Questão de Direito

Breve reflexão sobre o controle das decisões proferidas pelos juizados especiais - A tese firmada no julgamento do RE 586068, tema 100

Este artigo tem por objetivo provocar uma reflexão a respeito das consequências de uma causa ser julgada pelos juizados especiais ou pela justiça comum.

21/2/2024

Este artigo tem por objetivo provocar uma reflexão a respeito das consequências de uma causa ser julgada pelos juizados especiais ou pela justiça comum. A instituição desses juizados pelo menos parcialmente se deve à necessidade de que algumas circunstâncias possam gerar um procedimento menos formal e facilitar sob certo aspecto o acesso à justiça.

No entanto, existe uma outra preocupação que ultimamente tem norteado as reflexões da doutrina, que diz respeito à necessidade de que o direito seja uno e coeso, proporcionando, portanto, isonomia e previsibilidade. Numa palavra, pode-se dizer que à segurança jurídica tem se dado imensa importância nos últimos tempos.

Toda a supressão de meios de impugnação das decisões proferidas, no âmbito dos juizados especiais, deve ser analisada também sob a ótica de não serem suprimidos caminhos por meio dos quais se atinge segurança jurídica, o que em última análise significa mais conforto para o jurisdicionado e em geral para toda a sociedade.

O microssistema dos Juizados Especiais é dividido entre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais dos Estados e Distrito Federal, regulados pela Lei 9.099/1995; os Juizados Especiais Cíveis e Criminais da Justiça Federal, regulados pela lei 10.259/2001 e os Juizados Especiais da Fazenda Pública no âmbito dos Estados, Distrito Federal e Municípios, regulados pela Lei 12.153/2009. Cada qual conta com lei específica, que disciplina o procedimento a ser adotado e os recursos à disposição das partes para impugnação das decisões proferidas.

A Lei 9.099/1995, no seu art. 59, dispõe que “não se admitirá ação rescisória nas causas sujeitas ao procedimento instituído por esta Lei”.

Duas das subscritoras deste artigo, em obra em coautoria1, já tiveram a oportunidade de sustentar a inconstitucionalidade dessa regra, uma vez que inexiste critério legitimador para o tratamento diferenciado dos pronunciamentos de mérito proferidos nos processos que tramitam nos Juizados. A gravidade dos vícios que autorizam a rescisão dos julgados não é menor em razão de os pronunciamentos judiciais envolverem lides de menor valor e complexidade. A gravidades desses vícios, muitas vezes, consiste justamente em compreender a unidade, a coesão e a harmonia do direito. Não se trata, portanto, de uma espécie de gravidade que diga respeito apenas à situação das próprias partes.

Uma vez que as leis 10.259/2001 e 12.153/2009, que regulam respectivamente, os procedimentos dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais da Justiça Federal e dos Juizados Especiais da Fazenda Pública, não contêm regra expressa acerca do não cabimento da ação rescisória, embora haja disposição no sentido de que será aplicável subsidiariamente o disposto na Lei 9.099/1995, há autores2 que sustentam ser cabível ação rescisória no âmbito desses juizados. A jurisprudência, contudo, não tem encampado esse entendimento.3

Tanto a lei dos Juizados Especiais Federais, quanto aquela que regula os Juizados da Fazenda Pública Estadual, do Distrito Federal e Municipal, dispõem sobre o meio adequado à solução da divergência de entendimentos acerca de direito material existente entre Turmas Recursais, o chamado Incidente de Uniformização de Interpretação de Lei (art. 14, da Lei 10.259/2001 e art. 18, § 1º, da lei 12.153/2009).  A Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais da Justiça Federal prevê que a competência para o julgamento do incidente, quando a divergência se der entre Turmas da mesma região, é do órgão formado a partir da reunião das Turmas Recursais em conflito (art. 14, § 1º, da lei 10.259/2001). Quando, todavia, a divergência existir entre entendimento de Turmas Recursais de diferentes regiões, a competência para julgar é da Turma Nacional de Uniformização4. Porém, se a Turma Nacional de Uniformização emitir pronunciamento contrário “à súmula ou jurisprudência dominante do STJ”, o incidente de Uniformização de Interpretação da Lei será instaurado perante o Superior Tribunal de Justiça (art. 14, § 4º, da lei 10.259/2001)5.

