No dia 4/10/23, realizou-se, no STJ, audiência pública para discussão do tema repetitivo 1.198, que visa a decidir se o juiz pode, ao identificar indícios da prática de litigância predatória, “exigir que a parte autora emende a petição inicial com apresentação de documentos capazes de lastrear minimamente as pretensões deduzidas em juízo, como procuração atualizada, declaração de pobreza e de residência, cópias do contrato e dos extratos bancários.”
A questão que se põe é a seguinte: pode o juiz, no caso de litigância predatória, cumprindo o art. 10 do CPC (isto é, permitindo à parte reparar o defeito da petição inicial), extinguir o processo sem resolução de mérito, caso o defeito não seja corrigido no prazo legal?
Antes de responder a essa pergunta, precisa-se entender exatamente o que significa litigância predatória. De acordo com o dicionário Oxford, predador é aquele que “destrói o outro violentamente”. Logo, litigância predatória, em um primeiro sentido, é aquela voltada a destruir a parte contrária. Ela é articulada com um objetivo obscuro, invisível na superfície: causar dano ao réu. O autor não quer simplesmente sair vencedor ou resolver um problema, ele pretende prejudicar a parte contrária, causando-lhe um mal global. Pode ser realizada por meio de uma demanda individual única ou por meio de várias ações, distribuídas coordenadamente.
Foi o que aconteceu com o litígio conhecido como Birther litigation. Em 2008, nos Estados Unidos, foram propostas centenas de demandas individuais impugnando a candidatura de Barack Obama, sob o fundamento de que, por não ser americano nato, o democrata não preenchia requisito para concorrer à presidência. A primeira ação foi julgada improcedente, mas, ainda assim, dezenas de outras foram propostas, afirmando-se, em síntese, que o candidato faria parte de uma conspiração para fraudar o povo americano.
Nesse caso, identificou-se que havia um ponto de contato entre as ações: a advogada das partes, pessoa responsável pela articulação do ajuizamento das ações. A profissional foi multada em US$ 20 mil, diante do abuso praticado. Nas palavras de Clay D. Land, juiz distrital responsável pelo julgamento, quando um advogado ajuíza uma ação ou pratica ato processual sem base jurídica, quando age em prol de uma agenda política particular e quando ataca pessoalmente as partes opostas e desrespeita a integridade do Judiciário, abusa diretamente das suas prerrogativas profissionais. No caso, entendeu-se que a advogada tinha o dever de saber que as ações eram abusivas e, ao ajuizá-las, teria violado diretamente a Rule 11.1 A solução não poderia ser outra, afinal, naquele caso, foi possível demonstrar que as partes formais eram meros instrumentos para as violações ao direito perpetradas pela advogada. E mesmo que assim não fosse, como bem decidiu a corte norte-americana, em casos de litigância predatória, em que a abusividade é manifesta, é dever do advogado constatar a ilegalidade das pretensões dos clientes, tentando impedir, ou, ao menos, não participando do ato ilícito.
Há, ainda, um segundo sentido para a litigância predatória: situações em que não se pretende fazer mal ao réu, mas, enriquecer à custa dele de uma maneira não legítima. Nesse caso, não se pretende destruir a vítima, mas obter uma vantagem ilegítima, que não seria considerada devida, caso não houvesse o abuso de direito. É desse tipo de ação que o tema 1.198 trata.
E quem seria o predador? O consumidor, muitas vezes idoso e hipervulnerável, que busca ver garantido o seu acesso à justiça? Certamente não. Ainda que, individualmente, alguns consumidores possam ajuizar demandas abusivas, a litigância predatória de que se fala, a exemplo da birther litigation, é praticada por advogados que, acreditando que instituições financeiras (ou grandes empresas, sem geral) seriam suas “galinhas dos ovos de ouro”, ajuízam centenas, milhares de ações consumeristas, sob a “fabricada” e falsa imagem de que estariam servindo à sua função constitucional.
