Questão de Direito

O controle da legitimidade das associações na propositura de ações coletivas, sob o prisma da representatividade adequada

O processo coletivo brasileiro evolui com debates intensos. Decisões emblemáticas, como RE 1.101.937 e REsp 1.438.263/SP, fortalecem sua eficácia, mas levantam questões sobre o controle rigoroso do ajuizamento e a adequação da representação das associações.

21/5/2024

O processo coletivo brasileiro é tema que, desde seu surgimento, gera debates intensos, acalorados e interessantíssimos.

Exemplos de recursos paradigmáticos, com discussões sobre questões de grande repercussão para o processo coletivo, são o RE 1.101.937, em que o STF, por maioria de votos, declarou a inconstitucionalidade do art. 16 da lei 7.347/85, segundo o qual a sentença proferida em ações civis públicas faria coisa julgada erga omnes, mas nos limites da competência territorial do órgão prolator; e o REsp 1.438.263/SP, julgado pelo STJ sob a sistemática dos recursos repetitivos, em que se consolidou tese vinculante no sentido de que "Em Ação Civil Pública proposta por associação, na condição de substituta processual de consumidores, possuem legitimidade para a liquidação e execução da sentença todos os beneficiados pela procedência do pedido, independentemente de serem filiados à associação promovente".

De certo modo, os desfechos desses recursos parecem fortalecer o processo coletivo, reafirmando-o como mecanismo concebido para o fim de otimizar a atividade jurisdicional, a partir da resolução de determinada controvérsia com a maior amplitude possível, beneficiando o máximo de sujeitos prejudicados.

Por outro lado, segundo pensamos, essa tendência de fortalecimento do processo coletivo traz consigo importantes reflexões, como, por exemplo, a necessidade de maior rigor no controle do ajuizamento dessas ações. Até mesmo porque, na medida em que os efeitos da ação coletiva se tornam sensivelmente mais abrangentes, deve exigir-se mais seriedade daqueles que, representando e/ou substituindo uma coletividade, buscam a tutela coletiva.

Nisso se insere o exame da legitimidade ativa das associações, para a propositura de demandas coletivas, sob o enfoque da adequacy of representation (adequação da representatividade), como bem alertou a min. Maria Isabel Gallotti, no julgamento do AgInt no AREsp 1.367.934/SC, ocasião em que registrou que o julgamento do REsp 1.438.263/SP e a amplíssima legitimidade que se conferiu às associações para a propositura de ações coletivas "mais realça a necessidade de pronunciamento judicial específico sobre a representatividade adequada da associação".

Enquanto no Direito norte-americano, a adequação da representatividade dos entes legitimados para propor as ações coletivas deve ser analisada pelo juiz, caso a caso (critério ope judicis, portanto), no ordenamento brasileiro, optou o legislador por estipular critérios objetivos para a sua aferição, ope legis.

Por isso, aquelas entidades associativas que preencherem os requisitos objetivos dispostos em lei, de que se destacam a constituição há pelo menos um ano e a convergência de suas finalidades institucionais com o objeto da demanda coletiva (arts. 5º, V, 'a' e 'b', da lei 7.347/85, e 82, IV, do CDC), presumidamente estão aptas a buscarem a tutela coletiva.

A experiência brasileira, no entanto, tem mostrado que o critério ope legis, baseado unicamente na presunção de adequação, não é suficiente.

No plano concreto, são inúmeros os exemplos que deixam em evidência problema bastante sério e indesejado, consubstanciado no uso das ações coletivas e, sobretudo, das prerrogativas que lhe são garantidas (v.g. isenção de custas e honorários), como ferramenta para a consecução de objetivos antijurídicos.

É o caso, por exemplo, de ações propostas por entidades associativas que, muito embora preencham os requisitos legais e sejam, então, presumidamente adequadas a litigarem em nome de uma coletividade de indivíduos, consistem, na prática, em "associações de gaveta" ou, até mesmo, em escritórios de advocacia que nada mais desejam, senão angariar clientela, disfarçando-se de associação sem fins lucrativos.

Situação como essa já foi enfrentada pelo TJ/SC, que, acertadamente, repeliu tentativa de verdadeira captação de clientela por meio da ação civil pública.1 Também o TJ/SP se manifesta, reiteradamente, contra esse tipo de prática.2

Nesse sentido, interessante pesquisa foi conduzida por Edilson Vitorelli, da qual se extrai, conforme relata o autor, que "na maioria dos casos é possível perceber um claro potencial de ganho econômico para as associações autoras: Obtida a condenação, o CDC demanda a liquidação e execução individuais dos danos sofridos, permitindo que a associação promova, nesse segundo momento, a prestação de serviços advocatícios aos membros da classe, com o consequente recebimento de parcela da condenação, a título de honorários contratuais. Assim, a amostra pesquisada sugere que a atuação das associações privadas no ajuizamento de ações civis públicas representa parcela diminuta da tutela coletiva, se restringe a poucas entidades e está focada na defesa de direitos em relação aos quais a estrutura do sistema permite que a organização obtenha retorno econômico futuro, na forma de honorários pela prestação de serviços aos indivíduos titulares do direito, na fase de liquidação e execução da decisão"3