A Lei dos Juizados Especiais da Fazenda Pública tem peculiar distinção: a divergência entre Turmas Recursais do mesmo Estado, como nos Juizados da Justiça Federal, é resolvida em julgamento realizado pela reunião das Turmas Recursais em conflito, porém se a divergência de entendimentos se der entre Turmas Recursais de diferentes Estados ou quando a decisão proferida estiver em contrariedade com “súmula do Superior Tribunal de Justiça”, a instauração do incidente deverá ocorrer diretamente no Superior Tribunal de Justiça, sem necessidade de recorrer à Turma Nacional de Uniformização (art. 18, §3º, lei 12.153/2009)6.

Essas leis referem-se a súmulas e jurisprudência dominante do STJ, mas a interpretação que se deve fazer dos respectivos dispositivos é extensiva, alcançando todos os precedentes vinculantes.

Ocorre que, no âmbito dos Juizados Especiais Estaduais, inexiste previsão semelhante.

Ou seja, a Lei 9.099/1995 não prevê qualquer instrumento de controle das decisões proferidas no âmbito dos Juizados Especiais Estaduais, voltado a dissipar a divergência de entendimentos entre as Turmas Recursais ou entre essas e os Tribunais Superiores.

Há Estados em que, ainda que a lei 9.099/1995 não disponha a respeito, é previsto o cabimento do Incidente de Uniformização de Jurisprudência quando há divergência de entendimentos entre as Turmas Recursais.7 Não é, contudo, por exemplo, o caso do Estado do Paraná. As Turmas Recursais do Paraná não conhecem de IUJs, sob o fundamento de ausência de previsão legal ou regimental para o incidente.8

No intuito de promover e prestigiar a uniformidade e coerência das decisões judiciais, o STF decidiu, nos EDcl no RE 571.572/BA, que competiria ao Superior Tribunal de Justiça, até que lei federal instituísse órgão uniformizador, julgar as reclamações ajuizadas para dirimir divergências entre acórdão prolatado por Turma Recursal Estadual e a jurisprudência, súmula ou entendimento formado em julgamento de recursos repetitivos pelo Superior Tribunal de Justiça. Na época, para concretizar esse comando, o STJ editou a Resolução 12/2009, que disciplinava o processamento da reclamação no âmbito desse Tribunal.

Em 2016, contudo, sob o fundamento de que o grande fluxo de reclamações advindas dos juizados especiais estaria acarretando acúmulo de trabalho, o STJ editou a Resolução 3, que prevê que compete às Câmaras Reunidas ou Seção Especializada dos Tribunais de Justiça processar e julgar as reclamações que tenham por fim dirimir divergência entre acórdão prolatado por Turma Recursal Estadual e do Distrito Federal e a jurisprudência do STJ, consolidada em IAC, IRDR, recursos especiais repetitivos e em enunciado das Súmulas do STJ, bem como para garantir a observância de precedentes.

Há vários Tribunais locais, entretanto, que não admitem a reclamação, baseados no entendimento – em nosso sentir, absolutamente equivocado – do próprio STJ no sentido de que o inciso IV, do art. 928 do CPC/2015, teria sido modificado pela lei 13.256/2016, “não sendo mais cabível a reclamação com base em Recurso Especial Repetitivo”.9

A situação, especialmente em relação aos Juizados Especiais Estaduais, é bastante sensível, porque acaba por tornar as Turmas Recursais verdadeiras células de poder, sem equivalente na Constituição Federal e no sistema judiciário brasileiro como um todo.

Há, no âmbito desses Juizados Especiais, uma séria antinomia, porque, ao mesmo tempo em que se afirma que esse microssistema está voltado à ampliação do acesso à ordem jurídica justa, esse acesso é gravemente obstruído, negando-se ao jurisdicionado a apreciação de relevantes questões de direito, muitas vezes já solucionadas e pacificadas pelos Tribunais Superiores em sentido diverso àquele que prevaleceu no âmbito dos Juizados.10

Uma série de fatores, em nosso entender, tem impedido, especialmente, os Juizados Especiais Estaduais, de contribuírem para a uniformidade, estabilidade e previsibilidade da ordem jurídica e que impõem, de forma urgente, mudança de posicionamento, seja no plano legislativo, seja dos Tribunais locais e superiores. São eles:

Felizmente, vislumbramos uma luz no fim do túnel.

