Questão de Direito

O prazo para a ação rescisória nas hipóteses dos §§15 do art. 525 e 8º do art. 535 do CPC e o princípio da segurança jurídica

Importante destacar que o tema é objeto de julgamento na AR 2.876.

16/7/2024

O CPC/73 já continha regra sobre a inexigibilidade do título executivo judicial fundado em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal ou fundado em aplicação ou interpretação da lei ou ato normativo tidas pelo Supremo Tribunal Federal como incompatíveis com a Constituição Federal. Os arts. 475-L, §1º e 741, parágrafo único, dispunham a esse respeito. A doutrina, contudo, dividia-se sobre a abrangência dessas regras. Assim, por exemplo, para alguns doutrinadores, os dispositivos seriam inconstitucionais1; para outros, compreenderiam apenas o controle concentrado de constitucionalidade2; para outros, compreenderiam também o controle difuso, mas desde que houvesse resolução do Senado Federal suspendendo a eficácia da lei ou ato normativo3; e, ainda para outros, compreenderia o controle difuso independentemente de manifestação do Senado Federal4.

O CPC/15 pretendeu pôr fim a muitas das discussões. A começar por expressamente dispor no §12 do art. 525 e no § 5º do art. 535 que as regras se aplicam, também, às hipóteses de controle difuso.

De fato, essa questão foi esclarecida. Mas, por outro lado, tão logo foi editado, o novo CPC já gerou intenso debate a respeito da novidade introduzida pelos §§15 do art. 525 e 8º do art. 535.

De acordo com os §14 do art. 525 e 7º do art. 535, para que se possa reconhecer a inexigibilidade da obrigação contida no título judicial em sede de impugnação ao cumprimento de sentença, a decisão o STF que reconhece a inconstitucionalidade deve ser anterior ao trânsito em julgado da decisão exequenda. Se posterior, caberá ação rescisória, cujo prazo será contado a partir do trânsito em julgado da decisão proferida pelo STF, nos termos do §§15 do art. 525 e 8º do art. 535.

 Se interpretados na sua literalidade, os §§15 do art. 525 e 8º do art. 535 vulneram princípios constitucionais caros aos cidadãos.

O §15 do art. 525 (assim como o §8º do art. 535) não estabelece limitação temporal. A interpretação literal da regra, não há dúvida quanto a isso, é causa de intensa imprevisibilidade e, portanto, insegurança jurídica, o que se deve evitar. Basta imaginar uma decisão do STF tomada décadas após o trânsito em julgado de uma decisão condenatória. Admitir que, só a partir de então, começaria a fluir o prazo da ação rescisória, seria atentar contra a segurança jurídica.

Foi essa razão que nos levou a sustentar, em obra em coautoria com Teresa Arruda Alvim5, que se deve adotar, na hipótese, o mesmo critério fixado para a contagem do prazo para a ação rescisória proposta com base em prova nova. O termo inicial do prazo bienal para a propositura da ação rescisória será o trânsito em julgado da decisão do STF que tenha fixado nova orientação, desde que não se ultrapassem, no total, cinco anos do trânsito em julgado da decisão que se pretender rescindir. Dessa forma, se após cinco anos do trânsito em julgado de uma decisão condenatória sobrevier decisão do STF, declarando a inconstitucionalidade da lei ou ato normativo que serviu de base para a decisão passada em julgado, esta continuará subsistindo.

No mesmo sentido, é a posição de Rodrigo Barioni: “cabe anotar que no art. 525 do CPC/15 há previsão de prazo diferenciado para o ajuizamento de ação rescisória contra sentença fundada em ‘lei ou ato normativo considerado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, ou fundado em aplicação ou interpretação da lei ou do ato normativo tido pelo Supremo Tribunal Federal como incompatível com a Constituição Federal, em controle de constitucionalidade concentrado ou difuso’ (§ 12). Nessa hipótese, o § 15 do referido dispositivo estabelece que o prazo será contado do trânsito em julgado da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal e não da decisão rescindenda. No entanto, o legislador não estabeleceu prazo máximo para o ajuizamento dessa ação rescisória, o que manifestamente contraria o princípio constitucional da segurança jurídica, devendo-se aplicar também a essa hipótese o prazo máximo de cinco anos do trânsito em julgado da última decisão proferida no processo que produziu a decisão rescindenda (art. 975, §2º, do CPC/2015)6.