Isso, porém, não corresponde à prática. Em casos de litigância predatória, muitas vezes, os consumidores mencionados na inicial sequer sabem da existência dos processos. Sequer contrataram os advogados e, principalmente, nem mesmo receberão desses advogados as indenizações que venham a ter arbitradas em seu favor. Há situações de consumidores falecidos, apresentação de procurações com assinaturas falsificadas e duplicidades de ações: tudo articulado e arquitetado por alguns advogados que, mais do que abusar das ações individuais ajuizadas em nome dos seus pseudoclientes, abusam das próprias prerrogativas da nossa profissão.
Nesse caso, o que o advogado faz é utilizar da parte (e dos seus interesses, muitas vezes, legítimos) como um meio para a consecução de um objetivo ilícito. Ele não serve de “intérprete” da parte, mas, apenas, manipula o direito desta, em manifesto abuso, com o objetivo de beneficiar a si próprio.
Foi o que aconteceu, em Pernambuco, com as milhares de ações propostas por consumidores analfabetos, em face de instituições financeiras. Identificou-se, em sete comarcas do Estado, a ocorrência de captação ilegal de clientes, bem como “irregularidades nas procurações, apropriação indébita dos valores recebidos e uso de teses jurídicas fabricadas”, por um único advogado que, sozinho, protocolou mais de dez mil ações, em menos de três anos.2 Com a finalidade de se esquivar da ordem de suspensão de ações envolvendo validade de contrato celebrado por consumidor analfabeto, determinada pelo Tribunal, em razão da instauração de IRDR, referido advogado reproduziu as ações suspensas em novas demandas, modificando a causa de pedir de anulação dos contratos, por vício formal, para “irregularidade na contratação das cestas de serviços”.
A solução encontrada foi a extinção em massa das ações, sem condenação dos autores nas penas de litigância de má-fé, bem como: i) a expedição de ofícios à OAB e ao MP, com o fim de apurar a conduta do advogado; e ii) a vedação ao ajuizamento de novas ações pelas partes, ressalvada a correção do vício:
No caso dos autos, após detida análise, percebe-se uma visível captação ilícita de clientela, falta de consentimento livre e esclarecido do suposto cliente no ajuizamento das ações, utilização indevida do direito de ação, abuso do direito de litigar, irregularidade na confecção dos instrumentos procuratórios, falta de litígio real entre as partes, indícios de apropriação indébita de transações com a parte ré, não restando qualquer incerteza de que as ações nesta comarca carecem de pressupostos processuais mínimos, dentre eles a adequada representação processual, a vontade manifesta de litigar, o interesse processual, a individualização do caso concreto, a higidez da documentação e a devida observância da boa-fé processual.
O Magistrado tem o poder-dever de prevenir ou reprimir qualquer ato contrário à dignidade da justiça e indeferir postulações meramente protelatórias (art. 139, III do CPC/15), as partes e seus procuradores devem observar seus deveres (art. 77, II do CPC/15) e todos devem atuar na prevenção da litigância de má-fé (art. 80, V do CPC/2015). ANTE O EXPOSTO, EXTINGO, sem resolução de mérito a presente ação, com base no art. 485, IV e VI do CPC. Oficie-se à OAB e ao Ministério Público Estadual, encaminhando-se cópia desta sentença e dos documentos anexos. Encaminhe-se cópia da sentença e dos documentos anexos ao NUMOPEDE; Considero inviável desde logo a repropositura nos termos acima, na forma do art. 486, § 1º, do Código de Processo Civil, que dispõe: "No caso de extinção em razão de litispendência e nos casos dos incisos I, IV, VI e VII do art. 485, a propositura da nova ação depende da correção do vício que levou à sentença sem resolução do mérito.
Tal solução, embora apresente uma resposta à necessidade de se garantir o bom funcionamento da Justiça, parece ter confundido as figuras das partes e do advogado. Os fundamentos adotados reconhecem que quem violou a lei foi o representante, sem qualquer interferência dos consumidores, de forma que a extinção do processo foi consequência jurídica aplicada contra quem não violou a boa-fé. Ela seria correta apenas se tivesse havido coordenação dos atos entre partes e advogado, ou seja, se o uso abusivo do direito de ação se desse (também) no interesse do autor.
