A recuperação judicial é uma realidade. Já se foi o tempo em que a notícia de que uma grande companhia ingressou com pedido de recuperação judicial era recebida com surpresa pelo mercado. Isso não significa dizer, contudo, que o mercado não seja gravemente impactado pelo número crescente de pedidos de reestruturação.
É inegável que o custo do crédito é afetado diretamente pelo inadimplemento e pela instabilidade econômico-política, bem como pela forma como o Judiciário se comporta frente às discussões envolvendo o crédito. Essa questão já foi objeto de reflexão nesta coluna1.
Na recuperação judicial, inúmeras são as discussões travadas entre credores e a empresa recuperanda: a sujeição, ou não, do crédito à recuperação e a essencialidade de determinados bens ao soerguimento da empresa em crise são dois dos debates mais frequentes.
Os créditos não sujeitos à recuperação estão elencados no parágrafo 3º do art. 49, da lei 11.101/2005 (Lei de Recuperação Judicial e Falência)2. Dentre eles se destaca aquele garantido por alienação fiduciária: o proprietário fiduciário, ou seja, o credor cujo crédito está garantido por alienação fiduciária, não tem o seu crédito submetido aos efeitos do processo de reestruturação. Como já concluiu o STJ, isso afasta dos efeitos da recuperação “não apenas o bem alienado fiduciariamente, mas o próprio contrato por ele garantido”3.
O fato é que, não raro, o privilégio legal do titular de crédito fiduciário é gravemente desrespeitado sob o fundamento de que o bem fiduciário seria essencial, assim compreendido como o bem necessário à continuidade da atividade empresarial e ao soerguimento da empresa em crise.
Nestas situações, a alegação é de que, por ser essencial para a realização dos objetivos da empresa, o bem deve receber a proteção contida na parte final do §3º do art. 49, da lei 11.10/2005. Com isso, a empresa em recuperação pleiteia autorização para permanecer na posse do bem, a despeito de o proprietário fiduciário não ter seu crédito submetido aos efeitos da recuperação.
A essencialidade do bem fiduciário essencial faz surgir um grande impasse: de um lado, o bem fiduciário é tido como essencial à recuperanda que, nos termos do art. 47, da lei 11.101/2005, recebe a proteção legal do princípio da preservação da empresa; de outro, o crédito fiduciário não se submete aos efeitos da recuperação o que, ao menos hipoteticamente, autorizaria a imediata retomada do bem, na ausência de pagamento pontual do contrato.
Visando a equilibrar os interesses dos credores e da empresa em crise, a lei 11.101/2005 estabelece o interregno de blindagem da empresa em recuperação: o stay period. O art. 6º, § 4º da lei4 prevê que a suspensão das ações contra a devedora, e dos atos de constrição que recaiam sobre os bens considerados essenciais, deve prevalecer tão somente enquanto perdurar o stay period. Não há suspensão ilimitada.
Daí seria lógico concluir que a manutenção da recuperanda na posse do bem essencial, igualmente, não poderia perdurar ilimitadamente no tempo. Afinal, deve ser respeitado o termo estabelecido pela própria lei 11.101/2005.
Lamentavelmente, a jurisprudência dominante ainda entende que o fim do stay period não autoriza, automaticamente, a retirada dos bens fiduciários essenciais, porque indispensáveis à atividade da recuperanda. Não se nega a boa intenção do legislador ao prever a ressalva do parágrafo 3º do art. 49, da lei 11.101/2005, em prestígio à preservação da empresa. Todavia, a aplicação indiscriminada desta exceção, para além do período expressamente estabelecido na Lei, é danosa a todo o mercado – que é quem “paga a conta” com a elevação do custo do crédito.
Atenta aos graves impactos do crescente número de recuperações judicias e à necessidade de reestabelecer o equilíbrio entre a devedores e seus credores, a Terceira Turma do STJ proferiu importante acórdão5 que reconhece: “Uma vez exaurido o período de blindagem (...) é absolutamente necessário que o credor extraconcursal tenha seu crédito devidamente equalizado no âmbito da execução individual, não se mostrando possível que o Juízo da recuperação continue, após tal interregno, a obstar a satisfação de seu crédito, com suporte no princípio da preservação da empresa, o qual não se tem por absoluto”.
