, adota a aplicação do dever geral de cuidado, com inspiração na função preventiva, sobretudo após o advento do Código Civil da Nação Argentina (art. 1.710), como necessidade de uma parcimônia de comportamentos antijurídicos e não apenas a contenção de danos.

Esse novo olhar certamente colocará em foco o comportamento do agente, mas em um contexto diferente do caráter punitivo da tutela negativa – reativa – do direito. Trata-se de uma nova abordagem da responsabilidade civil que intervenha antes da ocorrência do dano, com ferramentas que se aproximem mais de uma forma de proteção positiva – tutela positiva –, sem que isso represente o fim do juízo sobre a conduta que se reprova.

Nas palavras de Norberto Bobbio, "a noção de sanção positiva deduz-se, a contrario sensu, daquela mais bem elaborada de sanção negativa. Enquanto o castigo é uma reação a uma ação má, o prêmio é uma reação a uma ação boa". (BOBBIO. 2007, p. 24).

Exatamente por isso que há a necessidade de que o Código Civil reassuma esse papel de centralidade e traga definições claras para fortalecer o sistema jurídico e a cidadania, bem como assegurar os avanços sociais e tecnológicos que temos experimentado.

Foi exatamente esta a proposta de redação do art. 927-A, em uma releitura constitucional do direito civil, a fim de que a tutela positiva pudesse assumir o um mecanismo complementar à tutela negativa – amplamente conhecida, diretamente relacionada às finalidades substanciais estabelecidas na Constituição.

Não é demais lembrar que a prevenção de danos corresponde ao anseio de toda uma sociedade, principalmente quando relacionados à atividades potencialmente de risco, de modo que as decisões judiciais poderão valorizar essa tutela positiva e as medidas adotadas para evitar o dano.

Essas funções interagem entre si e se fortalecem mutuamente, possibilitando que o sistema de responsabilidade civil cumpra seu papel social, como um meio para diminuir os custos dos acidentes e promover o bem-estar da sociedade, o que, repito, se traduz em segurança jurídica.

A importância da multifuncionalidade da responsabilidade civil reside, portanto, na sua capacidade de adaptar-se às demandas de uma sociedade em constante transformação, atuando como um instrumento de regulação social. Ao reconhecer a responsabilidade civil como um mecanismo multifuncional, o direito amplia seu escopo de atuação, contribuindo não apenas para a solução de conflitos, mas também para a prevenção de danos e a promoção de uma convivência social mais harmônica e segura.

Essa releitura é fundamental para o atual momento da sociedade brasileira, quando recordamos que o estudo do direito civil, à luz da Constituição de 1988, não pode se esquivar de alguns pontos norteadores, quais sejam: (i) a superioridade e a eficácia normativa da Constituição; (ii) a integração e a complexidade do sistema jurídico; e (iii) a interpretação com propósitos práticos, somados a uma abordagem metodológica, relacionada ao pensamento pós-positivista; (iv) a consideração da historicidade dos institutos e categorias; (v) a prevalência dos interesses existenciais sobre os de natureza patrimonial; e (vi) a reinterpretação funcional.

Portanto, há uma necessidade, evidente e crucial, de se superar a natureza monofuncional da responsabilidade civil, sobretudo por uma análise constitucional e pela leitura contemporânea, de uma sociedade plural, marcada por avanços tecnológicos, como forma de nos adequar à atual realidade, como forma de reforçar a segurança jurídica frente a transformação social.

Referências

BOBBIO, Norberto. Trad. Daniela Beccaccia Versiani. Da estrutura à função: novos estudos de teoria do direito. Barueri: Manole, 2007.

MORAES, Ana Beatriz; LOPES, Carlos Eduardo. A Função Preventiva da Responsabilidade Civil no Direito Brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2020.

MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à pessoa humana: uma releitura civil-constitucional dos danos morais. 2. ed. Rio de Janeiro: Ed. Processo, 2017.

PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.

RIBEIRO, Mariana Souza. Responsabilidade Civil: Aspectos Reparatórios e Sancionatórios. Belo Horizonte: Del Rey, 2021.

ROSENVALD, Nelson. As Funções da Responsabilidade Civil. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2022. E-book.

