Decisões judiciais podem ser vistas como normas jurídicas resultantes do processo de concretização do direito. Esse processo compreende a interpretação de princípios e regras e considera a dogmática jurídica
No âmbito dos tribunais superiores, estas normas, muito frequentemente, irradiam efeitos jurídicos para toda a sociedade. Isso ocorre, por exemplo, no controle concentrado de constitucionalidade e em relação aos precedentes vinculantes. São normas dotadas de caráter geral, porque não se destinam apenas às partes envolvidas na demanda, e, em certa medida, abstrato (não inteiramente, já que emanam de um caso concreto e estão a este caso ligadas), pois servem de orientação (ou pauta de conduta) para a solução de outros casos enquadráveis na mesma moldura fática.
Justamente em razão desses efeitos gerais e razoavelmente abstratos (ou melhor, generalizáveis) é que, em situações excepcionais, deve haver "manipulação ou calibração da forma como esses efeitos se operarão no mundo empírico"1. Isso é feito por meio da modulação, sob o viés temporal.
Modulação é regra jurídica cujo balizamento é conferido por princípios, especialmente o da segurança jurídica.
A segurança jurídica tem relação direta com a própria existência do direito. Nas mais variadas concepções doutrinárias sobre o conceito de sistema jurídico, o princípio da segurança jurídica costuma ser tratado como vetor axiológico para a interpretação da Constituição e das leis2.
Luis Recasens Siches destaca a relação entre segurança e o sistema jurídico, afirmando que "sem segurança não há Direito, nem bom, nem mau, nem de nenhuma espécie"3, porque "segurança é o valor fundamental do jurídico, sem o qual não pode haver Direito".4
Direito seguro é direito confiável. A sociedade precisa confiar que os atos praticados com base no sistema jurídico de hoje não sejam ameaçados por eventuais mudanças futuras. Ou seja, às pessoas deve ser garantido o direito de "prever, em alto grau, as consequências jurídicas dos comportamentos que adotarem"5.
Contudo, surge a questão: nas decisões sobre matéria tributária, quem são os destinatários do princípio da segurança jurídica quando se trata da aplicação da regra de modulação? Seriam apenas os particulares? Ou o Estado também se beneficia desse princípio, possibilitando a aplicação da modulação em seu favor?
Uma das maiores contribuições do direito à sociedade é a resolução de conflitos. E, para que a sociedade confie no direito, é fundamental que o sistema jurídico apresente congruência, refletida em decisões que estejam alinhadas à Constituição, às leis e à jurisprudência.
O Estado, como entidade central do sistema político, é parte integrante da sociedade. Assim como os bancos, as universidades e os hospitais, que, no âmbito do sistema social, representam os sistemas econômico, educacional e de saúde, respectivamente.
O Estado não opera isoladamente. Ele é constantemente influenciado por decisões judiciais, que podem validar ou refutar suas ações. Nesse contexto, para que as políticas públicas possam ser implementadas, é fundamental que haja previsibilidade. O próprio sistema jurídico impõe o agir programado do Estado, estabelecendo, por intermédio do direito financeiro, regras e princípios ligados à gestão do orçamento público (por exemplo, o princípio do equilíbrio orçamentário).
Portanto, o princípio da segurança jurídica também se aplica em favor do Estado para fins de modulação, mas não com a mesma medida da segurança que o direito deve proporcionar aos particulares. Afinal, como afirmou Marcelo Neves, "os princípios variam conforme a esfera de comunicação em que se aplicam"6, e com relação à segurança jurídica não é diferente. Por se tratar de norma principiológica, sua compreensão deve partir da análise das diferentes capacidades de reação frente às comunicações produzidas pelo sistema jurídico.
Com efeito, os particulares estão mais expostos a danos que o Estado, pois enquanto a eles são atribuídos direitos e deveres, às organizações do sistema político são conferidos poderes-deveres.
Isso quer dizer que quando os tribunais mudam de posição, e a mudança ocorre em sentido contrário aos interesses da Fazenda Pública, o Estado poderá compensar os “prejuízos” financeiros por meio do exercício da competência legislativa voltada a questões orçamentárias. Já o particular não tem mecanismos de compensação. Qualquer prejuízo será suportado por ele, e ninguém mais.
Por isso é que se pode ter a impressão de que a modulação seria um instituto pensado para favorecer exclusivamente o particular. Mas não é nem pode ser exatamente assim.
Dado que a segurança jurídica é uma premissa sob a qual se estabelecem regras para proteger tanto o Estado quanto os particulares, a modulação pode ser aplicada em favor do Estado, mas partindo de outros critérios. Em outras palavras: se as medidas da segurança jurídica são diferentes, os critérios para a modulação também diferem.
