Questão de Direito

A força dos precedentes qualificados e a definição da competência territorial para cobrança do ISS sobre operações de leasing: análise do REsp nº 1.787.335/PR

O texto analisa a relevância dos precedentes qualificados no sistema jurídico brasileiro, enfatizando sua função de promover segurança jurídica, uniformidade e previsibilidade. Ele utiliza como exemplo o julgamento do REsp nº 1.787.335/PR pelo STJ, que tratou da competência para a cobrança de ISS sobre operações de leasing.

28/11/2024

A construção de um sistema jurídico confiável depende, fundamentalmente, do respeito aos precedentes qualificados. A verdade contida nesta afirmação, embora amplamente aceita, por vezes encontra resistência em sua aplicação prática, como demonstra o julgamento do REsp nº 1.787.335/PR, pela 1ª Turma do STJ, ocorrido em 26/11/2024. 

O caso envolveu auto de infração lavrado pelo Município de Assaí, no Paraná, contra instituição financeira sediada em Curitiba/PR, tendo como fundamento a cobrança de ISS sobre operações de arrendamento mercantil financeiro (leasing). A controvérsia central residia na definição do município competente para exigir o tributo: seria aquele onde ocorreu a assinatura do contrato e a entrega do bem, ou o município da sede da empresa arrendadora? 

A questão foi definitivamente resolvida pelo STJ no julgamento do REsp nº 1.060.210/SC (Tema 355 dos recursos repetitivos), ocasião em que se firmou o entendimento de que a competência para exigir o ISS sobre operações de leasing é do município onde estiver localizada a sede da instituição financeira. O fundamento central desta orientação reside na compreensão de que o núcleo do serviço de arrendamento mercantil (ou seja, o fato gerador do ISS) consiste na concessão do financiamento, que ocorre no local onde se concentram os poderes decisórios da empresa arrendadora. 

O precedente do STJ expressamente afastou critérios que alguns municípios utilizavam para atrair a competência tributária para seus territórios, como o local de residência dos arrendatários, a localização das concessionárias onde os bens são entregues, ou ainda o local de assinatura dos contratos. Estas circunstâncias foram consideradas pelo STJ como meramente acessórias ao negócio jurídico principal. 

No caso concreto que envolveu o Município de Assaí/PR, a administração tributária local fundamentou a cobrança do imposto justamente em critérios que o STJ declarou irrelevantes: o local de assinatura do contrato e de entrega do bem arrendado. Ao analisar a questão, a 1ª Câmara Cível do TJPR não apenas manteve o auto de infração com base nesses critérios inadequados, como expressamente registrou sua discordância com a orientação do STJ. 

O tribunal paranaense argumentou que “...no mencionado REsp, não foi enfrentado, data vênia, o aspecto temporal da norma jurídica tributária, levando-se em conta que o negócio não se completa sem a participação efetiva do tomador, sendo aí que ocorre o fato gerador desse tributo”. Esta fundamentação revela não apenas incompreensão sobre o fato gerador do ISS nas operações de leasing, mas principalmente desrespeito à força vinculante dos precedentes qualificados. O sistema de precedentes no CPC de 2015 é ainda algo de muito novo no direito brasileiro. É natural, portanto, que os operadores – juízes, promotores, advogados – ainda estejam compreendendo seu papel e sua relevância, bem como assimilando sua  forma de funcionamento. 

O desfecho do REsp nº 1.787.335/PR representa uma importante vitória para a segurança jurídica em dois aspectos fundamentais. Primeiro, porque o STJ superou o obstáculo processual representado pela sua Súmula 7, que inicialmente parecia impedir a análise do mérito da questão. O afastamento da súmula, obtido através do provimento de agravo interno interposto pela instituição financeira, permitiu que o tribunal superior desempenhasse sua missão constitucional de assegurar a correta aplicação da legislação federal e a uniformidade jurisprudencial. 

Segundo, e mais importante, porque o reconhecimento unânime, pelo STJ, do descumprimento do precedente pelo tribunal local reafirma a força vinculante dos precedentes qualificados e fortalece a previsibilidade do sistema jurídico. Não é admissível que tribunais locais deixem de aplicar precedentes qualificados por mera discordância quanto ao seu conteúdo. 

A decisão do STJ no caso em análise vai além da questão específica da competência territorial para a cobrança do ISS sobre leasing. Ela reafirma princípios elementares do sistema de precedentes previsto no CPC de 2015, como a uniformização da jurisprudência e a garantia de isonomia e segurança jurídica. 

O respeito aos precedentes qualificados não é mera formalidade, mas garantia de previsibilidade e racionalidade do sistema jurídico. Quando tribunais locais se permitem afastar de precedentes vinculantes por discordância quanto ao seu conteúdo, comprometem não apenas a segurança jurídica, mas a própria credibilidade do Poder Judiciário.

No contexto específico do direito tributário, onde a previsibilidade é especialmente relevante para o planejamento tanto dos contribuintes quanto dos entes públicos (estes últimos sob o aspecto orçamentário), decisões como a proferida no REsp nº 1.787.335/PR são fundamentais para consolidar entendimentos e evitar a multiplicação de conflitos. A definição clara e vinculante sobre o local de incidência do ISS nas operações de leasing previne a dupla tributação e oferece segurança tanto para os particulares quanto para o fisco. 

O caso analisado serve como importante exemplo para situações similares em que tribunais locais resistam à aplicação de entendimentos vinculantes dos tribunais superiores. A mensagem é clara: a discordância com o conteúdo do precedente não autoriza sua não aplicação. Este é um pressuposto fundamental para a construção de um sistema jurídico coerente e previsível.

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Colunistas

Maria Lúcia Lins Conceição é doutora e mestre em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Membro do Conselho de Apoio e Pesquisa da Revista de Processo, Thomson Reuters – Revista dos Tribunais. Advogada sócia-fundadora do escritório Arruda Alvim, Aragão, Lins & Sato Advogados.

Teresa Arruda Alvim é livre-docente, doutora e mestre em Direito pela PUC-SP. Professora Associada nos cursos de graduação, especialização, mestrado e doutorado da mesma instituição. Professora Visitante na Universidade de Cambridge – Inglaterra. Professora Visitante na Universidade de Lisboa. Membro nato do Conselho do IBDP. Honorary Executive Secretary General da International Association of Procedural Law. Membro Honorário da Associazione italiana fra gli studiosi del processo civile. Membro da Accademia delle Scienze dell’Istituto di Bologna, do Instituto Ibero-americano de Direito Processual, da International Association of Procedural Law, do Instituto Português de Processo Civil. Membro do Conselho de Assessores Internacionais do Instituto de Derecho Procesal y Practica Forense de la Asociación Argentina de Justicia Constitucional. Coordenadora da Revista de Processo – RePro. Relatora da Comissão de Juristas, designada pelo Senado Federal em 2009, que redigiu o Anteprojeto de Código de Processo Civil. Relatora do Anteprojeto de Lei de Ações de Tutela de Direitos Coletivos e Difusos, elaborado por Comissão nomeada pelo Conselho Nacional de Justiça, em 2019, (PL 4778/20). Advogada.