Melhor solução parece ser aquela definida no IRDR do TJ/MS (que deu origem ao recurso especial objeto de debate) e que está sendo deliberado no Tema 1.198: autorizar ao juiz que, diante do indício da prática de litigância predatória, realize uma análise apurada do preenchimento das condições de admissibilidade da petição inicial, determinando, conforme o caso, a juntada de documentos básicos atualizados, como documentos pessoais do autor, instrumento de mandato e comprovante de residência. Não ocorrendo a juntada no prazo legal, o processo deverá ser extinto. A medida, além de conter a litigância predatória, protege o consumidor.
Isso, inclusive, já pode acontecer em toda e qualquer ação. Afinal, compete ao juiz garantir e zelar pela regularidade do feito, viabilizando a entrega da prestação jurisdicional célere e efetiva. E é importante que seja assim, mesmo porque a litigância predatória macula e envergonha a advocacia e a imagem dos advogados, além de gerar inúmeros prejuízos (que muitas vezes não são sequer descobertos) aos indivíduos hipossuficientes que são ou têm seus dados manipulados.
A proteção da prática da advocacia e a garantia do acesso à justiça, obviamente, devem ser preservadas. Uma forma de proteger a prática da advocacia, o prestigio dos profissionais que representam seus clientes, a confiança que estes devem ter naqueles que os representam e a própria garantia de acesso à justiça é justamente vedar abusos que causam prejuízos não apenas às grandes empresas (em regra, as demandadas na litigância predatória), mas à própria prestação da Justiça, profundamente comprometida pelos atos abusivos de determinados sujeitos, que se valem daquelas garantias constitucionais como escudo para a prática de ilícitos.
____________
1 Rhoads vs. MacDonald. 670 F. Supp. 2d 1363 (M.D. Ga. 2009) Decided Oct 13, 2009.
2 Consta na sentença prolatada nos autos do processo nº 0000298-75.2021.8.17.2210, da 2ª Vara Cível da Comarca de Araripina, em 23.2.2022: “O referido advogado, sozinho, ajuizou a média de 413 (quatrocentos e treze) processos por mês. A título de comparação, a Trigésima Segunda Vara Cível da Capital - SEÇÃO A, possui um acervo de 371 (trezentos e setenta e um) processos. Desta forma, o advogado, por mês, ajuíza mais processos que uma unidade judiciária possui como acervo total. Para indicar o prejuízo de tal ajuizamento em massa, verifica-se que o advogado ajuizou 4.956 (quatro mil, novecentos e cinquenta e seis) ações em um ano. Em números fornecidos pela COPLAN, no ano de 2020, cada magistrado pernambucano proferiu 868 sentenças no ano. Desta forma, seria necessária a nomeação de 06 (seis) Juízes apenas para decidirem as causas do referido advogado. A título de exemplo, a Vara Única de Ipubi possuía, em 2019, 1.673 (mil, seiscentos e setenta e três) processos em tramitação. Atualmente, após o ajuizamento temerário e em massa promovido pelo referido causídico, a unidade encontra-se com 4.321 (quatro mil, trezentos e vinte e um) processos em tramitação, um aumento de quase 300%. O referido advogado ajuizou 2.600 (duas mil e seiscentas) ações somente no Município de Ipubi, município com a população de 31 mil habitantes. Desta forma, tal ajuizamento em massa é surpreendente e possui indícios de ilicitude, já que a comarca é considerada de pequeno porte, com uma população adulta (acima de 18 anos) abaixo de 20.000 habitantes. Atente-se para o fato de que a Comarca de Ipubi possui vários outros advogados atuantes, além de Defensor Público, o que denota ser ao menos curioso o fato de tão alta parcela de jurisdicionados serem patrocinados exclusivamente por este advogado, o qual, inclusive, sequer possuí escritório profissional na Comarca, sendo sediado na cidade de Ouricuri, cidade que fica a 33 km de distância.” A sentença transitou em julgado, sem que se tenha interposto recurso.