Questão de Direito

Ação de improbidade é ação civil pública?

A Lei de Improbidade Administrativa, lei 8.429/92, disciplina a aplicação de sanções ao agente público que comete desvios éticos, especialmente atos de corrupção.

19/3/2024

A Lei de Improbidade Administrativa, lei Federal 8.429/92, disciplina a aplicação de sanções ao agente público que comete desvios éticos, especialmente atos de corrupção. As punições são gravíssimas (suspensão dos direitos políticos, perda da função pública, indisponibilidade dos bens e ressarcimento ao erário). E isso, por si só, indica que a improbidade administrativa não é algo banal.

 Com a experiência de quase trinta anos, a Lei de Improbidade precisava ser reformada. Dentre os pontos mais problemáticos estava a aproximação, equivocada, com o microssistema de proteção aos interesses coletivos.

As ações coletivas são regidas pelo Código de Defesa do Consumidor (em sua parte processual), pela lei da Ação Civil Pública e pela Lei da Ação Popular. Esses diplomas disciplinam, de modo concatenado, as ações coletivas no país.

Mas o que é uma ação coletiva? As características de uma ação coletiva estão em seus dois extremos: na legitimidade diferenciada e no espectro de abrangência da eficácia da sentença, ou da “coisa julgada” (como erradamente se diz). Não estão no bem jurídico tutelado. Basta considerar que o meio ambiente e os direitos dos consumidores podem ser tutelados por meio de ações civis individuais, ações civis públicas, ou, ainda, por ações penais.

A legitimidade diferenciada da ação civil pública visa a possibilitar a defesa de direitos coletivos (pertencente a vários indivíduos, de forma indivisível), ou dar proteção coletiva a direitos individuais homogêneos (cujos titulares são individualmente determinados, mas tratados coletivamente em razão da massificação das relações jurídicas). Por isso, a Lei da Ação Civil Pública (art. 16) e o Código de Direito do Consumidor (art. 103) estabelecem que a sentença terá eficácia erga omnes ou ultra partes, beneficiando os titulares dos direitos de forma genérica.

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, antes da reforma da Lei Federal nº 8.429/92, adotou o entendimento de que a ação de improbidade faria parte do “microssistema de tutela dos direitos difusos”, em razão da proteção da “moralidade administrativa sob seus vários ângulos e facetas”1.

A consequência prática era a aplicação emprestada de normas previstas na Lei da Ação Civil Pública, na Lei da Ação Popular e no Código de Defesa do Consumidor. Já se entendeu, por exemplo, que: i) a sentença de improcedência na ação de improbidade estaria sujeita ao reexame necessário2; ii) a apelação do réu deveria ser recebida somente no efeito devolutivo3; iii) e que qualquer decisão interlocutória poderia ser impugnada por agravo de instrumento (art. 19 da Lei Federal nº 4.717/65), afastando o rol taxativo do art. 1.015 do CPC/20154.

A ação de improbidade administrativa, contudo, nunca foi uma espécie de ação coletiva.

O critério definidor da ação civil pública não é a natureza dos bens e direitos por ela protegidos (meio ambiente; consumidor; ordem econômica; ordem urbanística; patrimônio público e cultural). Tais bens e direitos podem ser tutelados por outros meios, como a execução fiscal, a ação penal e a ação individual. 

Além disso, a sentença proferida na ação de improbidade não espraia seus efeitos por toda uma comunidade. Eventual condenação atinge, individualmente, os acusados, na medida da sua culpabilidade.

 A ação de improbidade volta-se, primariamente, à aplicação de sanções punitivas aos agentes públicos, não à inibição ou à reparação de danos causados em nível supraindividual. A ação de improbidade busca a aplicação de penas (civis, administrativas e políticas) ao réu. Por meio dessa ação, o autor exercita pretensão acusatória, que é cercada de garantias especiais, decorrentes da presunção de inocência (art. 5º, da Constituição Federal).

 O regime jurídico da punição não se confunde com o regime jurídico da reparação/indenização. Enquanto a reparação visa à recomposição patrimonial, a punição é um meio de retribuição e intimidação para a prevenção de ilícitos. Como a sanção punitiva vai além da mera reparação do dano, não raro atribuindo um estigma social ao condenado, sua aplicação está cercada de cautelas mais rígidas, previstas no art. 5º da Constituição Federal5.

 A reparação do dano ao erário e a perda dos bens ilicitamente adquiridos são efeitos civis da sentença condenatória proferida na ação de improbidade (art. 18 da LIA), semelhante ao que ocorre na sentença penal (art. 91 do Código Penal).

A ação de improbidade administrativa, portanto, não é ação civil pública.

Mas também não é, evidentemente, uma ação civil comum, em razão da legitimidade diferenciada e da pretensão acusatória nela veiculada. É uma ação civil sui generis, construída de modo a compatibilizar a repressão dos atos de corrupção com os direitos fundamentais dos acusados.

A legitimidade para propor uma ação de improbidade é diferente da legitimidade disciplinada pelo Código de Processo Civil. Nas ações individuais, às quais se aplica o Código de Processo Civil, a legitimidade para o processo deriva da legitimidade para a ação. Significa, por exemplo, que aquele que contratou (e que, portanto, tem legitimidade para a causa) tem legitimidade para o processo em que se vai discutir a higidez das cláusulas contratuais daquele contrato específico.

