A construção de um sistema jurídico confiável depende, fundamentalmente, do respeito aos precedentes qualificados. A verdade contida nesta afirmação, embora amplamente aceita, por vezes encontra resistência em sua aplicação prática, como demonstra o julgamento do REsp nº 1.787.335/PR, pela 1ª Turma do STJ, ocorrido em 26/11/2024.
O caso envolveu auto de infração lavrado pelo Município de Assaí, no Paraná, contra instituição financeira sediada em Curitiba/PR, tendo como fundamento a cobrança de ISS sobre operações de arrendamento mercantil financeiro (leasing). A controvérsia central residia na definição do município competente para exigir o tributo: seria aquele onde ocorreu a assinatura do contrato e a entrega do bem, ou o município da sede da empresa arrendadora?
A questão foi definitivamente resolvida pelo STJ no julgamento do REsp nº 1.060.210/SC (Tema 355 dos recursos repetitivos), ocasião em que se firmou o entendimento de que a competência para exigir o ISS sobre operações de leasing é do município onde estiver localizada a sede da instituição financeira. O fundamento central desta orientação reside na compreensão de que o núcleo do serviço de arrendamento mercantil (ou seja, o fato gerador do ISS) consiste na concessão do financiamento, que ocorre no local onde se concentram os poderes decisórios da empresa arrendadora.
O precedente do STJ expressamente afastou critérios que alguns municípios utilizavam para atrair a competência tributária para seus territórios, como o local de residência dos arrendatários, a localização das concessionárias onde os bens são entregues, ou ainda o local de assinatura dos contratos. Estas circunstâncias foram consideradas pelo STJ como meramente acessórias ao negócio jurídico principal.
No caso concreto que envolveu o Município de Assaí/PR, a administração tributária local fundamentou a cobrança do imposto justamente em critérios que o STJ declarou irrelevantes: o local de assinatura do contrato e de entrega do bem arrendado. Ao analisar a questão, a 1ª Câmara Cível do TJPR não apenas manteve o auto de infração com base nesses critérios inadequados, como expressamente registrou sua discordância com a orientação do STJ.
O tribunal paranaense argumentou que “...no mencionado REsp, não foi enfrentado, data vênia, o aspecto temporal da norma jurídica tributária, levando-se em conta que o negócio não se completa sem a participação efetiva do tomador, sendo aí que ocorre o fato gerador desse tributo”. Esta fundamentação revela não apenas incompreensão sobre o fato gerador do ISS nas operações de leasing, mas principalmente desrespeito à força vinculante dos precedentes qualificados. O sistema de precedentes no CPC de 2015 é ainda algo de muito novo no direito brasileiro. É natural, portanto, que os operadores – juízes, promotores, advogados – ainda estejam compreendendo seu papel e sua relevância, bem como assimilando sua forma de funcionamento.
O desfecho do REsp nº 1.787.335/PR representa uma importante vitória para a segurança jurídica em dois aspectos fundamentais. Primeiro, porque o STJ superou o obstáculo processual representado pela sua Súmula 7, que inicialmente parecia impedir a análise do mérito da questão. O afastamento da súmula, obtido através do provimento de agravo interno interposto pela instituição financeira, permitiu que o tribunal superior desempenhasse sua missão constitucional de assegurar a correta aplicação da legislação federal e a uniformidade jurisprudencial.
Segundo, e mais importante, porque o reconhecimento unânime, pelo STJ, do descumprimento do precedente pelo tribunal local reafirma a força vinculante dos precedentes qualificados e fortalece a previsibilidade do sistema jurídico. Não é admissível que tribunais locais deixem de aplicar precedentes qualificados por mera discordância quanto ao seu conteúdo.
A decisão do STJ no caso em análise vai além da questão específica da competência territorial para a cobrança do ISS sobre leasing. Ela reafirma princípios elementares do sistema de precedentes previsto no CPC de 2015, como a uniformização da jurisprudência e a garantia de isonomia e segurança jurídica.
O respeito aos precedentes qualificados não é mera formalidade, mas garantia de previsibilidade e racionalidade do sistema jurídico. Quando tribunais locais se permitem afastar de precedentes vinculantes por discordância quanto ao seu conteúdo, comprometem não apenas a segurança jurídica, mas a própria credibilidade do Poder Judiciário.
No contexto específico do direito tributário, onde a previsibilidade é especialmente relevante para o planejamento tanto dos contribuintes quanto dos entes públicos (estes últimos sob o aspecto orçamentário), decisões como a proferida no REsp nº 1.787.335/PR são fundamentais para consolidar entendimentos e evitar a multiplicação de conflitos. A definição clara e vinculante sobre o local de incidência do ISS nas operações de leasing previne a dupla tributação e oferece segurança tanto para os particulares quanto para o fisco.
O caso analisado serve como importante exemplo para situações similares em que tribunais locais resistam à aplicação de entendimentos vinculantes dos tribunais superiores. A mensagem é clara: a discordância com o conteúdo do precedente não autoriza sua não aplicação. Este é um pressuposto fundamental para a construção de um sistema jurídico coerente e previsível.