Em minha primeira participação nesta coluna do Migalhas sobre a Reforma do Código Civil, abordarei os temas do parentesco e da parentalidade socioafetiva, assuntos de enorme relevância, teórica e prática, não só para o Direito de Família e das Sucessões como também para todo o Direito Civil, pelas numerosas repercussões que gera.
O direito parental e as relações de parentesco trazem como conteúdo as relações jurídicas estabelecidas entre pessoas que mantêm entre si um vínculo familiar. A palavra "parentesco" vem de "parente", do latim "parens-tis", particípio passado do verbo pario-ere, que significa parir, dar à luz, gerar. Assim, o parentesco pode ser definido como o vínculo jurídico existente entre as pessoas que descendem umas das outras, entre o cônjuge ou companheiro e os parentes do outro cônjuge ou companheiro; bem como entre as pessoas que mantêm entre si um vínculo civil.
Em sentido amplo, a matéria engloba, no atual Código Civil, disposições gerais (arts. 1.591 a 1.595), regras quanto à filiação (arts. 1.596 a 1.606), preceitos sobre o reconhecimento de filhos (arts. 1.607 a 1.617), normas referentes à adoção (arts. 1.618 a 1.629) e comandos relacionados ao poder familiar (arts. 1.630 a 1.638).
Pois bem, três são as modalidades de parentesco, levando-se em conta a sua origem. A primeira delas é o parentesco consanguíneo ou natural, existente entre pessoas que mantêm entre si um vínculo biológico ou de sangue, ou seja, que descendem de um ancestral comum, de forma direta ou indireta. A segunda modalidade é o parentesco por afinidade, existente entre um cônjuge ou companheiro e os parentes do outro cônjuge ou companheiro. Cumpre sempre lembrar e advertir que marido e mulher e companheiros não são parentes entre si, havendo vínculo de outra natureza, decorrente da conjugalidade ou convivência. A grande inovação do Código Civil de 2002 frente ao seu antecessor foi reconhecer o parentesco de afinidade decorrente da união estável, como se retira do seu art. 1.595, e que se pretende manter com a sua reforma. Por fim, há o parentesco civil, aquele decorrente de "outra origem", que não seja a consanguinidade ou a afinidade, conforme estabelece o art. 1.593 do CC/02. Em relação ao último, no Direito de Família Contemporâneo, o parentesco civil decorre da adoção, da parentalidade socioafetiva e do uso das técnicas de reprodução assistida.
Diante do seu caráter geral para o Direito de Família, a Comissão de Juristas encarregada da reforma do Código Civil sugere que o tema abra o livro respectivo, tratando “das pessoas na família”, entre os novos arts. 1.512-A e 1.512-G. Seguiu-se, portanto, proposição feita pela relatora geral, professora Rosa Maria de Andrade Nery, que é melhor do ponto de vista metodológico.
O primeiro dispositivo proposto sobre o tema tratará das modalidades gerais de parentesco, como deve ser, prevendo que “a relação de parentesco pode ter causa natural ou civil. § 1º O parentesco é natural se resultar de consanguinidade, ainda que o nascimento tenha sido propiciado por cessão temporária de útero. § 2º O parentesco é civil, conforme resulte de socioafetividade, de adoção ou de reprodução assistida em que há a utilização de material genético de doador” (art. 1.512-A). E o segundo deles, também com um sentido genérico, tratará do parentesco na linha reta ou colateral: “qualquer que seja a causa, o parentesco pode se dar em linha reta ou colateral” (art. 1.512-B).
Como se pode perceber, objetiva-se positivar expressamente na norma civil o reconhecimento expresso das hipóteses em que há parentesco civil, além da adoção, como está no enunciado 103, aprovado na I Jornada de Direito Civil: "o Código Civil reconhece, no art. 1.593, outras espécies de parentesco civil além daquele decorrente da adoção, acolhendo, assim, a noção de que há também parentesco civil no vínculo parental proveniente quer das técnicas de reprodução assistida heteróloga relativamente ao pai (ou mãe) que não contribuiu com seu material fecundante, quer da paternidade socioafetiva, fundada na posse do estado de filho". No que diz respeito às técnicas de reprodução assistida, almeja-se incluir na codificação privada o seu tratamento legal, o que é igualmente mais do que necessário (arts. 1.629-A a 1.629-V). Na atualidade, o tema é apenas tratado por regulamentação administrativa, do Conselho Federal de Medicina e do CNJ – dirigida para os oficiais dos cartórios de registro civil das pessoas naturais –, sendo primordial a sua normatização, a fim de lhe trazer segurança jurídica e estabilidade institucional.