Realmente, a ausência de limite para o período entre o trânsito em julgado da decisão rescindenda e o termo inicial do prazo da ação rescisória fundada na inconstitucionalidade do título é causa de grave insegurança jurídica. Por isso não se deve atribuir àqueles dispositivos legais interpretação literal. Mas não se pode perder de vista que a preservação de decisões descoincidentes com a Constituição Federal também é nociva à ordem jurídica, o que sugere, em nosso entender, a adoção de uma solução de equilíbrio, baseada em interpretação extraída do próprio sistema, de que o prazo para a ação rescisória começará a contar do trânsito em julgado da decisão proferida pelo STF, desde que não se superem, no total, 5 anos do trânsito em julgado da decisão rescindenda.

Há, contudo, profunda divergência na doutrina a esse respeito.

Para Luiz Guilherme Marinoni e Daniel Mitidiero, o dispositivo e' “irremediavelmente inconstitucional”7.

Nelson Nery Júnior e Rosa Nery sustentam que o prazo de dois anos começará a fluir do trânsito em julgado da decisão proferida na ação de controle direto da constitucionalidade, desde, porém, que esse se dê dentro dos dois anos do trânsito em julgado da decisão rescindenda. Assim, se a decisão rescindenda transitou em julgado em 30.06.2015 e a decisão proferida na ação de controle abstrato transitou em 30.06.2016, a parte terá dois anos a partir de então para propor a ação rescisória. Se, contudo, a decisão proferida no controle abstrato da constitucionalidade tiver transitado em julgado em 30.06.2018, o prazo para propositura da ação rescisória já terá expirado8.

Para Araken de Assis, por sua vez, o prazo é indefinido, sendo esse o “preço fixado pelo respeito à Constituição”9. Para o autor, o STF, através do instrumento da modulação de efeitos, poderá temperar a aplicação do art. 525, §15.

No julgamento dos terceiros embargos de declaração do acórdão sobre a terceirização da atividade-fim, proferido no RE 958.252, o Min. Luiz Fux consignou em voto - que depois, em razão do debate havido em sessão de julgamento, foi alterado (porque se entendeu que teria ficado prejudicada a discussão relativamente à possibilidade de ajuizamento da ação rescisória, tendo em vista já haver transcorrido o prazo para propositura, cujo termo inicial teria sido o trânsito em julgado da ADPF 324) - que a ausência de limite temporal para o início do termo a quo do prazo decadencial da ação rescisória inquina a regra de inconstitucionalidade, por ofender a coisa julgada. Por isso, em respeito à segurança jurídica, a ação rescisória de que tratam os §§ 15 do art. 525 e 8º do art. 535 do CPC, dando-lhes interpretação conforme à Constituição, deve ser proposta no prazo de 2 anos do trânsito em julgado da publicação da sentença ou acórdão que se fundou no ato normativo ou lei declarados inconstitucionais pelo STF10.

O TJ/SP já julgou nesse sentido:

“a ação rescisória constitui medida de natureza especialíssima e excepcional, sendo, por isso, taxativo o rol para as hipóteses de cabimento, de forma que a rescisória somente seria cabível se a declaração de inconstitucionalidade pelo STF se desse dentro do prazo decadencial de 2 (dois) anos do trânsito em julgado da sentença.

Filio-me a essa corrente, como forma de se evitar a permanente possibilidade de rescindibilidade de decisão (ao condicioná-la à eventual inconstitucionalidade, sem prazo para ser declarada), em flagrante violação à segurança”.12

E, também, o TJ/RS:

“mesmo que se entendesse ser isso possível, seria caso de observar balizada doutrina segundo a qual a rescisória somente seria cabível se a declaração de inconstitucionalidade pelo STF se desse dentro do prazo decadencial de 2 (dois) anos do trânsito em julgado da sentença. E assim, o direito à presente ação rescisória também já teria sido atingido pela decadência. Filio-me a essa corrente, como forma de se evitar a permanente possibilidade de rescindibilidade de decisão (ao condicioná-la à eventual inconstitucionalidade, sem prazo para ser declarada), em flagrante violação à segurança jurídica. AGRAVO INTERNO DESPROVIDO”.12

Parece ser esse o entendimento que irá prevalecer: de que o prazo para o ajuizamento da ação rescisória, nas hipóteses dos §§ 15 do art. 525 e 8º do art. 535 do CPC, é de 2 anos contados do trânsito em julgado da decisão rescindenda.

