O sistema de responsabilidade civil é lógico e se destina a dar solução jurídica para as consequências dos danos que diminuem o patrimônio de alguém, de molde a permitir que outro patrimônio seja imputado para suportar a indenização, por meio de fluxo de recursos que garanta o equilíbrio da economia patrimonial do lesado.
O dano é o fato, portanto, que põe em movimento todo o sistema jurídico de responsabilidade civil.
Imputar civilmente é buscar o patrimônio que garante a indenização do dano, dano assim considerado toda e qualquer forma de apequenamento do patrimônio de alguém.
O dano pode ter causa imputável a outrem, ou não.
Desde o Código de Napoleão, dano é o prejuízo que alguém sofreu e o lucro que deixou de realizar.
Juridicamente todo dano tem repercussão patrimonial e a ausência de dano não justifica indenização. Diferentemente do direito penal o sistema de direito privado, em regra, não acolhe um instituto semelhante ao denominado “crime de perigo”, como o faz o direito penal, ou a teoria dos danos punitivos (indenização sem dano) no direito civil.
Identificada a importância do dano na movimentação do sistema de responsabilidade civil, a pergunta que se impõe é: qual foi a causa do dano, cuja indenização se busca?
As teorias da causalidade são sempre estudadas entre nós, e a mais acolhida é a teoria da causalidade adequada: qual fato foi capaz de provocar este dano, fato sem o qual o dano não teria ocorrido?
À luz dos CC 186 e 927, entretanto, o ilícito é fundamentalmente a causa de uma imputação, que gera o dever de indenizar. Por isso a ideia de ilicitude, nesse aspecto mais amplo, está ligada a outra que lhe é correlata, qual seja, à ideia de dano, e assim fala-se em ilícito objetivo e em ilícito subjetivo. Esta é a regra. Anote-se, também, que muita vez o ato lícito que gera prejuízo pode ser causa de indenização.
O tema “responsabilidade civil” ecoa em todos os livros do Código Civil e o texto de proposta de sua atualização, entregue pelo Presidente da Comissão de Juristas, Ministro Luis Felipe Salomão, ao Senador Rodrigo Pacheco, Presidente do Senado Federal Brasileiro, no dia 17.4.2024, traz mecanismos novos para a segurança das relações patrimoniais, nos múltiplos aspectos da vida civil, como se pode observar a partir dos apontamentos ora apresentados.
Usa-se a expressão “responsabilidade civil” para aludir-se a um microssistema jurídico de fundamental importância para o direito privado, especificamente destinado a impor a alguém a obrigação de indenizar danos, danos esses decorrentes de atos, de atividades civis, de operações jurídicas ou, até mesmo, os danos decorrentes do risco; em virtude do descumprimento de contrato, ou não, como consequência do querer culposo ou doloso do agente imputado, ou de mera situação de fato, cujas consequências podem vir a ser imputadas ao patrimônio de alguém.
Desse amplo mosaico de possibilidades nasceram termos jurídicos próprios para as várias classificações das hipóteses abarcadas pelo sistema jurídico de obrigações, como se pode perceber das expressões “responsabilidade civil”, “responsabilidade penal”, “responsabilidade objetiva”, “responsabilidade subjetiva”; “responsabilidade contratual; “responsabilidade extracontratual”.
Na teoria do direito de obrigações estão fincadas as balizas do estudo de responsabilidade civil, porque a obrigação de indenizar danos é tema central para onde todas as contingências jurídicas do direito privado (civil e empresarial) convergem e onde todos os efeitos da vontade humana encontram ocasião de análise e teorização.
O princípio fundamental que norteia os estudos do assim chamado sistema de responsabilidade civil denomina-se princípio da “imputação civil dos danos” e já é celebrado no Código Civil Brasileiro no artigo 391: o patrimônio do devedor responde pelo pagamento da indenização.
A atualização que se propõe seja feita ao sistema de direito civil, nessa parte, encontra na sugestão do anteprojeto, uma série de ajustes voltados para o aperfeiçoamento do sistema de responsabilidade civil.
A primeira atualização está no texto do artigo 391-A do Código Civil – de redação inspirada pela Relatoria Geral, com adminículos do Professor Pablo Stolze Gagliano – que traça balizas seguras para a satisfação do credor e para a garantia do patrimônio impenhorável do devedor, que a redação atual do Código Civil não cuidou de considerar com a precisão que se impunha.
Imputar significa, em direito, apontar quem é responsável por algo. Em direito civil, significa apontar quem seja responsável pelo pagamento ou pela indenização a que está obrigado. “A imputabilidade é uma só, no terreno contratual ou extracontratual”.1
O direito privado trabalha com o fenômeno da imputação patrimonial e o direito penal com a imputação pessoal. A pena, diz o princípio de direito penal, não ultrapassa a pessoa do criminoso; no direito privado, a indenização não ultrapassa o patrimônio penhorável do imputado.
4. Outra consideração interessante da atualização do Código Civil, conectada com o tema “responsabilidade civil” está na criação dos chamados “alimentos compensatórios” (artigos 1.709-A, 1.709-B, 1,709-C), no Livro de Direito de Família, que a Subcomissão de Família criou, por inspiração do Professor Rolf Madaleno.