Ao julgar o Recurso Extraordinário (RE) 586068, com repercussão geral (Tema 100), o STF fixou tese no sentido de que: “ (...) 3) O art. 59 da Lei 9.099/1995 não impede a desconstituição da coisa julgada quando o título executivo judicial se amparar em contrariedade à interpretação ou sentido da norma conferida pela Suprema Corte, anterior ou posterior ao trânsito em julgado, admitindo, respectivamente, o manejo (i) de impugnação ao cumprimento de sentença ou (ii) simples petição, a ser apresentada em prazo equivalente ao da ação rescisória”12

Não se nega que o microssistema dos Juizados Especiais cumpre papel importantíssimo na ordem jurídica, mas não se pode admitir que seja instrumento para consolidação de provimentos escancaradamente ilegais, gerando, como se isso fosse possível, uma ordem jurídica paralela.

O STF bem vislumbrou esse grave problema e concluiu que é possível anular decisão definitiva dos Juizados Especiais se ela tiver sido baseada em norma ou em interpretação declarada inconstitucional pelo Supremo.

Espera-se que também os Tribunais locais e o STJ voltem sua atenção ao problema e dialoguem entre si, com vistas a buscar solução que, sem desvirtuar o papel e a importância dos Juizados Especiais, prestigie a segurança jurídica.13

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1 Teresa Arruda Alvim; Maria Lúcia Lins Conceição. Ação rescisória e querella nullitatis: semelhanças e diferenças. 3. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022, p. 140.

2 Para Vicente Ataide Jr. “(…) as causas submetidas à Lei 10.259/2001 e, em semelhante medida, à Lei 12.153/2009, são complexas e geram consequências individuais e sociais bastante relevantes. (…). Por essa razão fundamental, não é mais possível sonegar a ação rescisória no âmbito dos Juizados Federais e Fazendários. A segurança jurídica que se reclama, com vigor mais intenso, no julgamento de causas mais complexas, exige a possibilidade de rescisão, quando presentes os respectivos pressupostos legais, hoje presentes no art. 966 do CPC/2015”. ATAIDE JR., Vicente de Paula. O Código de Processo Civil/2015 e os Juizados Especiais Federais. Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região. Ano 5, n. 11, p. 20.
No mesmo sentido, confiram-se: Joaquim Felipe Spadoni. O direito constitucional de rescisão dos julgados. In: Processo e Constituição. Estudos em homenagem ao Professor José Carlos Barbosa Moreira. São Paulo: RT, 2006. p. 1073; Joel Dias Figueira Júnior. Juizados Especiais Cíveis e Criminais. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 398; Roberto Corte Real Curra. O cabimento da ação rescisória nos Juizados Especiais Federais. In: CUNHA, Leonardo Carneiro da (org.). Questões atuais sobre os meios de impugnação contra decisões judiciais. Belo Horizonte: Fórum, 2012, p. 229-240; Alexandre Freitas Câmara. Juizados Especiais Cíveis Estaduais, Federais e da Fazenda Pública. 7. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012. p. 146.