Importante destacar que o tema é objeto de julgamento na AR 2.876, em que o rel. Min. Gilmar Mendes propôs a declaração de inconstitucionalidade, com efeitos ex nunc, da expressão “cujo prazo será contado do trânsito em julgado da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal”, constante do §15 do art. 525 e do §8º do art. 535 do CPC, com modulação de efeitos da declaração de inconstitucionalidade, que se aplicarão apenas às ações rescisórias propostas após a publicação da ata de julgamento.

Na Sessão Virtual Plenária de 5.4.2024 a 12.4.2024, houve pedido de destaque pelo Ministro Luís Roberto Barroso. Ainda não foi designada nova data para julgamento.

_____________

1 Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery, por exemplo, consideravam inconstitucional o art. 741, parágrafo único, do CPC/73. (Código de Processo Civil Comentado. 10. ed. São Paulo: ed. RT, 2008. p. 1.086). No mesmo sentido, Leonardo Greco, para quem: “Tanto quanto aos efeitos pretéritos, quanto aos efeitos futuros da decisão proferida no controle concentrado, parece-me inconstitucional o dispositivo no referido parágrafo único do artigo 741, que encontra obstáculo na segurança jurídica e na garantia da coisa julgada, salvo quanto a relações jurídicas continuativas, pois quanto a estas, modificando-se no futuro os fatos ou o direito, e no caso da declaração erga omnes pelo STF pode ter sofrido alteração o direito reconhecido na sentença, cessará a imutabilidade dos efeitos do julgado, nos termos do artigo 741 do CPC” (Eficácia da declaração erga omnes de constitucionalidade ou inconstitucionalidade em relação à coisa julgada anterior, p. 20. Disponível em: [www.mundojuridico.adv.br]. Acesso em: 5.7.2024).

 

2 Araken de Assis. Eficácia da coisa julgada inconstitucional. In: Revista Dialética de Direito Processual – RDDP, vol. 4, p. 10-11.

3 Eduardo Talamini condicionava a incidência da regra do art. 741 à manifestação prévia do STF, seja no controle concentrado ou difuso. Em relação a este, porém, reputava ser necessário que tivesse havido a suspensão da execução da lei pelo Senado Federal, para que a inconstitucionalidade pudesse ser reconhecida no bojo dos embargos à execução. (Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: ed. RT, 2005. p. 480).

4 Teori Albino Zavascki sustentava que: “É indiferente, também, que o precedente tenha sido tomado em controle concentrado ou difuso, ou que, nesse último caso, haja resolução do Senado suspendendo a execução da norma. Também essa distinção não está contemplada no texto normativo, sendo de anotar que, de qualquer sorte, não seria cabível resolução do Senado na declaração de inconstitucionalidade parcial sem redução de texto e na que decorre de interpretação conforme a Constituição” (Embargos à execução com eficácia rescisória: sentido e alcance do art. 741, parágrafo único do CPC. In: Revista de Processo, vol. 125, p. 87). No mesmo sentido, Paulo Henrique dos Santos Lucon sustentava que: “[...] o parágrafo único do art. 741 não diz respeito exclusivamente ao controle concentrado de constitucionalidade, realizado pelo STF nas ações diretas de inconstitucionalidade e constitucionalidade. Ao fazer menção à hipótese de inexigibilidade do título executivo judicial fundado em (i) norma (lei ou ato normativo) declarada inconstitucional pelo STF ou (ii) aplicação ou interpretação da lei ou ato normativo pelo STF como incompatíveis com a Constituição Federal, o dispositivo em tela permite a desconstituição do julgado pela via jurisdicional dos embargos mesmo nos casos de controle incidental de constitucionalidade. O sistema pátrio de controle de constitucionalidade por meio do qual os efeitos da apreciação incidenter tantum da constitucionalidade produzem consequências exclusivamente para o caso concreto, pode conduzir à conclusão diversa. No entanto, a parte final do dispositivo conduz a sua aplicação também a situações como a interpretação conforme a Constituição e a declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto, quando ocorram no seio do controle concentrado de constitucionalidade, tendo inclusive eficácia contra todos e efeito vinculante em relação aos órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública federal, estadual e municipal (art. 28, parágrafo único, da Lei 9.868, de 10.11.1999). É evidente que se o dispositivo em análise se estender também para os casos em que o STF exerce o controle incidental, os embargos e eventual ação cognitiva autônoma terão um âmbito de aplicação mais amplo. No fundo, o que se deseja é a supremacia da Constituição Federal, de acordo com o entendimento expresso pelo STF, sobre todas as decisões judiciais” (g. n.). (LUCON, Paulo Henrique dos Santos. Coisa julgada, conteúdo e efeitos da sentença, sentença inconstitucional e embargos à execução contra a Fazenda pública (ex vi art. 741, parágrafo único do CPC). Revista de Processo, São Paulo, v. 31, n. 141, nov. 2006. p. 45).

