Questão de Direito

Os honorários advocatícios na ação civil pública e a simetria – está na hora de abandonar a visão romantizada

A simetria no pagamento de honorários em ação civil pública é essencial para evitar desequilíbrios processuais e litígios abusivos.

2/10/2024

Como observou Teori Zavascki, a visão idealizada e, naturalmente, equivocada, da ação civil pública compromete a efetividade do instituto. Por isso, é necessário coibir exageros e, assim, não só preservar do descrédito, mas valorizar e aperfeiçoar esse campo processual1.

Atualmente, voltou ao debate a possibilidade de condenação do réu vencido na ação civil pública ao pagamento de honorários advocatícios. 

A lei da ação civil pública (lei 7.347/85) dispõe, no art. 18, que a associação civil autora não será condenada ao pagamento de honorários de advogado, salvo comprovada má-fé.

O STJ já decidiu que, em razão da simetria, da mesma forma que o autor não pode ser condenado ao pagamento de honorários advocatícios, salvo comprovada má-fé, o réu deve gozar de igual benefício (EAREsp 962.250/SP)2.

Se aos legitimados para a propositura de ação civil pública é dado o benefício da isenção do pagamento de honorários advocatícios na hipótese de improcedência da demanda, salvo os casos em que comprovada má-fé, também deverá ser concedida a mesma isenção ao réu no caso de procedência, em atenção ao princípio da isonomia.

O princípio da simetria garante a igualdade de tratamento entre as partes no processo. Em uma ação civil pública, tanto o autor quanto o réu devem estar sujeitos às mesmas regras de pagamento dos honorários de sucumbência. Isso evita favorecimento indevido ou desvantagem excessiva a qualquer uma das partes.

Dispõe o art. 7º do Código de Processo Civil, que é “assegurada às partes paridade de tratamento em relação ao exercício de direitos e faculdades processuais, aos meios de defesa, aos ônus, aos deveres e à aplicação de sanções processuais, competindo ao juiz zelar pelo efetivo contraditório”. A regra também se aplica ao processo coletivo, por força do art. 19 da LACP.

A paridade de tratamento (ou simetria) é decorrência do princípio constitucional da isonomia (art. 5º, caput, da CF). Este princípio convive harmonicamente com as diferenças de tratamento respaldadas em peculiaridades fáticas que as justificam (tais como o benefício da justiça gratuita, ou a prioridade na tramitação do processo em que é parte pessoa idosa, que criam tratamentos desiguais para corrigir desigualdades). A isonomia só pode ser flexibilizada à luz de fundamentos racionais que justifiquem a diferença de tratamento3.   

Não é o que ocorre em relação às associações. Quando apenas o réu da ação civil pública está sujeito ao pagamento de honorários de sucumbência, cria-se uma situação de desequilíbrio que pode levar a favorecimento indevido para o autor.

A isonomia em relação à isenção do pagamento de honorários de sucumbência não oferece obstáculo ao acesso à justiça pela sociedade civil organizada. Os autores das ações civis públicas, ao contrário dos réus, não recolhem custas nem preparos recursais. Não há, portanto, barreira ao acesso à justiça para as associações: estas não despendem qualquer valor para ajuizar ações coletivas e são isentas do ônus de sucumbência em caso de insucesso.

As associações, que já não incorrem em qualquer risco financeiro ao propor a ação civil pública, passam a ter a perspectiva de auferir ganhos elevados por meio dos seus escritórios de advocacia. São, dessa forma, incentivadas a propor demandas mesmo quando não haja fundamentação jurídica suficiente ou prova sólida. Há, apenas, a possibilidade de ganhos.

Isentas do pagamento de custas e honorários, as associações podem atribuir valores elevados à causa, em prejuízo exclusivo do réu. Além de ser a base de cálculo para as sanções processuais, o valor da causa determina o valor dos preparos recursais, bem como o valor do depósito prévio em eventual ação rescisória. O que pode criar barreiras à defesa do réu, sem trazer nenhum ônus correlato ao autor.

O réu, de outro lado, passa a estar em desvantagem excessiva. O risco de pagar honorários elevados pode forçá-lo a buscar acordos desfavoráveis, mesmo quando existe possibilidade de êxito. Demais, basta o ajuizamento da ação civil pública para causar danos ao réu, seja diante do desgaste da sua imagem, seja em razão da necessidade de provisionamento do risco da demanda na sua contabilidade. Para as empresas, o prejuízo é imediato, uma vez que desviam recursos essenciais das suas atividades para cobrir os custos do processo.

O argumento de que as associações mereceriam tratamento desigual por serem “hipossuficientes” parte de premissa equivocada. Primeiro, porque a afirmação não pode ser generalizada. Segundo, porque uma associação hipossuficiente nem mesmo poderia patrocinar ações coletivas, por falta de representação adequada. Terceiro, porque não há necessidade de estimular o ajuizamento de ações civis públicas por associações, sobretudo, as menos capacitadas.

O texto do art. 18 da lei Federal 7.347/85 (alterado pela lei 8.078/90) foi criado em um contexto muito diferente daquele vivenciado pela sociedade e pelo judiciário de hoje. À época, um dos principais problemas era a dificuldade de acesso à justiça.

Depois de quase 45 anos da edição da lei Federal 7.347/85, os problemas estruturais que impediam ou dificultavam o acesso à justiça foram, em grande parte, suprimidos. Exemplo disso é expansão, jurisprudencial e legislativa, do rol de legitimados a propor ação civil pública, que passou a incluir a Defensoria Pública (tema 607 de repercussão geral no STF) e, até mesmo, a OAB (REsp 1.423.825/CE, DJe 18/12/17).