3 Convém mencionarmos, pela sua relevância, a Ação Rescisória 5045923-68.2017.4.04.7000/PR, 2ª Turma Recursal, Seção Judiciária do Paraná, j. 09.08.2018, rel. Vicente de Paula Ataíde Júnior, para quem a impossibilidade jurídica de ajuizamento da ação rescisória “(…) não traz qualquer vantagem prática para o sistema. Isto porque os casos de rescindibilidade podem se manifestar também em sede de Juizados Especiais Cíveis. Nada impede, por exemplo, que uma sentença proferida em processo que tramita perante Juizado Especial Cível tenha sido proferida por um juiz que tenha sido corrompido. Da mesma forma, é possível que tal sentença tenha sido prolatada em processo que tenha havido dolo da parte vencedora em detrimento da vencida, ou qualquer outra hipótese prevista no art. 966 do Código de Processo Civil. Ainda, se no processo comum, mais complexo e diversificado em recursos, é possível que a parte só verifique a ocorrência de tal imperfeição após o respectivo trânsito em julgado; com mais razão ainda há de se pressupor que, no âmbito dos Juizados Especiais, tal fenômeno seja mais provável e frequente. Em verdade, não se admitir a ação rescisória nos Juizados Especiais, sob o pretexto de se buscar maior celeridade na prestação jurisdicional, gera situação mais gravosa, ao possibilitar a consolidação de provimentos que, se tivessem sido obtidos em outros procedimentos, dariam ensejo à desconstituição da coisa julgada”. A 2ª Turma Recursal, assim, por maioria, julgou procedente a Ação Rescisória. Na ocasião, ficou vencido o Juiz Federal Leonardo Castanho Mendes, que declarou voto no sentido de não conhecer a Ação Rescisória, porque “por opção do legislador, se entendeu que ela [Rescisória] não era essencial à validade do procedimento, quando em causas questões de pequeno valor”. No julgamento dos Embargos de Declaração, após o voto divergente do Juiz Federal Leonardo Mendes no sentido de reconhecer a incompetência da 2ª Turma para julgar a Ação Rescisória, pois o acórdão rescindendo tinha sido prolatado pela 4ª Turma, por maioria dos julgadores, a 2ª Turma declinou a competência e remeteu os autos para a 4ª Turma. A 4ª Turma Recursal, em 25.09.2019, por sua vez, no julgamento do Agravo Interno, de relatoria da Juíza Federal Ivanise Correa Rodrigues, inadmitiu a Ação Rescisória.

4 A composição da TNU estabelece o equilíbrio de representação entre as 6 (seis) regiões, na medida em que cada Tribunal Regional Federal indicará dois juízes federais na qualidade de membros efetivos e dois como suplentes. A presidência da TNU é exercida pelo Ministro do Superior Tribunal de Justiça investido no cargo de Corregedor-Geral da Justiça Federal, cujas atribuições estão especificadas no art. 7º do RITNU.

5 De acordo com a Resolução 10 de 2007 do STJ o Pedido de Uniformização de Intepretação de Lei (PUIL) será processado e julgado pela Seção competente. Assim, se a questão for de direito público compete à 1ª Seção o seu processamento e julgamento, se se tratar de questão de direito privado o processamento e julgamento do PUIL dar-se-á na 2ª Seção, já se a questão envolver matéria criminal compete à 3ª Seção o processamento e julgamento do PUIL.

6 Aplica-se, por analogia, o que dispõe a Resolução 10 de 2007. Pedimos licença ao leitor para remetê-lo à nota de rodapé acima.

7 É o caso do Estado de São Paulo, em que o art. 2º do Regimento Interno da Turma de Uniformização do Sistema dos Juizados Especiais daquele Estado prevê: “Compete à Turma de Uniformização processar e julgar o pedido de uniformização de interpretação de lei, quando houver divergência entre decisões proferidas por Turmas Recursais do Estado de São Paulo sobre questões de direito material ou processual, bem como responder a consulta, sem efeito suspensivo, formulada por mais de um quinto das Turmas Recursais ou dos juízes singulares a ela submetidos, sobre matéria processual, quando verificada divergência no processamento dos feitos, e apreciar reclamações nas hipóteses previstas pela Resolução STJ/GP n. 3, de 7/04/2016, bem como artigos 988 a 993, do Código de Processo Civil, no que couber”. É também admitido o Incidente de Uniformização no Estado do Rio de Janeiro, em que o art. 33 do Regimento Interno da Turma prevê “Haverá, na Comarca da Capital, 3 (três) turmas de uniformização do Sistema dos Juizados Especiais, sendo uma Turma de Uniformização Cível, uma Turma de Uniformização Fazendária e uma Turma de Uniformização Criminal, com competência para julgamento dos pedidos de uniformização de que trata o art. 18 da Lei nº 12.153/2009, no âmbito de suas competências. Art. 34. As turmas de uniformização serão presididas pelo Desembargador Presidente da COJES e compostas por todos os integrantes das turmas recursais de mesma competência das turmas em que tenha sido verificada a divergência".