Sobre a inclusão da parentalidade socioafetiva, concretiza-se o teor do julgamento do STF sobre a temática que reconheceu efeitos jurídicos não só para ela como também para a multiparentalidade. Consoante o seu Tema 622 de repercussão geral, que analisou a prevalência da paternidade socioafetiva em detrimento da paternidade biológica, “a paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios” (STF, RE 898.060, relator ministro Luiz Fux). A jurisprudência do STJ também é uníssona no seu reconhecimento como forma de parentesco civil, tendo o CNJ regulamentado o reconhecimento extrajudicial da parentalidade socioafetiva e a viabilidade da multiparentalidade, pelos provimentos 63 e 83, em 2023 incorporados ao seu Código Nacional de Normas (CNN-CNJ).
Em verdade, a parentalidade socioafetiva é uma construção jurídica totalmente consolidada no nosso país – por doutrina e jurisprudência dominantes, quase unânimes –, não havendo qualquer razão plausível para que não seja incorporada ao texto do Código Civil. A esse propósito, lembro que o anteprojeto do Código Civil foi orientado pela doutrina hoje amplamente majoritária – consubstanciada pelos enunciados doutrinários das Jornadas de Direito Civil –, e não por posições isoladas.
Além disso, a metodologia empregada pela Comissão de Juristas, nomeada no âmbito do Senado Federal – e liderada pelos ministros Luis Felipe Salomão e Marco Aurélio Bellizze –, procurou inserir na legislação a posição dos Tribunais Superiores, sobretudo do STF e do STJ, o que é justamente o caso do tema em análise neste breve artigo.
O anteprojeto de reforma e atualização coloca a parentalidade socioafetiva em posição de igualdade com o parentesco consanguíneo, sem que haja hierarquia entre eles, o que foi o norte da decisão do STF, e para todos os fins possíveis, além dos próprios pais e filhos que estabelecem esse vínculo, fundado na posse de estado de filhos.
A título de exemplo, o novo sistema trará a presença de impedimentos matrimoniais entre os parentes socioafetivos, incluindo os irmãos, situação hoje não tratada expressamente pela norma e que gera dúvidas na prática. Atualmente, ao tratar dos impedimentos para o casamento, o art. 1.521 do Código Civil prevê o seguinte: "não podem casar:
- Os ascendentes com os descendentes, seja o parentesco natural ou civil;
- Os afins em linha reta;
- O adotante com quem foi cônjuge do adotado e o adotado com quem o foi do adotante;
- Os irmãos, unilaterais ou bilaterais, e demais colaterais, até o terceiro grau inclusive;
- O adotado com o filho do adotante;
- As pessoas casadas;
- O cônjuge sobrevivente com o condenado por homicídio ou tentativa de homicídio contra o seu consorte".
A Comissão de Juristas sugere ajustes pontuais no comando, mais uma vez urgentes e necessários, no tratamento dos impedimentos. Para os fins do que trata este texto, no inciso IV do art. 1.521 propõe-se mencionar apenas os irmãos, não importando a sua origem, justamente porque o parentesco civil gera os mesmos efeitos do parentesco consanguíneo, a incluir a adoção, a parentalidade socioafetiva e o uso de técnicas de reprodução assistida. Essa conclusão, inafastável, será retirada do antes destacado projeto de art. 1.512-A da codificação privada. Também se almeja retirar a menção aos irmãos bilaterais – mesmo pai e mesma mãe – e unilaterais – mesmo pai ou mesma mãe –, uma vez que o impedimento matrimonial existe em qualquer hipótese de vínculo colateral de segundo grau.
Seguindo, ainda para os fins do estudo do tema deste texto, destaco a revogação do inciso V do art. 1.521, que hoje menciona o adotado com o filho do adotante. De todo modo, apesar da retirada do inciso, a restrição se manterá, pelo inciso anterior, pois devem ser considerados irmãos também os adotivos. Desse modo, ao contrário do devaneio de alguns – baseado em interpretações totalmente equivocadas da lei ou mesmo mal-intencionadas, com o fim de "sabotar" a reforma do Código Civil –, essas alterações do dispositivo que trata dos impedimentos do casamento não permitirão o incesto, ou seja, o casamento entre irmãos. Muito ao contrário, há uma ampliação a respeito dos impedimentos, a fim de atingir os irmãos socioafetivos.