Atualmente, as preocupações da sociedade e do Judiciário são outras: o excesso de litigiosidade e a insegurança jurídica. É nesse contexto que se insere a emenda constitucional 45/04 (que cria as Súmulas Vinculantes), a lei Federal 11.418/06 (que estabelece o filtro da repercussão geral para os recursos extraordinários), a lei Federal 11.672/08 (que disciplina o julgamento dos recursos especiais repetitivos) e o Código de Processo Civil de 2015 (que instaura um sistema de precedentes, tendente a produzir um direito uno, coeso, coerente e harmônico).

Também é nesse contexto que se insere a reforma trabalhista, instituída pela lei Federal 13.467/17. A reforma acrescentou o art. 791-A na CLT, prevendo o pagamento de honorários de sucumbência por qualquer uma das partes, trabalhador ou empregador, que for derrotada no processo. A norma foi declarada inconstitucional pelo STF apenas em relação ao parágrafo quarto, que trata do beneficiário da justiça gratuita (ADI 5766, DJ 20/10/21).

Não há mais razões (práticas, estruturais, políticas ou econômicas) para “estimular” o ajuizamento de ações civis públicas por associações privadas. O acesso à justiça foi amplamente facilitado e ampliado desde a edição da lei Federal 7.347/85.

Busca-se, hoje, desestimular aventuras judiciárias. É o que se verifica, por exemplo, na discussão a respeito da “litigância predatória”, prática na qual o Judiciário é acionado por meio de grande número de demandas infundadas e repetitivas, com indícios de captação ilegítima de clientes pelo advogado (Diretriz Estratégica 7 do CNJ e Tema Repetitivo 1.198 do STJ).

Embora a LACP imponha sanções para as hipóteses de litigância de má-fé, raramente as associações são penalizadas pelo ajuizamento de ações frívolas ou mal fundamentadas. De toda forma, não basta coibir o “comportamento de má-fé” das associações.

O princípio da simetria garante a igualdade de tratamento entre as partes no processo, equilibrando os riscos do processo e eliminando os estímulos às ações infundadas. Trata-se de incentivo à responsabilidade processual. Quando as partes sabem que não serão remuneradas por honorários de sucumbência, há incentivo para que ajam de forma responsável no processo, evitando ações temerárias ou infundadas.

Em uma ação civil pública, tanto o autor quanto o réu devem estar sujeitos às mesmas regras de pagamento dos honorários de sucumbência. A melhor interpretação do art. 18 da lei 7.347/85 é aquela a que se chegou no julgamento do EAREsp  962.250/SP, que estende a isenção ao pagamento de honorários ao réu vencido na ação civil pública. Tanto em atenção à igualdade entre as partes, como para a prevenção de litígios abusivos.

O tratamento privilegiado às associações privadas em relação aos honorários de sucumbência estimularia a propositura de ações civis públicas infundadas, contribuindo para o aumento da litigiosidade e para a diminuição da eficiência do sistema judiciário.

________

1 ZAVASCKI, Teori Albino. Defesa de direitos coletivos e defesa coletiva de direitos. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 32, n. 127, p. 83-96, jul./set. 1995.

2 “De início, é importante assentar que, neste caso, não se discute sobre a condenação da parte requerida em honorários advocatícios, quando for autor da ação civil pública o Ministério Público. É que sobre tal questão, desde o ano de 2009, a Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça já firmara o seguinte entendimento: (...) Ocorre que, ainda assim e apesar de esse aresto já se reportar ao princípio da simetria, persistira dúvida sobre a possibilidade de condenação da parte requerida vencida em ação civil pública, quando seu autor for pessoa jurídica de direito público – neste caso, a União – ou entidade associativa, que não o Ministério Público” (EAREsp n. 962.250/SP, Corte Especial, rel. Min. Og Fernandes, j. em 15/8/2018, DJe de 21/8/2018).

3 ARRUDA ALVIM, Teresa; CONCEIÇÃO, Maria Lúcia Lins; RIBEIRO, Leonardo Ferres da Silva; MELLO, Rogerio Licastro Torres de. Primeiros comentários ao novo Código de Processo Civil: artigo por artigo. 3. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020. p. 65.

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Colunistas

Maria Lúcia Lins Conceição é doutora e mestre em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Membro do Conselho de Apoio e Pesquisa da Revista de Processo, Thomson Reuters – Revista dos Tribunais. Advogada sócia-fundadora do escritório Arruda Alvim, Aragão, Lins & Sato Advogados.

Teresa Arruda Alvim é livre-docente, doutora e mestre em Direito pela PUC-SP. Professora Associada nos cursos de graduação, especialização, mestrado e doutorado da mesma instituição. Professora Visitante na Universidade de Cambridge – Inglaterra. Professora Visitante na Universidade de Lisboa. Membro nato do Conselho do IBDP. Honorary Executive Secretary General da International Association of Procedural Law. Membro Honorário da Associazione italiana fra gli studiosi del processo civile. Membro da Accademia delle Scienze dell’Istituto di Bologna, do Instituto Ibero-americano de Direito Processual, da International Association of Procedural Law, do Instituto Português de Processo Civil. Membro do Conselho de Assessores Internacionais do Instituto de Derecho Procesal y Practica Forense de la Asociación Argentina de Justicia Constitucional. Coordenadora da Revista de Processo – RePro. Relatora da Comissão de Juristas, designada pelo Senado Federal em 2009, que redigiu o Anteprojeto de Código de Processo Civil. Relatora do Anteprojeto de Lei de Ações de Tutela de Direitos Coletivos e Difusos, elaborado por Comissão nomeada pelo Conselho Nacional de Justiça, em 2019, (PL 4778/20). Advogada.