Desde meados do ano passado, a Comissão de Juristas responsável pela reforma do Código Civil tem se debruçado sobre diversos temas que tocam aspectos centrais da sociedade brasileira, em um processo de atualização das regras atualmente vigentes aos contornos da nova sociedade. Uma das grandes novidades desta iniciativa é que, para além dos atuais oito livros (das pessoas, dos bens, dos fatos jurídicos, dos direitos das obrigações, do direito de empresa, do direito das coisas, do direito de família, do direito das sucessões), foi proposta a criação de um nono, inteiramente dedicado ao direito digital.
A migração da vida cotidiana para o mundo digital e sua penetração nos mais diversos campos econômicos desafiam práticas e relações jurídicas, bem como o próprio conceito de direito, colocando a necessidade de que este reflita adequadamente o novo cenário – razão pela qual o novo livro se revela fundamental para lidar com os desafios de uma sociedade cada vez mais digital1. Trata-se de iniciativa que visa estabelecer bases legais claras e sólidas para uma série de questões e relações sociais permeadas pelas novas tecnologias, demonstrando a maturidade e a importância que o Direito Digital assumiu nas últimas décadas, não como uma mera prática transversal perante as demais áreas do direito (como no inicio da internet), mas com um grau de especialização típica de uma matéria que estrutura a própria sociedade moderna2.
No contexto da publicação do relatório final, o novo livro foi aprovado por aclamação pela comissão de juristas, confirmando a importância de sua autonomia para garantir maior proteção de direitos e maior segurança jurídica às relações privadas. Com este fim, foram previstas regras voltadas aos neurodireitos, ao patrimônio digital, às criptomoedas e tokens, à proteção de crianças e adolescentes no ambiente digital, ao uso de sistemas de inteligência artificial, aos contratos e provas digitais e também ao chamado direito à desindexação. O direito, que se insere no capítulo II, “Da pessoa no ambiente digital”, consiste “na remoção do link que direciona a informações inadequadas, não mais relevantes ou excessivas, que não possuem finalidade para a exposição, de mecanismos de busca, websites ou plataformas digitais, permanecendo o conteúdo no site de origem”. Ou seja, caso obtenha êxito, o conteúdo desindexado não mais será encontrado nos resultados de determinado provedor de busca a partir de determinados termos ou expressões, apesar de ainda poder ser encontrado na página de origem.
Não se trata, portanto, de excluir absolutamente o conteúdo do acesso público, mas de restringir sua acessibilidade numa sociedade plataformizada3. Como ensina Luciano Floridi, ao contrário do que ocorre no mundo analógico, há no mundo digital uma nova abordagem da informação, que passa a poder ser distinguida em dois níveis: disponibilidade (conteúdo) e acessibilidade (link)4. Tal restrição, portanto, pode ser bastante eficiente na proteção do indivíduo interessado, tendo em vista a centralidade que plataformas digitais – e, neste caso, especificamente os motores de busca – assumem na difusão da informação no ambiente online. A desindexação, assim, pode significar, na prática, uma ampla redução da visibilidade do conteúdo, impactando seu alcance.
O paradigmático caso Google Spain v. Mario Costeja Gonzáles, julgado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia em 2014 abriu uma nova frente no tema no plano global influenciando não somente o regulador europeu, mas aos poucos o mundo todo5. Naquela ocasião, em que se discutia notícias obsoletas o tribunal entendeu que, em determinados casos, os motores de busca, enquanto intermediários da informação, poderiam ser obrigados a suprimir determinados conteúdos da lista de resultados, em respeito à legislação de proteção de dados. A desindexação, no entanto, poderia ser utilizada para proteção de direitos de personalidade violados por outros tipos de expressão: seja por notícias falsas ou por exposição de imagens íntimas, por exemplo.
Ao servir, na prática, como um tensionador da liberdade de expressão, a desindexação coloca dúvidas quanto a sua aplicabilidade e seus limites. É especialmente relevante se definir os parâmetros adequados para que não haja utilização abusiva que viole o direito à memória, a liberdade da imprensa ou o interesse público (aqui também pensando no conceito de dados púbicos), e para que não seja instrumento de manipulação política, por exemplo. Nesse sentido, a proposta da subcomissão de juristas trouxe, já no caput, delimitações ao instituto: só é aplicável no caso de informações inadequadas, irrelevantes ou excessivas, cuja exposição não possua finalidade específica. Já logo afasta-se sua aplicação nas hipóteses de informações de interesse público e que tragam verdades e/ou fatos históricos, por exemplo.