Acrescento, pela relevância para a temática, que o STJ já reconheceu efeitos sucessórios em relação ao que denominou como fraternidade ou irmandade socioafetiva. Em acórdão muito bem relatado pelo ministro Marco Buzzi – membro da Comissão de Juristas –, em que se evidencia a abrangência da aplicação da parentalidade na Corte Superior, "a atual concepção de família implica um conceito amplo, no qual a afetividade é reconhecidamente fonte de parentesco e sua configuração, a considerar o caráter essencialmente fático, não se restringe ao parentesco em linha reta. É possível, assim, compreender-se que a socioafetividade constitui-se tanto na relação de parentalidade/filiação quanto no âmbito das relações mantidas entre irmãos, associada a outros critérios de determinação de parentesco (de cunho biológico ou presuntivo) ou mesmo de forma individual/autônoma. Inexiste qualquer vedação legal ao reconhecimento da fraternidade/irmandade socioafetiva, ainda que post mortem, pois o pedido veiculado na inicial, declaração da existência de relação de parentesco de segundo grau na linha colateral, é admissível no ordenamento jurídico pátrio, merecendo a apreciação do Poder Judiciário" (STJ, REsp 1.674.372/SP, relator ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, julgado em 4/10/22, DJe de 24/11/2022). Ora, se a irmandade socioafetiva gera bônus – como a sucessão entre os irmãos socioafetivos –, deve gerar o ônus – o impedimento matrimonial entre eles, sendo imperioso o reconhecimento de efeitos amplos para a parentalidade socioafetiva. As conclusões desse último decisum, como não poderia ser diferente, orientaram o anteprojeto de reforma.
Voltando-se ao estudo dos dispositivos relativos ao parentesco, em especial as propostas sobre a parentalidade socioafetiva, há também proposições de se incluir os novos arts. 1.617-A a 1.617-C no Código Civil, para regular expressamente a parentalidade socioafetiva e a multiparentalidade, afastando-se dúvidas, incertezas e instabilidades ainda existentes.
De acordo com o novo 1.617-A, e na linha do entendimento jurisprudencial superior antes exposto, “a inexistência de vínculo genético não exclui a filiação se comprovada a presença de vínculo de socioafetividade”. Em outras palavras, admite-se a multiparentalidade, com a presença de vínculos concomitantes, consanguíneo e socioafetivo, o que confirma a tese julgada pelo STF, em repercussão geral, bem como o entendimento majoritário da doutrina e da jurisprudência.
A respeito dos deveres parentais advindos da parentalidade socioafetiva, o novo art. 1.617-B passará a prever que “a socioafetividade não exclui nem limita a autoridade dos genitores naturais, sendo todos responsáveis pelo sustento, zelo e cuidado dos filhos em caso de multiparentalidade”. Nesse contexto, é perfeitamente possível a autoridade parental compartilhada, sobretudo nos casos de vínculos concomitantes, sendo necessário um texto que deixe essa questão afirmada, para maior efetividade do instituto.
Por fim, prevaleceu na Comissão de Juristas o entendimento – contra o meu voto e o de outros – de que somente é possível o reconhecimento extrajudicial da parentalidade socioafetiva de pessoas com menos de 18 anos e incapazes no âmbito judicial, o que afasta toda a regulamentação pelo CNJ hoje vigente, originária dos seus provimentos 63 e 83, incorporados ao seu Código Nacional de Normas (arts. 505 a 509).
Consoante o novo art. 1.617-C proposto para o Código Civil, "o reconhecimento de filiação socioafetiva de crianças, de adolescentes, bem como de incapazes, será feito por via judicial". Porém, para pessoas capazes e maiores de dezoito anos, havendo a concordância dos pais naturais, dos pais socioafetivos e do filho, o reconhecimento poderá ser feito extrajudicialmente, cabendo ao oficial do Registro Civil reconhecer a existência do vínculo de filiação e levá-lo a registro (§ 1º). Em casos de discordância de um ou de ambos os genitores naturais, o reconhecimento da multiparentalidade poderá ser buscado apenas judicialmente (§ 2º).
Essas mudanças propostas, que acabaram prevalecendo pelo voto da maioria e pela democracia que orientou os nossos trabalhos, fará com que o CNJ tenha que regulamentar novamente o tema, quando as mudanças emergirem. De toda sorte, apesar da minha posição contrária, acabam por espelhar a posição que hoje é até majoritária na doutrina, com o fim de se trazer mais segurança e certeza para o reconhecimento da filiação socioafetiva e da multiparentalidade.