Diferentemente ocorre com as ações coletivas, as ações penais públicas e a ação de improbidade. A legitimidade processual não decorre automaticamente da legitimidade para a causa - decorre da lei. Aquele que pode mover uma ação de improbidade não tem legitimação para a causa. Este é o caso do Ministério Público (ou ainda a pessoa jurídica lesada, conforme decidiu o Supremo Tribunal Federal nas ADIs 7042 e 70436), que tem legitimidade extraordinária, ou seja, exclusivamente para o processo.

A legislação reformada, resolvendo a polêmica, dispôs que a ação de improbidade segue o procedimento comum previsto no Código de Processo Civil (art. 17), temperado com regras específicas que buscam dar efetividade às garantias constitucionais dos acusados em geral (art. 1º, §4º). Segue, assim, não o “procedimento comum”, mas um procedimento especial.

Para enfatizar a separação entre a ação de improbidade e a ação civil pública, o legislador vedou o ajuizamento da ação de improbidade para fim de controle de legalidade de políticas públicas, ou para a proteção de interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos (art. 17-D). Também dispôs que, se o magistrado não identificar os requisitos para a imposição das sanções aos agentes incluídos no polo passivo da demanda, poderá, em decisão motivada, converter a ação de improbidade administrativa em ação civil pública, decisão que poderá ser impugnada por meio de agravo de instrumento (art. 17, §§ 16 e 17).

A ação de improbidade, portanto, nunca foi uma espécie de ação civil pública, nem integrava o “microssistema” de tutela dos direitos coletivos. É uma ação civil sui generis, na qual a repressão dos atos de corrupção deve ser compatibilizada com os direitos fundamentais dos acusados.

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1 REsp 695.396/RS, Primeira Turma, Rel. Ministro Arnaldo Esteves Lima, DJe 27/4/2011; REsp n. 1.217.554/SP, relatora Ministra Eliana Calmon, Segunda Turma, DJe de 22/8/2013; AgInt no REsp n. 1.379.659/DF, relator Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe de 18/4/2017.

2 EREsp 1.220.667/MG, Relator Ministro Herman Benjamin, Primeira Seção, DJe 30/6/2017.

3 REsp 1.523.385/PE, Relator Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe de 7/10/2016.

4 AgInt no REsp n. 1.733.540/DF, Relator Ministro Gurgel de Faria, Primeira Turma, DJe de 4/12/2019.

5 As sanções punitivas seguem alguns princípios em comum, historicamente desenvolvidos no direito penal, como: i) a presunção de inocência e a interpretação restritiva (inc. LVII); ii) o princípio da personalidade da sanção (inc. XLV); iii) o princípio da irretroatividade, salvo da lei mais benéfica (inc. XL); iv) o princípio do contraditório e ampla defesa, que incide de forma mais incisiva nos processos acusatórios (inc. LV); v) o princípio tipicidade ou da anterioridade da norma punitiva (inc. XXXIX); vi) e a vedação das provas ilícitas (inc. LVI).

6 Em 31/08/2022, o STF, por maioria, julgou parcialmente procedentes os pedidos das Ações Diretas de Inconstitucionalidade nº 7042 e 743 para: (a) declarar a inconstitucionalidade parcial, sem redução de texto, do caput e dos §§ 6º-A e 10-C do art. 17, assim como do caput e dos §§ 5º e 7º do art. 17-B, da lei 8.429/1992, na redação dada pela Lei 14.230/2021, de modo a restabelecer a existência de legitimidade ativa concorrente e disjuntiva entre o Ministério Público e as pessoas jurídicas interessadas para a propositura da ação por ato de improbidade administrativa e para a celebração de acordos de não persecução civil; (b) e para declarar a inconstitucionalidade parcial, com redução de texto, do § 20 do art. 17 da lei 8.429/1992, incluído pela Lei 14.230/2021, no sentido de que não existe "obrigatoriedade de defesa judicial"; havendo, porém, a possibilidade dos órgãos da Advocacia Pública autorizarem a realização dessa representação judicial, por parte da assessoria jurídica que emitiu o parecer atestando a legalidade prévia.

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Colunistas

Maria Lúcia Lins Conceição é doutora e mestre em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Membro do Conselho de Apoio e Pesquisa da Revista de Processo, Thomson Reuters – Revista dos Tribunais. Advogada sócia-fundadora do escritório Arruda Alvim, Aragão, Lins & Sato Advogados.

Teresa Arruda Alvim é livre-docente, doutora e mestre em Direito pela PUC-SP. Professora Associada nos cursos de graduação, especialização, mestrado e doutorado da mesma instituição. Professora Visitante na Universidade de Cambridge – Inglaterra. Professora Visitante na Universidade de Lisboa. Membro nato do Conselho do IBDP. Honorary Executive Secretary General da International Association of Procedural Law. Membro Honorário da Associazione italiana fra gli studiosi del processo civile. Membro da Accademia delle Scienze dell’Istituto di Bologna, do Instituto Ibero-americano de Direito Processual, da International Association of Procedural Law, do Instituto Português de Processo Civil. Membro do Conselho de Assessores Internacionais do Instituto de Derecho Procesal y Practica Forense de la Asociación Argentina de Justicia Constitucional. Coordenadora da Revista de Processo – RePro. Relatora da Comissão de Juristas, designada pelo Senado Federal em 2009, que redigiu o Anteprojeto de Código de Processo Civil. Relatora do Anteprojeto de Lei de Ações de Tutela de Direitos Coletivos e Difusos, elaborado por Comissão nomeada pelo Conselho Nacional de Justiça, em 2019, (PL 4778/20). Advogada.