Na ocasião, o Ministro Marco Aurélio Bellizze examina detalhadamente as razões pelas quais, a partir da vigência da lei 14.112/2020 (que alterou a lei 11.101/2005), o decurso do stay period encerra a competência do juízo universal para suspender atos de constrição que recaiam sobre os bens de capital da recuperada. O Relator conclui que em respeito privilégio legal dos titulares de crédito extraconcursal, sobretudo dos credores fiduciários, e porque esgotada a competência do juízo universal para obstar a satisfação do crédito, o fim do stay impõe o reestabelecimento do regular prosseguimento da execução do crédito não sujeito à recuperação:
“(...) 5. Uma vez exaurido o período de blindagem - sobretudo nos casos em que sobrevém sentença de concessão da recuperação judicial, a ensejar a novação de todas as obrigações sujeitas ao plano de recuperação judicial - é absolutamente necessário que o credor extraconcursal tenha seu crédito devidamente equalizado no âmbito da execução individual, não se mostrando possível que o Juízo da recuperação continue, após tal interregno, a obstar a satisfação de seu crédito, com suporte no princípio da preservação da empresa, o qual não se tem por absoluto. Naturalmente, remanesce incólume o dever do Juízo em que se processa a execução individual de crédito extraconcursal de bem observar o princípio da menor onerosidade, a fim de que a satisfação do débito exequendo se dê na forma menos gravosa ao devedor, podendo obter, em cooperação do Juízo da recuperação judicial, as informações que reputar relevantes e necessárias.
5.1 Deveras, se mesmo com o decurso do stay period (e, uma vez concedida a recuperação judicial), a manutenção da atividade empresarial depende da utilização de bem - o qual, em verdade, não é propriamente de sua titularidade - e o correlato credor proprietário, por outro lado, não tem seu débito devidamente equalizado por qualquer outra forma, esta circunstância fática, além de evidenciar um sério indicativo a respeito da própria inviabilidade de soerguimento da empresa, distorce por completo o modo como o processo recuperacional foi projetado, esvaziando o privilégio legal conferido aos credores extraconcursais, em benefício desmedido à recuperanda e aos credores sujeitos à recuperação judicial. (...)”.
(REsp n. 1.991.103/MT, Relator Min. Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 11/4/2023, DJe de 13/4/2023., sem grifo no original).
Embora não se trate de precedente vinculante, o entendimento firmado no bojo do REsp n. 1.991.103/MT deve orientar os juízes, não só porque o raciocínio jurídico lá construído respeita a intenção expressa do legislador, mas, também, porque prestigia o necessário equilíbrio entre a recuperação judicial e a vedação ao enriquecimento sem causa, entre o devedor e os credores extraconcursais.
A recuperação judicial não pode ser compreendida como justa causa para indefinida interrupção dos pagamentos ao credor fiduciário. Esse entendimento seria o mesmo que assentir no enriquecimento sem causa do devedor que utiliza bem alheio sem justamente remunerá-lo por isso.
Os ônus da reestruturação da empresa em crise devem ser suportados de forma equilibrada entre a devedora e os credores concursais. Cabe à recuperanda empreender as medidas necessárias para equalizar seu passivo extraconcursal. Por isso é que se defende: encerrado o período de blindagem o credor fiduciário deve ser autorizado a retomar o bem, caso os pagamentos não sejam prontamente reiniciados.
Mas não é só. Durante o stay period também deve ser garantida a justa remuneração pela exploração do bem alheio.
Tratando-se de bem fiduciário imóvel, a legislação específica prevê a justa compensação “desde a data da consolidação da propriedade fiduciária no patrimônio do credor fiduciante até a data em que este, ou seus sucessores, vier a ser imitido na posse do imóvel”, nos termos do art. 37-A da lei 9.514/19976. É a chamada “taxa de ocupação” do bem fiduciário imóvel: após a consolidação, o devedor deverá pagar mensalmente valor correspondente a 1% sobre preço pelo qual o imóvel fiduciário seria levado a leilão.
Contudo, a legislação específica (o art. 66-B da lei 4.728/1965) é omissa quanto ao bem fiduciário móvel e fungível (veículos e máquinas, por exemplo), deixando de prever a justa remuneração pela exploração do bem durante o período em que o credor permanece impossibilitado de retomá-lo.
O silêncio da lei 4.728/1965 é criticável e não pode ser interpretado como autorizador da exploração sem contrapartida, mesmo durante o stay period.
Nesses casos, defende-se a aplicação, por analogia, da solução dada pelo art. 37-A da lei 9.514/1997: durante o stay period, reconhecida a essencialidade do bem móvel fungível, a manutenção da recuperanda na posse deve ser condicionada, ao menos, ao pagamento de taxa de ocupação.