Ainda, como bem alertou Ada Pellegrini Grinover, "problemas práticos têm surgido pelo manejo de ações coletivas por parte de associações que, embora obedeçam aos requisitos legais, não apresentam a credibilidade, a seriedade, o conhecimento técnico-científico, a capacidade econômica, a possibilidade de produzir uma defesa processual válida, dados sensíveis esses que constituem as características de uma "representatividade" idônea e adequada". 4

O abuso, portanto, existe e, infelizmente, não é incomum. Daí a importância da aferição casuística, pelo juiz, da representatividade adequada das associações, o que não nos parece ser vedado pela legislação, pois, em linha com o entendimento de Ada Pellegrini Grinover, "o ordenamento brasileiro não é infenso ao controle da legitimação ope judicis, de modo que se pode afirmar que o modelo do direito comparado, que atribui ao juiz o controle da “representatividade adequada” (Estados Unidos da América, código modelo para Ibero-América, Uruguai e Argentina) pode ser tranquilamente adotado no Brasil, na ausência de norma impeditiva".

Isso não implica a criação de requisitos novos para a legitimação ativa das associações, mas visa a evitar seu uso abusivo e desvirtuamento da sua finalidade.

A adequação da representatividade das associações exige, também, o preenchimento do requisito da pertinência temática, a ser verificado caso a caso pelos juízes, a partir do exame criterioso do estatuto das entidades, em cotejo com os fins colimados na ação.

É que, apesar de o art. 5º, V, 'b', da lei 7.347/85, dispor que as associações devam incluir, entre suas finalidades institucionais, a proteção ao patrimônio público e social, ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem econômica, à livre concorrência, aos direitos de grupos raciais, étnicos ou religiosos ou ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico, não autoriza, como não poderia autorizar, que uma única associação reúna todas essas finalidades em seu estatuto, como se estivesse, a um só tempo, apta a tutelar todas essas espécies de direitos indiscriminadamente.

Assim é o entendimento do STJ, manifestado em mais de uma ocasião5, merecendo destaque o recente julgamento do REsp 2.035.372/MS, finalizado em 21/11/23, em que o min. Marco Aurélio Bellizze, prolator do voto que foi acompanhado pela maioria da 3ª Turma, asseverou que "a lei, ao estabelecer os legitimados para promover a ação coletiva, presumivelmente reconheceu a correlação destes com os interesses coletivos a serem tutelados, razão pela qual o controle judicial da adequada representatividade, especialmente em relação às associações, consubstancia importante elemento de convicção do magistrado para mensurar a abrangência e, mesmo, a relevância dos interesses discutidos na ação, permitindo-lhe, inclusive, na ausência daquela, obstar o prosseguimento do feito, em observância ao princípio do devido processo legal à tutela jurisdicional coletiva, a fim de evitar o desvirtuamento do processo coletivo"6

Da mesma forma, vêm se posicionando os Tribunais Estaduais:

Apelação. Ação Civil Pública movida pela Associação Brasileira dos Mutuários, Consumidores e Contribuintes do Rio Grande do Norte em face da Apple Computer Brasil Ltda, visando seja a ré compelida à venda de seus telefones celulares com os respectivos adaptadores obrigatoriamente inclusos, bem como condenada a indenização por danos sociais no valor de R$ 100.000.000,00 e à restituição de valores despendidos por consumidores para aquisição de carregadores para os modelos de iPhone 11 e seguintes após 13/10/20. Alternativamente, pretende-se a condenação da requerida a entregar os carregadores USB-C cuja potência (20W, 35W, 67W, 96W,140W) garanta o desempenho e velocidade de recarga prometidos para cada aparelho. Sentença de procedência. (...) Ilegitimidade ativa também reconhecida. Associação que deve demonstrar pertinência temática entre suas finalidades institucionais e o objeto da demanda coletiva. Objeto social da autora que não guarda pertinência com o direito pleiteado na presente ação. Objetivo da associação voltado precipuamente para os interesses de mutuários e adquirentes de imóveis financiados. Estatuto demasiadamente genérico que abarca toda e qualquer área do direito. Finalidade que pode ser razoavelmente genérica mas não desarrazoada, sob pena de desnaturação da exigência de representatividade adequada do grupo lesado. Precedentes do STJ (AgInt nos EDcl no AREsp n. 1.264.317/DF). Litispendência e ilegitimidade ativa configuradas. Extinção sem julgamento do mérito. Sentença reformada. RECURSO PROVIDO.7

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. QUATRO ASSOCIAÇÕES AUTORAS. SINDICATO RURAL, ASSOCIAÇÃO DE MEIO AMBIENTE E AQUICULTORES. INSURGÊNCIA QUANTO AO ESTABELECIMENTO DE PENITENCIÁRIA INDUSTRIAL. FINALIDADE DEMASIADAMENTE GENÉRICA. PEDIDO DE ALTERAÇÃO DO LOCAL DE INSTALAÇÃO DA UNIDADE. AUSÊNCIA DE PERTINÊNCIA TEMÁTICA. ILEGITIMIDADE ATIVA CONFIGURADA. EXTINÇÃO SEM RESOLUÇÃO DE MÉRITO. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO DE APELAÇÃO CÍVEL CONHECIDO E NEGADO PROVIMENTO.8

O exame criterioso e casuístico da representatividade adequada das associações, como visto, é essencial à preservação das importantes finalidades das ações coletivas. Está relacionado à própria aptidão das entidades associativaspara a propositura das demandas.

