Questão de Direito

O entendimento jurisprudencial sobre o instituto do recall - Uma visão moderna e consentânea com os princípios da informação e da ordem econômica

O STJ tem feito, por meio de seus julgados, importantes considerações a respeito do instituto do recall e suas repercussões nas relações de consumo.

9/4/2024

O Superior Tribunal de Justiça tem feito, por meio de seus julgados, importantes considerações a respeito do instituto do recall e suas repercussões nas relações de consumo.

No Recurso Especial nº 1.838.184/RS1, por exemplo, a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça deu parcial provimento ao recurso interposto pelo fornecedor para afastar o dano moral coletivo sendo que o conceito de recall foi relevante para se alcançar essa conclusão.

Em suma, a ação subjacente ao Recurso Especial tratava de indenização por danos causados por contaminação de produto alimentício “pela bactéria bacillus cereus, capaz de causar intoxicação alimentar”. De acordo com a prova produzida naqueles autos, dois lotes do produto contaminado (que deveriam ter sido objeto de descarte) foram enviados a supermercados da cidade de Porto Alegre/RS, e foram consumidos por algumas pessoas. A empresa fabricante esclareceu que os produtos, embora estivessem contaminados em níveis acima dos permitidos pela ANVISA, estavam “abaixo dos níveis capazes de representar risco grave à saúde”.

O Tribunal local condenou a empresa: i) a indenizar individualmente os consumidores afetados; ii) ao pagamento de danos morais coletivos no valor de R$ 5 milhões e; iii) a publicar a decisão na mídia.

O recorrente buscava por meio do recurso especial fosse reformada a condenação em danos morais coletivos, pois “logo após ter tido ciência da colocação dos produtos no mercado, realizou comunicação imediata do problema e efetivo recall, por isso, o episódio não teria gerado intranquilidade social ou repercussão de natureza duradoura à coletividade.”

Como se sabe os artigos 12 e 14, do CDC, dispõem que os fabricantes e fornecedores de produtos e serviços devem responder objetivamente por defeitos que possam causar riscos à saúde e à segurança do consumidor, pois de acordo com o julgado ora em comento “(...) a colocação de um produto ou serviço no mercado deve ser feita de forma que isso não signifique risco ao consumidor, no que diz respeito à sua saúde, à sua integridade física e ao seu patrimônio. Esse o comando que se extrai dos arts. 8°, 10, 12 § 1° e 14 § 1°, todos do CDC. É de conhecimento comezinho não existir uma proibição absoluta quanto à colocação no mercado consumidor de produtos ou serviços potencialmente perigosos. Entretanto, o dever de segurança, em verdade, refere-se à ideia de defeito, produtos ou serviços defeituosos, que são aqueles que não oferecem a segurança que legitimamente deles se espera, consideradas as circunstâncias de fornecimento, tais como a apresentação, o uso e os riscos esperados e a época da colocação em circulação ou em que foram fornecidos (arts. 12, § 1° e 14, § 1°, CDC)".

É o que a doutrina denomina de risco do desenvolvimento do produto ou serviço, tendo a legislação atribuído o ônus ao fornecedor de responsabilizar-se por qualquer defeito do produto ou serviço que tenha sido colocado no mercado.

Do voto do Em. Relator, extrai-se, ainda, que é direito básico do consumidor receber as informações de forma correta e com absoluta transparência, garantindo, assim, a possibilidade de livre escolha do produto que melhor servirá ao destinatário e  “visando acrescer efetividade aos princípios da segurança, informação e transparência, o Código de Defesa do Consumidor estipula que o fornecedor, sempre que souber que um produto ou serviço, já colocado no mercado, possa afetar a saúde ou segurança do consumidor, deve comunicar o fato à população, por meio de anúncios publicitários, assim como às autoridades competentes.”