A doutrina especializada esclarece que o vocábulo ocupação soa inapropriado e, então, conclui ser “mais conveniente denominar de “taxa de utilização” nos casos de bens móveis”7. Nos parece que o termo taxa de utilização é, de fato, mais adequado.
Seja como for, independentemente do termo que venha a ser adotado, deve-se admitir que, também em relação aos bens móveis fungíveis, seja fixada a taxa de utilização, aqui compreendida como justa compensação pela exploração do bem durante o stay period, enquanto o credor fiduciário fica impedido de reavê-lo.
Conclusão
A decisão que reputa essencial o bem fiduciário deve ser excepcional e não pode ser banalizada, sobretudo porque são importantes os seus desdobramentos. Apesar de os efeitos da recuperação judicial não deverem alcançar o crédito fiduciário, na prática, a decisão impede temporariamente o credor de excutir as garantias, criando situação de absoluto desequilíbrio. Com isso, a recuperanda fica numa posição de vantagem excessiva que desestimula a equalização do contrato garantido fiduciariamente.
Exaurido o período de blindagem, não se pode admitir que o credor fiduciário seja impedido de prosseguir com a retomada dos bens de sua propriedade, a despeito de não serem reiniciados os pagamentos das parcelas inadimplentes. Após o stay period, a equalização do débito fiduciário deve ser condição para que os bens essenciais continuem em posse da recuperanda. Conferir a proteção sem restrições é o mesmo que permitir o enriquecimento sem causa da recuperanda, o que é vedado por força do art. 876 do Código Civil.
Ainda, mesmo no stay period (período em que o credor fiduciário fica impedido de retomar o bem essencial), deve haver fixação de taxa de ocupação ou taxa de utilização. A solução equilibra os interesses da recuperanda e dos credores fiduciários, na medida em que, de um lado, garante-se que o bem essencial ao desenvolvimento da atividade empresarial da recuperanda seja mantido temporariamente em sua posse, e, de outro, assegura-se que o credor fiduciário seja justamente compensado pelo tempo em que foi impedido de exercer seus direitos de propriedade sobre o bem.
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1 "A segurança jurídica na recuperação judicial e o custo do crédito", disponível aqui.
2 "Art. 49. Estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos.
(...)
§ 3º Tratando-se de credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis, de arrendador mercantil, de proprietário ou promitente vendedor de imóvel cujos respectivos contratos contenham cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade, inclusive em incorporações imobiliárias, ou de proprietário em contrato de venda com reserva de domínio, seu crédito não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial e prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais, observada a legislação respectiva, não se permitindo, contudo, durante o prazo de suspensão a que se refere o § 4º do art. 6º desta Lei, a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor dos bens de capital essenciais a sua atividade empresarial."
3 REsp: 1938706 SP 2020/0312022-0, Relatora Min. Nancy Andrighi, Data de Julgamento: 14/09/2021, Terceira Turma, DJe 16/09/2021.
4 "Art. 6º A decretação da falência ou o deferimento do processamento da recuperação judicial implica:
(...)
§ 4º Na recuperação judicial, as suspensões e a proibição de que tratam os incisos I, II e III do caput deste artigo perdurarão pelo prazo de 180 (cento e oitenta) dias, contado do deferimento do processamento da recuperação, prorrogável por igual período, uma única vez, em caráter excepcional, desde que o devedor não haja concorrido com a superação do lapso temporal."
5 REsp n. 1.991.103/MT, Relator Min. Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 11/04/2023, DJe de 13/4/2023.
6 Art. 37-A: " devedor fiduciante pagará ao credor fiduciário, ou a quem vier a sucedê-lo, a título de taxa de ocupação do imóvel, por mês ou fração, valor correspondente a 1% (um por cento) do valor a que se refere o inciso VI ou o parágrafo único do art. 24 desta Lei, computado e exigível desde a data da consolidação da propriedade fiduciária no patrimônio do credor fiduciante até a data em que este, ou seus sucessores, vier a ser imitido na posse do imóvel".
7 SACRAMONE, Marcelo Barbosa; AMARAL, Fernando Lima Gurgel. Alienação fiduciária e taxa de ocupação na recuperação judicial, in Revista de Direito Empresarial (RDEmp), ano 19, n. 1, Belo Horizonte, jan/abril 2022, pp. 13-27.