Tratando-se de condição da ação, pode e deve ser analisada de ofício pelo próprio julgador, que, se se convencer de sua inexistência, está autorizado a, até mesmo, indeferir liminarmente a petição inicial, na forma do art. 330, II, do CPC/15.

O certo é que o Poder Judiciário, sob o fundamento de valorizar e incentivar a tutela coletiva, não pode ser complacente com situações de fraude, em que há fortes indícios de desvio de finalidade da associação.

Ao contrário do que se possa imaginar, o maior rigor no exame da adequação das associações e outras entidades semelhantes, enquanto partes de um processo coletivo, não enfraquece o associativismo, mas o enaltece, ao fazer com que apenas e tão somente aquelas associações sérias, verdadeiramente comprometidas com seus fins institucionais e com aqueles que representam e/ou substituem, sejam reputadas legítimas a vindicarem a tutela coletiva.

__________

1 TJ/SC - Apelação Cível n. 2003.007924-6, de Porto União. Relator: Des. Nicanor da Silveira. Data da decisão: 13.10.2005.

2 TJ/SP. Apelação Cível nº 4001216-08.2013.8.26.0604. 28ª Câmara Extraordinária de Direito Privado. Rel. Des. Paulo Alcides. J. em 26.09.2018.

3 VITORELLI, Edilson. O devido processo legal coletivo: dos direitos aos litígios coletivos. 2ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019. P. 379. (Coleção o novo processo civil/coord. Luiz Guilherme Marinoni, Sergio Cruz Arenhart, Daniel Mitidiero).

4 GRINOVER, Ada Pellegrini. Novas questões sobre a legitimação e a coisa julgada nas ações coletivas. In: Processo coletivo: do surgimento à atualidade. Coords.: GRINOVER, Ada Pellegrini; BENJAMIN, Antonio Herman; ALVIM, Teresa Arruda; VIGORITI, Vincenzo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. P. 475-486.

5 STJ – AREsp n. 1.264.317/DF. Rel. Min. Raul Araújo. Dec. Monocrática proferida em 13.04.2020; STJ - AREsp n. 1.355.628 – PR - Relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, 3ª Turma – DJe 27/09/2018; AgInt no REsp 1619154/SC, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 16/02/2017, DJe 23/02/2017.

6 Importante ressalvar, apenas, que não concordamos com a aplicação do art. 5º, § 3º, da LACP, à hipótese de extinção da ação coletiva em virtude da ilegitimidade ativa da associação, pois não se trata de hipótese de desistência infundada ou abandono da ação, tampouco de ação coletiva ajuizada por associação legitimada.

7 TJ/SP. Apelação Cível n. 10785277120228260100. 34ª Câmara de Direito Privado. Rel. Desª Rel. Celina Dietrich Trigueiros. J. em 09/10/2023.

8 TJ/PR. Apelação Cível n. 00109338520228160019. 4ª Câmara Cível. Rel. Desª Astrid Maranhão de Carvalho Ruthes. J. em 23/07/2023.

9 Não apenas as associações, mas também outros tipos de congregações, como sindicatos, fundações etc.

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Colunistas

Maria Lúcia Lins Conceição é doutora e mestre em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Membro do Conselho de Apoio e Pesquisa da Revista de Processo, Thomson Reuters – Revista dos Tribunais. Advogada sócia-fundadora do escritório Arruda Alvim, Aragão, Lins & Sato Advogados.

Teresa Arruda Alvim é livre-docente, doutora e mestre em Direito pela PUC-SP. Professora Associada nos cursos de graduação, especialização, mestrado e doutorado da mesma instituição. Professora Visitante na Universidade de Cambridge – Inglaterra. Professora Visitante na Universidade de Lisboa. Membro nato do Conselho do IBDP. Honorary Executive Secretary General da International Association of Procedural Law. Membro Honorário da Associazione italiana fra gli studiosi del processo civile. Membro da Accademia delle Scienze dell’Istituto di Bologna, do Instituto Ibero-americano de Direito Processual, da International Association of Procedural Law, do Instituto Português de Processo Civil. Membro do Conselho de Assessores Internacionais do Instituto de Derecho Procesal y Practica Forense de la Asociación Argentina de Justicia Constitucional. Coordenadora da Revista de Processo – RePro. Relatora da Comissão de Juristas, designada pelo Senado Federal em 2009, que redigiu o Anteprojeto de Código de Processo Civil. Relatora do Anteprojeto de Lei de Ações de Tutela de Direitos Coletivos e Difusos, elaborado por Comissão nomeada pelo Conselho Nacional de Justiça, em 2019, (PL 4778/20). Advogada.