8 “Trata-se de Incidente de Uniformização de Jurisprudência interposto por Ana Carolina Martins Acedo, em face de acórdão proferido pela 6ª Turma Recursal do Paraná. A suscitante aponta divergências existentes entre acórdãos proferidos pelas demais Turmas Recursais. Em que pese os argumentos expandidos pela suscitante, o presente incidente não merece conhecimento. Isso porque o Regimento Interno das Turmas Recursais não prevê a possibilidade de interposição do incidente, somente abrangendo as medidas elencadas em seu artigo 28:   Art. 28. As Turmas Recursais contarão com os seguintes procedimentos de uniformização e divulgação de jurisprudência: I. - enunciados; II. - pedidos de julgamento prioritário de matéria; III. - boletim informativo. Além disso, o Regimento Interno do Tribunal de Justiça do Paraná, aplicável subsidiariamente ao sistema dos juizados especiais, restringe o procedimento de uniformização de jurisprudência aos Incidentes de Resolução de Demandas Repetitivas, Incidentes de Assunção de Competência e Incidentes de Arguição de Inconstitucionalidade[1]. Observa-se, assim, que tanto o Regimento Interno das Turmas Recursais do Paraná quanto o Regimento Interno do Tribunal de Justiça do Paraná estão alinhados ao CPC/2015, que não mais prevê a possibilidade de interposição de Incidente de Uniformização de Jurisprudência, como fazia o CPC/1973. Sobre o tema, a doutrina atual ensina[2]: “Não há mais previsão, no CPC, do incidente de uniformização de jurisprudência, previsto no CPC/73. A assunção de competência constitui mecanismo mais eficiente, destinado a dar operatividade ao art. 926, que determina aos tribunais que uniformizem sua jurisprudência e a mantenham estável, íntegra e coerente, em atendimento aos princípios da isonomiae da segurança jurídica.”. Gonçalves, Marcus Vinicius Rios. Direito Processual Civil Esquematizado. 11. ed. – São Paulo:Saraiva Educação, 2020. Nesse sentido também são os precedentes da Turma Recursal Reunida do Paraná: IUJ 0000267-19.2020.8.16.9000, Rel.: Fernanda Karam de Chueiri Sanches; IUJ 0000700-23.2020.8.16.9000 - Rel.: Juiz Marcel Luis Hoffmann; IUJ 0004545-97.2019.8.16.9000 - Rel.: Juiz Alvaro Rodrigues Junior. (…) Isto posto, deixo de conhecer o presente Incidente de Uniformização de Jurisprudência”. (TJPR, Turma Recursal Reunida dos Juizados Especiais, 0000320-58.2024.8.16.9000, rel. Juiz de Direito da Turma Recursal dos Juizados Especiais Aldemar Sternadt, j. 15.2.2024).

9 Cf., por todos, o seguinte acórdão do TJSP: “Reclamação. Acórdão proferido pela Turma de Uniformização do Sistema dos Juizados Especiais do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Alegação de decisão contrária ao entendimento do Superior Tribunal de Justiça em julgamento de Recurso Especial Repetitivo (Temas 970 e 971). Incompetência do Órgão Especial. Impossibilidade de utilização da reclamação como sucedâneo recursal. Precedentes desta corte. Reclamação extinta, sem resolução do mérito, com fundamento no art. 485, VI, do C.P.C”. (TJSP, Reclamação 2205231-58.2021.8.26.0000, Órgão Especial, j. 26.1.2022, rel. Des. Campos Mello, DJe 27.1.2022).