Quando as expectativas normativas mudam por obra dos tribunais, ao Estado deve ser conferido prazo para cumprimento das etapas do processo legislativo voltado ao estabelecimento do equilíbrio orçamentário. Imagine-se, por exemplo, a decisão sobre ser um tributo, que vinha sendo cobrado há tempos do particular, inconstitucional. A modulação, neste caso, deve ocorrer por meio do estabelecimento de regra de transição, a fim de se conferir “tempo” para que o sistema político (no qual está inserido o Estado) possa produzir leis capazes de impedir o desequilíbrio nas finanças públicas, mantendo-se, sempre, os efeitos ex tunc da decisão contrária aos interesses fazendários, para que não se prejudique o direito dos particulares à restituição dos valores que foram pagos a título do tributo ilegal/inconstitucional.
Por outro lado, se a mudança causar prejuízos ao particular – como no cenário inverso do exemplo anterior, em que um tributo que era considerado inexigível passa a ser considerado devido, porque tido como constitucional –, deve haver modulação para atribuição de efeitos ex nunc à nova orientação, "sob pena de se comprometer a segurança jurídica, destruindo-se a confiança dos jurisdicionados no Poder Judiciário"7. Percebe-se, com clareza, nesse exemplo, que a modulação aqui se faz de uma maneira completamente diferente, de molde a proteger alguém que não tem outras maneiras de criar segurança jurídica para si mesmo, a não ser a possibilidade de haver decisão do poder judiciário no sentido de que a nova regra não o atingirá.
Evidentemente, trata-se de instituto extremamente novo, que está sendo compreendido, paulatinamente, por juristas, advogados e magistrados. Este sucinto artigo pretende ser uma contribuição, já que se constitui em elemento apto a gerar reflexão e discussão na comunidade jurídica. Relevante é que se tenha sempre em mente a sua única finalidade: preservar a segurança jurídica, de molde a que nenhum ente da sociedade seja prejudicado por haver uma mudança de regras do jogo no meio da partida.
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1 ALVIM, Teresa Arruda. Modulação na alteração da jurisprudência firme ou de precedentes vinculantes. 2.ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p.13.
2 Conforme Roque Antonio Carrazza, "a segurança jurídica é ínsita à própria ideia de Direito", que revela "uma das manifestações do nosso Estado Democrático de Direito" porque "visa a proteger e preservar as justas expectativas das pessoas", impedindo, assim, a "adoção de medidas legislativas, administrativas ou judiciais capazes de frustrar-lhes a confiança que depositam no Poder Público (CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 32.ed., rev., ampl. e atual. São Paulo: Malheiros, 2019, p.344).
3 No original: "Sin seguridad no hay Derecho, ni bueno, ni malo, ni de ninguna clase". (SICHES, Luis Recasens. Tratado General de Filosofía del Derecho. 19.ed. México: Editorial Porrúa, 2008, p.224).
4 No original: "seguridad es el valor fundamental de lo jurídico, sin el cual no puede haber Derecho". (SICHES, Luis Recasens. Tratado General de Filosofía del Derecho. 19.ed. México: Editorial Porrúa, 2008, p.224).
5 CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 32.ed., rev., ampl. e atual. São Paulo: Malheiros, 2019, p.344.
6 E prossegue o autor: "o direito geral de liberdade, o direito geral de igualdade, a dignidade humana, , assim como também a igualdade e a liberdade econômicas, o princípio constitucional da concorrência, a liberdade religiosa, o direito à educação podem sofrer leituras as mais diversas a partir da esfera social em que o problema constitucional venha a surgir. (...) a compreensão do direito geral de liberdade a partir do sistema econômico pode colidir com a interpretação desse direito na esfera religiosa ou familiar. Da mesma maneira, a visão familiar, educacional ou religiosa do princípio da igualdade pode opor-se à concepção econômica ou política do mesmo princípio. Também a autocompreensão econômica do princípio da livre iniciativa pode chocar-se com a percepção desse princípio no sistema político, educacional, científico ou religioso. Por fim, a compreensão do princípio da dignidade humana varia conforme as perspectivas de cada sistema social". (NEVES, Marcelo. Entre Hidra e Hércules: princípios e regras constitucionais como diferença paradoxal do sistema jurídico. 3.ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2019, p.162-164).
7 E prossegue o autor: "Temos para nós que o Tribunal Superior (STF, STJ. TST e TSE) ao alterar sua jurisprudência consolidada, mais que a faculdade, tem o inafastável dever de limitar os efeitos temporais da nova orientação, preservando fatos ou situações ocorridos sob a égide da orientação anterior, bastando, para tanto, estejam presentes 'razões de segurança jurídica ou excepcional interesse social' (art. 27, in fine, da Lei 9.868/1999), sopesáveis caso a caso. Faz coro com o art. 27 da lei 9.868/1999 o art. 24 da LINDB, que veda, em síntese, que as modificações de critérios jurídicos estendam seus efeitos sobre situações já consolidadas, de modo a prejudicar as pessoas que nelas se encontram". (CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 32.ed., rev., ampl. e atual. São Paulo: Malheiros, 2019, p.292-293).