Chamamos de obrigação civil aquela (dever ou obrigação) que faz nascer um vínculo jurídico que justifica o poder coercitivo do estado em favor do credor. Essa coercibilidade não se vê presente em toda espécie de dever.
Aqui verifica-se um caso em que contingências de ordem moral ultrapassam a fronteira da chamada “obrigação moral” e aportam no dever jurídico.
A doutrina jurídica reconhece uma espécie de dever (obrigação moral – um “constante esforço sobre si em favor de outrem”2) que, conquanto possa despertar censura moral e social, não dá ao sistema jurídico o poder de submeter o faltoso à coercitividade para seu adimplemento.
No caso dos chamados “alimentos compensatórios” verifica-se um dever moral alçado à institucionalização jurídica.
A ilicitude é um conceito que num primeiro momento parece aludir à conduta contrária de alguém ao comando legal, conduta essa visceralmente ligada a atos culposos e dolosos, de transgressão, lesivos da esfera jurídica de outrem e prejudiciais à segurança da vida jurídica.
Pontes de Miranda refere-se a quatro possibilidades de o termo ilícito ser compreendido: A ilicitude pode ser enfrentada como juridicizante, isto é:
(a) determinadora da entrada do suporte fáctico no mundo jurídico para a irradiação da sua eficácia responsabilizadora [...], ou
(b) para a perda de algum direito, pretensão ou ação (caducidade com culpa, como se dá com o poder familiar [...]), ou
(c) como infratora culposa de deveres, obrigações, ações ou exceções, tal como acontece com toda responsabilidade culposa contratual, ou
(d) como nulificante [...]”.3
Em todas essas hipóteses de ilicitude, no âmbito do direito privado (em virtude de vínculos civis ou empresariais), o tema irá aportar na patrimonialidade da pessoa, natural ou jurídica, responsável pela indenização, a quem o dano derivado da ilicitude, subjetiva ou objetiva, será imputado. A Parte Geral do Código Civil cuida de maneira especial desse tema (artigos 185; 185-A, 186).
Em matéria de direito empresarial, em que a vitalidade patrimonial da empresa está conectada – em sua essência – à sua capacidade de produzir riquezas, os fatos da vida empresarial, os contratos entre empresas e a estrutura da formação da empresa, foram o ponto fulcral da preocupação da douta Subcomissão que cuido do Livro de Empresas: os vínculos e a responsabilidade civil da empresa e do empresário, com poder de intervenção na gerência da sociedade, ou não.
Evidentemente, os temas civil e empresariais se entrelaçam: quando um contrato deixa de ser civil e se afeiçoa à atividade mercantil? Quando o mútuo é mecanismo de especulação lucrativa, por exemplo, e passa a ser negócio empresarial?
Essas discussões são muito antigas, anteriores mesmo ao fato de um elemento novo se somar a antigas preocupações do empresariado: o assim considerado “negócio de consumo”!
Talvez tenha sido o ponto de maior desafio para a Relatoria-Geral: manter o sistema do Código, separar o joio do trigo, não misturando as linhas estruturais dos contratos civis e empresariais com os denominados contratos de consumo e, ao mesmo tempo, resguardar as especificidades do direito empresarial, principalmente no que toca ao sistema de responsabilidade civil contratual ao ensejo de se perceberem criadas entre as partes obrigações contratuais de natureza exclusivamente empresarial.
Pode-se dizer que ao ensejo dessas preocupações com as especialidades do direito empresarial, entre tantas atualizações importantíssimas propostas pela Douta Subcomissão, foram reavivadas expressões e cuidados que já estavam nas tradições do direito comercial brasileiro, desde seus marcos ancestrais inspiradores.
Não se pode deixar de perceber, nos artigos 421-F e 966-A da atualização proposta, um “revival” interessante dos artigos 131, 1º., 2º., 3º., 4º., 5º. e 133 do Código Comercial Brasileiro de 1850, que vigeu entre nós até 2003, quando do advento do Código Civil de 2002.
As mesmas preocupações, quanto à responsabilidade civil aparecem no livro de Direito Digital e na Parte Geral.
Na Parte Geral, a matéria “responsabilidade civil” encontra tratativa inicial na temática da ilicitude de atos e de atividades e perpassa o tema da prova, da prescrição e de seus prazos, bem como se alarga de maneira extraordinária nas considerações alusivas à amplitude que se deu aos temas do denominado “dano moral”, inspirando aquilo que será objeto de ampla tratativa na sequência dos artigos 927 e seguintes, com modelação novidadeira, por inspiração da douta Subcomissão de Responsabilidade Civil.
Também em direito de Sucessões e de Contratos, principalmente pela redação que se deu ao artigo 426, vê-se um novo manancial de atos e de atividades que giram de maneira extraordinariamente nova diante da responsabilidade civil de quem se propõe a realizar negócios até ontem considerados de objeto ilícito: herança de pessoa viva.
No Direito Digital vê-se a tratativa de temas novos abordados de maneira inovadora, que também desperta a teorização de novos mecanismos de excussão patrimonial e de fomento de responsabilidade civil, para garantia e segurança do ambiente digital.