Para cumprir com o dever de informação e preservar a integridade física de seus consumidores, o STJ destaca que o fornecedor pode se valer do instituto do recall, previsto no art. 10, § 1º, do CDC: “Com efeito, o dispositivo é o que inspira o instituto do recall, que, como instrumento de defesa do consumidor e verdadeira obrigação pós-contratual, pode ser definido como a campanha realizada por determinado fornecedor, divulgada em meios de comunicação, cuja finalidade seja informar o consumidor sobre defeito em um produto ou serviço já introduzido no mercado. Assim, o principal objetivo da divulgação será minorar eventuais riscos que o defeito apresentado possa oferecer à saúde e vida dos consumidores, por meio do esclarecimento dos fatos, garantindo, na mesma medida, o direito dos consumidores à informação.”

Nesse sentido, Tamara Amoroso Gonçalves, em primoroso artigo sobre o tema assevera que “o fornecedor que realiza um recall deve ser visto como cumpridor do seu dever de transparência e de boa-fé para com a coletividade de consumidores e não como irresponsável ou descumpridor de suas obrigações. O receio da opinião pública somente incentiva os fornecedores que resistem ao cumprimento da lei a não realizar o chamamento, a esconder falhas em seus produtos, que podem aumentar, exponencialmente, o risco de acidentes de consumo ou mesmo ônus financeiros desnecessários à população2.

Na mesma perspectiva, foi o entendimento do STJ no caso em estudo: “A realização espontânea do recall significa o cumprimento do dever de transparência e de boa-fé do fornecedor, a qual deve ser amplamente incentivada pelos fornecedores amedrontados pela opinião pública, sob pena de haver simulação das falhas em seus produtos e a possibilidade de majoração do risco de acidentes de consumo. O recall é evidentemente benéfico aos fornecedores e à própria sociedade, dada sua efetividade na prevenção de danos, devendo ser desconsiderada a interpretação que configura o instrumento como ato desabonador do fornecedor e/ou agravante da conduta de colocação do produto defeituoso no mercado, não induzindo sua realização à configuração de dano moral coletivo ou individual.”3.

Considerando esse cenário, foi reconhecido que “Na trilha desse raciocínio, tendo em vista a indiscutível importância do instituto do recall, evidentemente benéfico aos fornecedores e à própria sociedade, dada sua efetividade na prevenção de danos, entendo que se afasta da sistemática protetiva, devendo, portanto, ser desconsiderada a interpretação de que o instrumento configura-se como ato desabonador do fornecedor e/ou agravante da conduta de colocação do produto defeituoso no mercado, assim como não induz à configuração de dano moral coletivo ou individual.”

Em outro julgado dessa mesma Corte Superior, foi assentado que “O recall não é, necessariamente, confissão de lesividade do produto, tampouco de todos os produtos do modelo indicado na chamada"4.

Igualmente, no AREsp 2064419, restou consignado que “O recall, dentro de uma sociedade de consumo de massa, busca conciliar, de um lado, a produção em escala de produtos, na qual, ainda que se empregue as melhores práticas, não está imune de produzir itens com algum grau de imperfeição, e, de outro, a segurança e o bem-estar do consumidor5-6.

Nesse contexto, de acordo com o parágrafo 1º do artigo 10, do CDC, cabe ao fabricante e ao fornecedor, comunicar as autoridades competentes eventual periculosidade do produto ou serviço colocado no mercado, ficando implícita a necessidade de correção desse vício.

Atualmente, além da previsão do § 1º, artigo 10, do CDC, a Portaria 618/2019, do Ministério da Justiça e Segurança, disciplina o procedimento do recall. A Portaria dispõe que cabe ao fornecedor informar, aos órgãos competentes e, posteriormente ao consumidor, eventual defeito do seu produto ou serviço, bem como, implementar as medidas necessárias à sua correção ou à sua retirada do mercado.