10 É o que tem ocorrido nos casos envolvendo “golpe do motoboy” em que terceiro, sem qualquer relação com a instituição financeira, recebe o cartão do consumidor, após ligação telefônica fazendo se passar por funcionário da referida instituição. Há aplicação equivocada da Súmula 479 do STJ. A Súmula 479 do STJ, editada em 27.6.2012, dispõe que: “As instituições financeiras respondem objetivamente pelos danos gerados por fortuito interno relativo a fraudes e delitos praticados por terceiros no âmbito de operações bancárias”. Entre os 12 (doze) Recursos Especiais que levaram à edição da Súmula 479: 5 (cinco) casos tratavam da abertura de conta corrente por estelionatário, utilizando-se de documentos falsificados da vítima (AgInt no AI 1.235.525/SP; AgInt no AI 1.292.131/SP; AgInt no AREsp 80.075/RJ; REsp 1.197.929/PR e REsp 1.199.782/PR, julgados sob o regime de repetitivos); 2 (dois) casos diziam respeito à saque indevido efetuado por estelionatário na conta corrente da vítima (AgInt no AI 1.345.744/SP; AgInt no AI 1.430.753/RS); 2 (dois) casos versavam sobre fraudes decorrentes de roubo de malotes com talões de cheques durante o transporte (AgInt no AI 1.357.347/DF; REsp 685.662/RJ); 2 (dois) casos de roubo de cofre dentro da agência bancária (REsp 1.045.897/DF; REsp 1.093.617/PE); 1 (um) caso envolvia assalto seguido de morte de funcionário no interior de agência bancária (AgInt no AI 997.929/BA). Os “delitos” e as “fraudes” de que trata a Súmula 479, como se pode inferir, dizem respeito a atos criminosos (roubo, furto, assassinato e falsificação) praticados dentro ou no entorno de agência bancária, sem qualquer possibilidade de a vítima controlar ou interferir. Veja-se acórdãos das Turmas Recursais: “RECURSO INOMINADO CÍVEL. DIREITO DO CONSUMIDOR. GOLPE DO MOTOBOY. Autor alega que passou seu cartão na "maquinha" do motoboy pelo valor de R$ 5,00 , mas posteriormente tomou conhecimento de débito em sua conta bancária de R$ 7.999,99. Sentença que julgou procedente a ação e condenou o banco réu, ora recorrente, a restituir ao requerente o valor mencionado. Razões recursais que não trouxeram nenhum elemento de convicção capaz de abalar os sólidos fundamentos da decisão monocrática. Demonstração segura da ocorrência do "golpe" e da transação que fugia completamente ao perfil do correntista. Falha na segurança interna do banco. Fortuito interno. Súmula 479 do STJ. Culpa da vítima não demonstrada. Culpa exclusiva de terceiro bem afastada, em face da falha na segurança da instituição financeira. Decisão de primeiro grau de jurisdição que deu justa e correta solução à causa e que deve ser mantida por seus próprios fundamentos. Artigo 46 da Lei 9099/1995. RECURSO IMPROVIDO”. (TJSP, Recurso Inominado Cível 0010118-26.2023.8.26.0003, rel. Juiz Jefferson Barbin Torelli - Colégio Recursal,1ª Turma Recursal Cível, j. 15.2.2024, DJe 15.2.2024); “CONSUMIDOR – FRAUDE CARTÃO DE CRÉDITO - INEXIGIBILIDADE e INDENIZAÇÃO – DANOS MATERIAIS E MORAIS - "GOLPE do Presente de Aniversário" e/ou do "DELIVERY" – Falsa solicitação de taxa de entrega de presente da Cacau Show, quando o autor digitou sua senha em uma "maquinha" e o motoboy fugiu com o cartão de crédito do autor, tendo (o terceiro) realizado operações de R$8.000,00 e R$7.999,99, totalizando R$15.999,99 - Boletim de Ocorrência de fls. 41/28 formalizado na mesma data (R$23/1/2023) - Indícios veementes de Estelionato pelo beneficiário (credenciado) - Sentença de Parcial Procedência - Pretensão de reforma pela financeira – Não cabimento - Em que pese a falta de responsabilidade, em tese, da operadora pelos fatos criminosos narrados, inexiste qualquer justificativa razoável para a recusa ao estorno da operação, uma vez que se tratava de cartão de crédito e não de débito, cujos valores em regra são recebidos pelo vendedor no prazo de 30(trinta) dias – Ademais, a questão é recorrente, tanto que objeto do Enunciado n. 13 da Seção de Direito Privado do E. TJSP - Inequívoca, pois, a responsabilidade da instituição financeira em casos de "golpe do motoboy", quando houver falha na prestação dos serviços, da segurança ou desrespeito ao perfil do consumidor – Manifesta discrepância das operações em relação ao perfil do usuário dos serviços - Aplicação das Súmulas nº 297 e 479 do STJ – Atualização desde o desembolso (evento danoso) corretamente fixada, conforme Súmula 54 do STJ, já que a responsabilidade pela fraude é extracontratual - Sentença mantida por seus próprios e jurídicos fundamentos - Recurso a que se nega provimento - Recurso do autor deserto (fl. 453) - Contudo, é certo que encargos acessórios (listados na fl. 402) seguem a inexigibilidade do principal já declarada, sendo incontroverso que o montante controvertido foi creditado em 18/4/2023 (fl. 412), devendo ser ajustado para a mesma data (23/01/2023) ou excluídos os encargos, para o retorno das partes ao estado anterior, limitando a execução condenatória à verba sucumbencial”.  (TJSP, Recurso Inominado Cível 1001566-52.2023.8.26.0004, rel. Juiz Antonio Carlos Santoro Filho - Colégio Recursal, 7ª Turma Recursal Cível, j. 15.2.2024, DJe 15.2.2024).