Mas onde as novidades da responsabilidade civil dão um salto extraordinário na proposta de atualização da Comissão?
Justamente na parte destinada às garantias dos créditos, no Livro de Direito das Coisas.
A ideia de risco está ligada à iminência de “perigo de prejuízo” (ou seja, perigo de dano) que assombra o sujeito, por decorrência de circunstâncias de fato, ou por consequência de celebração de contratos, ou de negócios jurídicos, bem assim, por decorrência da prática de atos, ou de desempenho de atividades, com potencial de dano.
São muitas as hipóteses em que essa realidade de “risco” se impõe na experiência do direito, provocando diversas formas de controle de suas consequências, por todos quantos vivenciam e experimentam fenômenos jurídicos de perigo potencial.
Do ponto de vista civil, os efeitos das obrigações se confundem com a própria obrigação4 e se pode dizer que o crédito, sob a perspectiva do credor, e a sujeição de cumprir a obrigação, satisfazendo o credor, sob o ponto de vista do devedor, exibem os elementos do “vinculum iuris” denominado obrigação.
O grande efeito da obrigação civil é autorizar o credor a recorrer às vias de execução forçada, quando seu cumprimento não se dá de forma perfeita e voluntária.
Bem por isso, considera-se o crédito como categoria de pretensão jurídica, correlativa a específico encargo que pesa sobre os ombros do devedor e considera-se o credor, desde o direito romano clássico e justinianeu, como titular de uma expectativa de ver-se satisfeito pela voluntária disposição do devedor de cumprir a obrigação, pena de este ver-se forçado a cumpri-la por ação do credor (actio in personam).5
O crédito é situação jurídica de vantagem, com conteúdo patrimonial, experimentada pelo credor, e pode decorrer de vínculos contratuais, ou de outras causas.
A fonte mais comum das obrigações é a convenção, o contrato, fonte derivada de liberdade própria do ser humano e inspirada pelo princípio da autonomia privada das pessoas, os sujeitos de direito.
A questão alusiva à satisfação do crédito, entretanto, passa por duas vicissitudes fundamentais: (i) a condição patrimonial de o devedor responder pelo débito; (ii) a prioridade de o credor receber o crédito. Isso porque o crédito, em eventual concurso de credores, pode ser disputado sobre a mesma garantia e é fundamental saber quem tem prioridade para obter satisfação do crédito.
Quando os direitos coexistem e tem conteúdos iguais, sem que seja possível o exercício de todos, é necessário providenciar o concurso de credores, para que se possa resolver o impasse, ou que seja eliminado um dos pretendentes, para que se faça desaparecer a aparente colisão dos direitos.6
Essas situações podem ocorrer:
a) com a prioridade do exercício de direito que um dos sujeitos fez valer para si, prevenindo o direito de outros;
b) com o exercício limitado de diversos direitos concorrentes;
c) com a conciliação do exercício desses direitos, por determinação judicial e pericial;
Nessa parte das garantias reais, o livro de Direito das Coisas traz novidades interessantíssimas para atualização do Código Civil.
Pode-se antever dessa singela exposição que está em mãos dos Parlamentares Brasileiros uma audaciosa proposta de atualização do Código Civil, que precisa ser vista ao ensejo da modernidade que se espera que o Código Civil Brasileiro inaugure nas relações privadas.
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1 Agostinho Alvim, Da inexecução das obrigações e suas consequências, 4.a ed., Atualizada, São Paulo: Saraiva, 1972, p. 266
2 Nas eloquentes palavras de Manuel Inácio Carvalho de Mendonça, Doutrina e Prática das Obrigações Tratado Geral dos Direitos de Crédito, 4.a ed., aumentada e atualizada por José de Aguiar Dias, tomo I, Rio de Janeiro: Forense, 1956, cap. I, 2, p. 75. Nessa passagem, Carvalho de Mendonça cita Goethe para lembrar que não é a falta de obrigatoriedade jurídica que libera o adstrito de todo o dever, pois estar alguém livre não significa necessariamente estar “descomprometido”: “Pode-se viver em verdadeira liberdade e ainda assim não se encontrar descomprometido” (“Man kann in wahrer Freiheit leben und doch nicht ungebunden sein”). Curiosamente, no direito de família há muitas “não obrigações jurídicas” que por vezes obrigam, porque o descompromisso, em família, tem limites.
3 Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda. Tratado de direito privado, Parte Geral, t. II, atualizado por Ovídio Rocha Barros Sandoval, São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais/Thomson Reuters, 2012, § 164, p. 276.
4 Ch. Beudant, Cours de Droit Français, 2.a ed., Tome VIII, Paris: Librairie Arthur Rousseau, 1936, n. 6, p. 3.
5 Max Kaser, Römisches Privatrecht, 16.a ed., Munique: C.H.Beck, 1992, § 32 I, p. 149.
6 G.P.Chironi, Instituzioni di diritto Civile italiano, v. I, 2.a ed., Milano-Torino-Roma: Fratelli Bocca Editori, 1912, § 85, p. 216.