Os artigos 4° e 5° da Portaria 618/2019 estabelecem que o fornecedor, no caso de adotar o procedimento de recall, deve apresentar à Secretaria Nacional do Consumidor o plano de mídia (informações publicitárias, meios de comunicações que serão utilizados para informar o risco ao consumidor etc.) e o plano de atendimento ao consumidor (locais, duração, data de início, plano de contingência e estimativa de prazo para adequação completa do produto ou serviço afetado).

Importante destacar que muitas empresas, por zelo à sua reputação e prezando pelo bom relacionamento com o consumidor, realizam o recall apenas de forma preventiva. A jurisprudência considera esse fator para afastar a responsabilidade civil da empresa que procedeu ao recall, quando inexistente a comprovação do efetivo dano ao consumidor, confira-se:

Anulatória de auto de infração e imposição de penalidade - PROCON - Violação do artigo 10 'caput' e §2°, do CDC - Colocação no mercado de notebooks com defeito de fabricação - 'Recall' procedido de forma incorreta - Inocorrência - Defeito não caracterizado, logo, desnecessários os anúncios publicitários que foram feitos por mera precaução por parte do fornecedor - Honorários advocatícios - Redução -Artigo 20, §4°, do Código de Processo Civil - Fundação

Pública - Pedido julgado procedente - Sentença reformada apenas no tocante aos honorários - Recurso parcialmente provido7.

APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO ANULATÓRIA DE AUTO DE INFRAÇÃO - PROCON - “RECALL PREVENTIVO” - Empresa autuada sob alegação de infração ao artigo 10, caput, do Código de Defesa do Consumidor (ter colocado no mercado de consumo veículos que oferecem risco à segurança do consumidor) - “Recall” espontâneo e preventivo do veículo denominado “Classe M” Inexistência nos autos de notícia de reclamação ou danos aos consumidores - Sentença de procedência mantida Precedentes - Recurso desprovido8.

APELAÇÃO CÍVEL. RELAÇÃO DE CONSUMO. AÇÃO INDENIZATÓRIA. ALEGAÇÃO DE DANOS CAUSADOS PELA UTILIZAÇÃO DE MEDICAMENTO - RANITIDINA - QUE ESTARIA CONTAMINADO COM SUBSTÂNCIA POTENCIALMENTE CAUSADORA DE CÂNCER EM HUMANOS. RECALL DO FÁRMACO DETERMINADO PELA ANVISA DE FORMA PREVENTIVA. AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DE QUE A AUTORA EFETIVAMENTE UTILIZA O REFERIDO MEDICAMENTO. AUSÊNCIA DE APRESENTAÇÃO DE NOTAS FISCAIS DE AQUISIÇÃO DO PRODUTO. AUSÊNCIA DE DEMONSTRAÇÃO DE EFETIVO DEFEITO NO PRODUTO, E QUE, AINDA ASSIM, NÃO SERIA HIPÓTESE DE INDENIZAÇÃO, UMA VEZ QUE A AUTORA NÃO DEMONSTROU DANO CONCRETO, MAS TÃO SOMENTE HIPOTÉTICO. DANO MORAL INOCORRENTE. SEM A DEMONSTRAÇÃO DE QUALQUER REPERCUSSÃO, NÃO ENSEJA DANO MORAL A SER COMPENSADO. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA QUE DEVE SER MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO9.

De tudo o que se expôs, em nosso sentir, percebe-se um amadurecimento do entendimento jurisprudencial sobre o tema, traduzido a partir de uma visão mais moderna e consentânea com os princípios da informação e da ordem econômica sobre o instituto do recall.

Isso, porque, o Judiciário vem reconhecendo que o recall desempenha um papel fundamental na efetivação do dever de informação por parte das empresas. E, além disso, que o instituto não pode ser visto como medida prejudicial à imagem do fornecedor, pois o recall é um mecanismo que visa prevenir danos aos consumidores e, ao mesmo tempo, assegurar a transparência na condução da atividade econômica do fornecedor.