11 Em regra, a jurisprudência não conhece de Mandado de Segurança contra julgado da Turma Recursal. Confira-se: “MANDADO DE SEGURANÇA – Ação que tramita perante o Juizado Especial Cível – Competência da Turma Recursal - Remessa determinada”. (TJSP, Mandado de Segurança Cível 2040416-10.2022.8.26.0000, 25ª Câmara de Direito Privado, j. 24.3.2022, rel. Des. Almeida Sampaio, DJe 24.3.2022). Veja-se, a seguir, caso excepcional em que o TJSP concedeu ordem no Mandado de Segurança 2205336-98.2022.8.26.0000, de relatoria do Des. Giffoni Ferreira, julgado em 31.1.2023, para cassar acórdão da Turma Recursal que se tinha declarado competente para julgar a ação, ainda que se exigisse a produção de prova pericial: “MANDADO DE SEGURANÇA - COMPETÊNCIA DE JUIZADO ESPECIAL - MATÉRIA DE ALTA INDAGAÇÃO - JUSTIÇA COMUM COM MELHOR APRECIAR A QUESTÃO – ORDEM CONCEDIDA”. (TJSP, Mandado de Segurança Cível, rel. Des. Giffoni Ferreira, 2ª Câmara de Direito Privado, j. 31.1.2023, DJe 1º.2.2023).

12 Da ementa, extrai-se o seguinte: “Constitucional e Processual Civil. 2. Execução (atual fase de cumprimento de sentença). Inexigibilidade do título executivo judicial (artigo 741, parágrafo único do CPC/73 e art. 535, § 5º, do CPC/15). Aplicabilidade no âmbito dos juizados especiais. 3.Coisa julgada (artigo 5º, XXXVI, da Constituição Federal). Entendimento do Supremo Tribunal Federal em sentido contrário ao comando transitado em julgado. 4. Inexigibilidade do título executivo transitado em julgado. Precedentes. ADI 2.418, Rel. Min. Teori Zavascki, Pleno, DJe 17.11.2016 e RE 611.503, Redator p/ acórdão Min. Edson Fachin, DJe 10.3.2019 (Tema 360 da sistemática da repercussão geral). Extensão do entendimento do STF aos casos com trânsito em julgado anteriores, que estejam pendentes de cumprimento. 5. Admitida a impugnação pela inexigibilidade do título judicial, transitado em julgado, em contrariedade ao posicionamento do Supremo Tribunal Federal, seja no Juizado Especial Cível da Justiça Estadual ou Federal, nada obstante o disposto no art. 59 da Lei 9.099/1995. 6. Fixação das teses, as quais demandam análise conjunta: ‘1) é possível aplicar o artigo 741, parágrafo único, do CPC/73, atual art. 535, § 5º, do CPC/2015, aos feitos submetidos ao procedimento sumaríssimo, desde que o trânsito em julgado da fase de conhecimento seja posterior a 27.8.2001; 2) é admissível a invocação como fundamento da inexigibilidade de ser o título judicial fundado em aplicação ou interpretação tida como incompatível com a Constituição quando houver pronunciamento jurisdicional, contrário ao decidido pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, seja no controle difuso, seja no controle concentrado de constitucionalidade; 3) o art. 59 da Lei 9.099/1995 não impede a desconstituição da coisa julgada quando o título executivo judicial se amparar em contrariedade à interpretação ou sentido da norma conferida pela Suprema Corte, anterior ou posterior ao trânsito em julgado, admitindo, respectivamente, o manejo (i) de impugnação ao cumprimento de sentença ou (ii) de simples petição, a ser apresentada em prazo equivalente ao da ação rescisória’. 7. Provimento, em parte, do recurso extraordinário”. (STF, RE 586068, Tribunal Pleno, j. 9.11.2023, rel. Min. Rosa Weber, rel. p/ acórdão Min. Gilmar Mendes, DJe 31.1.2024).