Ainda, no §1º, são listados alguns casos aos quais a desindexação poderia ser aplicada: exposição de imagens pessoais explícitas ou íntimas; pornografia falsa involuntária envolvendo o usuário; informações de identificação pessoal ou conteúdo de doxxing; conteúdo que envolva a imagem de menores, especialmente nudez ou conteúdo sexual. Ou seja, as previsões demonstram como a aplicabilidade do instituto está condicionada à violação de outros direitos já previstos constitucional ou civilmente. Trata-se de situações bastante específicas que apontam para a excepcionalidade do instituto e para a preservação, em geral, da liberdade de expressão.
O jurista italiano Stefano Rodotà certa vez afirmou que “diante do fluir da história, da perene mutação das coisas que ela produz, o problema do direito está sempre na pretensão de enclausurar esse movimento em um átimo determinado, dando-lhe ares de modelo e regra”. Com efeito, se o direito tiver a pretensão de esgotar as possibilidades de regulação de matérias relativas à inovação tecnológica, lançando-se como instrumento absoluto e suficiente para o seu controle, rapidamente restará esvaziado. Tentar prever todas as hipóteses de sua incidência seria não apenas prepotente, mas também ingênuo. Outro ponto importante do direito da sociedade digital é a introdução de mecanismos procedimentais e a sua observação do conhecimento gerado por entes públicos6.
Contudo, determinadas experiências e o amadurecimento delas decorrente também podem nos apontar caminhos mais seguros, isto é, podem nos indicar certas situações em que a força normativa do direito pode servir como um importante meio de proteção de prerrogativas. Uma delas é o reconhecimento do direito à desindexação. Não apenas no Brasil, mas em países como Espanha (e na União Europeia de modo geral), Canadá, Austrália, entre outros, as novas dinâmicas das relações sociais e do uso da Internet tornaram inconteste a necessidade de repensar a supostamente irrestrita liberdade existente no mundo virtual7. A proposta de reforma do Código Civil, portanto, segue esse movimento e as melhores práticas globais trazendo para o debate brasileiro no congresso nacional um ponto de partida condizente com a importância do tema.
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1 Sobre a relação entre direito e tecnologia ver CAMPOS, Ricardo, Metamorfoses do Direito Global. Sobre a relação entre direito, tempo e tecnologia. Contracorrente 2022. Ver também VESTING, Thomas Gentleman, Gestor, Homo Digitalis. A Transformação da subjetividade jurídica na modernidade. Contracorrente 2022, p. 267 e ss.
2 Sobre o tema da importância do livro de direito digital ver Salomao, Luis Felipe, Campos, Ricardo, Um novo livro para uma nova sociedade. Atualização do Código Civil anda de mãos dadas com o espírito do seu tempo.
3 COHEN, Julie, Law for the Platform Economy, 51 U. C. Davis L. Rev. 15, 2017. WIELSCH, Dan, Private Law Regulation of Digital Intermediaries in: European Review of Private Law 27 (2019), S. 197 – 220.
4 FLORIDI, Luciano. The Right to be Forgotten: A Philosophical View, 2015. Disponível aqui (acesso em 06.06.2024).
5 Sobre o assunto e os contornos legais do art. 17 do Regulamento Europeu de Protecao de Dados ver DIX, Alexander, DSGVO Art. 17 Recht auf Löschung („Recht auf Vergessenwerden“) em: Simitis/Hornung/Spiecker gen. Döhmann (Orgs.), Datenschutzrecht primeira edição, Nomos 2019. SARTOR, Giovanni, The right to be forgotten in the Draft Data Protection Regulation’, IDPL, 2014, pgs. 64–72.
6 Sobre a interessante interpretação de uma nova instituição na sociedade informacional, o do curador, e seus direitos e deveres ver LADEUR, Karl-Heinz, Das BVerfG und der Wandel der Formen der Öffentlichkeit, em: ders. Verfassungsgerichtsbarkeit in der Krise? Mohr Siebeck 2023, p. 123.
7 Sobre os desafios do tema dentro do direito civil e direito público ver SPINDLER, Persönlichkeitsschutz im Internet – Anforderungen und Grenzen einer Regulierung, Gutachten F zum 69. Deutschen Juristentag, 2012; SPINDLER, Durchbruch für ein Recht auf Vergessen(werden)? – Die Entscheidung des EuGH in Sachen Google Spain und ihre Auswirkungen auf das Datenschutz- und Zivilrecht, JZ 2014, pg. 981; ROßNAGEL, Datenlöschung und Anonymisierung. Verhältnis der beiden Datenschutzinstrumente nach DS-GVO, ZD 2021, pg. 188 e ss.