Inclusive, há o reconhecimento de que muitas vezes o recall se dá de forma preventiva, não sendo consequência imediata a responsabilização civil dos fornecedores, pois eventuais danos devem ser sempre comprovados, o que reforça e garante que as empresas cumpram com o seu dever de informação e, com segurança, possam fazer uso do recall como um instrumento benéfico para toda a sociedade.

__________

1 STJ - REsp: 1838184 RS 2019/0275550-5, Relator: Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Data de Julgamento: 05/10/2021, T4 - QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 26/11/2021.

2 GONÇALVES, Tamara Amoroso. Recall no Brasil: desafios e perspectivas. Revista dos Tribunais. v. 960, 2017/2/16.

3 STJ - REsp: 1838184 RS 2019/0275550-5, Relator: Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Data de Julgamento: 05/10/2021, T4 - QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 26/11/2021.

4 STJ - AREsp: 2288613, Relator: MARIA ISABEL GALLOTTI, Data de Publicação: 04/07/2023

5 STJ - AREsp: 2064419 DF 2022/0027938-0, Relator: Ministro ANTONIO CARLOS FERREIRA, Data de Publicação: DJ 31/08/2022

6 Nesse sentido, o entendimento jurisprudencial: “O recall, dentro de uma sociedade de consumo de massa, busca conciliar, de um lado, a produção em escala de produtos, na qual, ainda que se empregue as melhores práticas, não está imune de produzir itens com algum grau de imperfeição, e, de outro, a segurança e o bem-estar do consumidor”(...) – TJRS, Apelação 07021962920208070001, Relator: GISLENE PINHEIRO, 7a Turma Cível, data de julgamento: 18/8/2021, publicado no PJe: 20/8/2021.

7 TJSP, AC 676.112-5/5-00, Des. Relator Leme de Campos, Sexta Câmara de Direito Público, julgamento em 15/12/2008.

8 TJSP, Apelação 0069561-10.2006.8.26.0000, Reatora Des. Ana Liarte, 4ª Câmara de Direito Público, julgamento em 24/0/2018.

9 TJ-RJ - APL: 00041907420208190042 202300173398, Relator: Des(a). FERNANDA FERNANDES COELHO ARRABIDA PAES, Data de Julgamento: 27/09/2023, NONA CAMARA DE DIREITO PRIVADO.

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Colunistas

Maria Lúcia Lins Conceição é doutora e mestre em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Membro do Conselho de Apoio e Pesquisa da Revista de Processo, Thomson Reuters – Revista dos Tribunais. Advogada sócia-fundadora do escritório Arruda Alvim, Aragão, Lins & Sato Advogados.

Teresa Arruda Alvim é livre-docente, doutora e mestre em Direito pela PUC-SP. Professora Associada nos cursos de graduação, especialização, mestrado e doutorado da mesma instituição. Professora Visitante na Universidade de Cambridge – Inglaterra. Professora Visitante na Universidade de Lisboa. Membro nato do Conselho do IBDP. Honorary Executive Secretary General da International Association of Procedural Law. Membro Honorário da Associazione italiana fra gli studiosi del processo civile. Membro da Accademia delle Scienze dell’Istituto di Bologna, do Instituto Ibero-americano de Direito Processual, da International Association of Procedural Law, do Instituto Português de Processo Civil. Membro do Conselho de Assessores Internacionais do Instituto de Derecho Procesal y Practica Forense de la Asociación Argentina de Justicia Constitucional. Coordenadora da Revista de Processo – RePro. Relatora da Comissão de Juristas, designada pelo Senado Federal em 2009, que redigiu o Anteprojeto de Código de Processo Civil. Relatora do Anteprojeto de Lei de Ações de Tutela de Direitos Coletivos e Difusos, elaborado por Comissão nomeada pelo Conselho Nacional de Justiça, em 2019, (PL 4778/20). Advogada.