13 Já há acórdão aplicando esse novo entendimento, passando a admitir que a impugnação no cumprimento de sentença tenha força rescisória: “Agravo de instrumento. Rejeição de impugnação a cumprimento de sentença. Alegação de desconformidade do título executivo com precedente obrigatório em matéria constitucional. Exigência de propositura de ação rescisória que é incompatível com Sistema dos Juizados Especiais. Vedação expressa no art. 59 da Lei nº 9.099/1995. Precedente recente do C. STF admitindo o manejo de impugnação ao cumprimento de sentença, ou de simples petição, a ser apresentada em prazo equivalente ao da ação rescisória. Policial Militar inativo. Contribuição Previdenciária. Tema 1177. Coisa julgada anterior à modulação dos efeitos que considerou válidos os recolhimentos da contribuição de militares efetuados nos moldes da lei 13.954/2019, até 1º de janeiro de 2023. Cumprimento de sentença iniciado com o objetivo único de recebimento das diferenças anteriores à referida data. Acolhimento da impugnação que se impõe. Inexigibilidade da obrigação contida no título executivo, porquanto em desconformidade com precedente vinculante em matéria constitucional. Agravo provido”. (TJSP, Agravo de Instrumento 3000025-35.2022.8.26.9008, rel. Des. Melina de Medeiros Ros, Primeira Turma Civel e Criminal, j. 14.7.2023, DJe 14.7.2023) (g.n.).

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Colunistas

Maria Lúcia Lins Conceição é doutora e mestre em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Membro do Conselho de Apoio e Pesquisa da Revista de Processo, Thomson Reuters – Revista dos Tribunais. Advogada sócia-fundadora do escritório Arruda Alvim, Aragão, Lins & Sato Advogados.

Teresa Arruda Alvim é livre-docente, doutora e mestre em Direito pela PUC-SP. Professora Associada nos cursos de graduação, especialização, mestrado e doutorado da mesma instituição. Professora Visitante na Universidade de Cambridge – Inglaterra. Professora Visitante na Universidade de Lisboa. Membro nato do Conselho do IBDP. Honorary Executive Secretary General da International Association of Procedural Law. Membro Honorário da Associazione italiana fra gli studiosi del processo civile. Membro da Accademia delle Scienze dell’Istituto di Bologna, do Instituto Ibero-americano de Direito Processual, da International Association of Procedural Law, do Instituto Português de Processo Civil. Membro do Conselho de Assessores Internacionais do Instituto de Derecho Procesal y Practica Forense de la Asociación Argentina de Justicia Constitucional. Coordenadora da Revista de Processo – RePro. Relatora da Comissão de Juristas, designada pelo Senado Federal em 2009, que redigiu o Anteprojeto de Código de Processo Civil. Relatora do Anteprojeto de Lei de Ações de Tutela de Direitos Coletivos e Difusos, elaborado por Comissão nomeada pelo Conselho Nacional de Justiça, em 2019, (PL 4778/20). Advogada.