SILVA, João Carlos. Multifuncionalidade da Responsabilidade Civil: Uma Análise Contemporânea. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2022.

TEPEDINO, Gustavo; SCHREIBER, Anderson. As penas privadas no direito brasileiro. In: SARMENTO, Daniel; GALDINO, Flavio. Direitos fundamentais: estudos em homenagem Ricardo Lobo Torres. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.

VENTURI, Thaís Goveia Pascoaloto. Responsabilidade civil preventiva: a proteção contra a violação dos direitos e a tutela inibitória material. São Paulo: Malheiros, 2014.

__________

1 Sobre esse assunto, o Professor Pietro Perlingieri afirma que “o fato jurídico, como qualquer outra entidade, deve ser estudado nos dois perfis que concorrem para individuar sua natureza: a estrutura (como é) e a função (para que serve). (...) A função do fato determina a estrutura, a qual segue - não precede - a função” (PERLINGIERI. 2008, p. 642).

2 "Define-se o dano como a lesão a um bem jurídico. A doutrina ressalva, todavia, que nem todo dano é ressarcível. Necessário se faz que seja certo e atual. Certo é o dano não-hipotético, ou seja, determinado ou determinável. Atual é o dano já ocorrido ao tempo da responsabilização. Vale dizer: em regra, não se indeniza o dano futuro, pela simples razão de que o dano ainda não há. Diz-se ‘em regra’ porque a evolução social fez surgir questões e anseios que desafiam a ideia de irreparabilidade do dano futuro". (TEPEDINO, et. al. 2006. p. 338).

3 "Uma certa ineficácia do instrumento ressarcitório, sobretudo no campo de lesões a interesses coletivos e extrapatrimoniais, no eco de um ‘sentimento de insatisfação com os institutos tradicionais’, veio despertar a doutrina e a jurisprudência para a busca de novos modelos de tutela das relações privadas". (TEPEDINO, et. al. 2006, p. 501-502).

4 "Com o transcorrer das experiências históricas, institutos, conceitos, instrumentos, técnicas jurídicas, embora permaneçam nominalmente idênticos, mudam de função, de forma que, por vezes, acabam por servir a objetivos diametralmente opostos àqueles originais." (PERLINGIERI. 2008, p. 141).

5 Nesse sentido: "Especificamente, no setor da responsabilidade civil há uma pluralidade de funções, sem qualquer prioridade hierárquica de uma sobre outra." (ROSENVALD, 2022, p. 313).

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Colunistas

Flávio Tartuce é pós-doutor e doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUCSP. Professor Titular permanente e coordenador do mestrado da Escola Paulista de Direito (EPD). Professor e coordenador do curso de mestrado e dos cursos de pós-graduação lato sensu em Direito Privado da EPD. Patrono regente da pós-graduação lato sensu em Advocacia do Direito Negocial e Imobiliário da EBRADI. Diretor-Geral da ESA da OABSP. Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT). Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família em São Paulo (IBDFAMSP). Advogado em São Paulo, parecerista e consultor jurídico. Relator-Geral da proposta da reforma do Código Civil.

Luis Felipe Salomão é ministro do Superior Tribunal de Justiça. Corregedor Nacional de Justiça. Membro da Corte Especial do STJ. Presidente da comissão de juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil.

Marco Aurélio Bellizze é ministro do Superior Tribunal de Justiça. Membro da 3ª Turma. Membro da 2ª Seção. Membro da Comissão de Jurisprudência. Professor da Fundação Getúlio Vargas desde 2021. Coordenador Acadêmico da FGV/Exame de Ordem. Vice-presidente da comissão de juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil.

Rosa Maria de Andrade Nery é professora associada de Direito Civil da Faculdade de Direito da PUC/SP. Livre-Docente, doutora e mestre em Direito pela PUC/SP. Árbitra em diversas câmaras de arbitragem do Brasil. Foi Procuradora de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo por 20 anos e desembargadora do Tribunal de Justiça o Estado de São Paulo por 15 anos. Titular da cadeira de número 60 da Academia Paulista de Direito. Professora do curso de graduação e de pós-graduação em Direito da PUC/SP e professora colaboradora do Centro Universitário Ítalo-Brasileiro. Relatora da proposta da reforma do Código Civil.