5 Ação rescisória e querela nullitatis. 3ª ed., São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022, p. 136.

6 Rodrigo Barioni. Comentários ao art. 975 do CPC. In: Breves comentários ao novo Código de Processo Civil. Coord: Teresa Arruda Alvim et all. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 2420.

7 Ação Rescisória: do juízo rescindente ao juízo rescisório. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021. p. 224. No mesmo sentido: MOLLICA, Rogerio; MEDEIROS NETO, Elias Marques de. O §15 do art. 525 e o §8° do art. 535 do novo CPC: considerações sobre a reabertura do prazo para o ajuizamento de ação rescisória e a segurança jurídica. Revista de Processo, vol. 262/2016, p. 223-239.

8 Código de processo civil comentado. 21ª ed., São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2023, comentários ao art. 525, n. 56, p. 1262. 

9 Ação Rescisória. 2ª ed., São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2024, cap. 4, item 43.3.3., p. 291.

10 Foram opostos novos embargos de declaração por um trabalhador versando, inclusive, sobre a intepretação dada ao art. 525, que se encontram pendentes de julgamento. O embargante busca esclarecer como ficarão as rescisórias já ajuizadas que buscam desconstituir relação firmada antes de 2018.

11 (TJSP, Ação Rescisória 2061666-02.2022.8.26.0000, rel. Des. Moreira Viegas, 3º Grupo de Direito Privado, j. 11/04/2022, DJe 11/04/2022).  No mesmo sentido, mais recentemente: “O ajuizamento de ação rescisória, com fulcro no § 12 do art. 525 do CPC, somente resta autorizado se a declaração de inconstitucionalidade pelo STF se der ainda na vigência do prazo decadencial (de dois anos a contar do trânsito em julgado da última decisão proferida no processo, previsto na regra do art. 975, caput, do CPC), pois, do contrário, instalar-se-ia cenário de insegurança jurídica, tornando a coisa julgada em instituto meramente provisório, diante da possibilidade de ajuizamento de ação rescisória sem qualquer prazo pela parte, o que não se admite – Precedentes deste E. TJSP nesse sentido – AÇÃO RESCISÓRIA IMPROCEDENTE.  (TJSP, Ação Rescisória 2218489-67.2023.8.26.0000, rel. Des. Angela Moreno Pacheco de Rezende Lopes, 5º Grupo de Direito Privado, j. 23/02/2024, DJe 23/02/2024).

12 (TJRS, Agravo Interno 70085535706, 5º Grupo de Câmaras Cíveis, rel. Des. Eugênio Facchini Neto, j. 22/9/2022).

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Colunistas

Maria Lúcia Lins Conceição é doutora e mestre em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Membro do Conselho de Apoio e Pesquisa da Revista de Processo, Thomson Reuters – Revista dos Tribunais. Advogada sócia-fundadora do escritório Arruda Alvim, Aragão, Lins & Sato Advogados.

Teresa Arruda Alvim é livre-docente, doutora e mestre em Direito pela PUC-SP. Professora Associada nos cursos de graduação, especialização, mestrado e doutorado da mesma instituição. Professora Visitante na Universidade de Cambridge – Inglaterra. Professora Visitante na Universidade de Lisboa. Membro nato do Conselho do IBDP. Honorary Executive Secretary General da International Association of Procedural Law. Membro Honorário da Associazione italiana fra gli studiosi del processo civile. Membro da Accademia delle Scienze dell’Istituto di Bologna, do Instituto Ibero-americano de Direito Processual, da International Association of Procedural Law, do Instituto Português de Processo Civil. Membro do Conselho de Assessores Internacionais do Instituto de Derecho Procesal y Practica Forense de la Asociación Argentina de Justicia Constitucional. Coordenadora da Revista de Processo – RePro. Relatora da Comissão de Juristas, designada pelo Senado Federal em 2009, que redigiu o Anteprojeto de Código de Processo Civil. Relatora do Anteprojeto de Lei de Ações de Tutela de Direitos Coletivos e Difusos, elaborado por Comissão nomeada pelo Conselho Nacional de Justiça, em 2019, (PL 4778/20). Advogada.