Como a recentíssima alteração de posicionamento nos faz refletir sobre a importância de avaliar os riscos da estratégia processual?
Dia desses, numa roda de conversa, foi dito: “Médico, contador e advogado: algum desses profissionais, um dia, salvará sua vida”. É claro que o ditado não deve ser compreendido de forma literal. Isso, porém, nos leva à reflexão: a advocacia, assim como tantas outras profissões seculares, conduz a uma grande responsabilidade.
O advogado é responsável por informar e defender os interesses daqueles que lhes confiam seus direitos personalíssimos, suas empresas, seu patrimônio etc. Nos Tribunais, uma boa orientação jurídica consiste não apenas em definir a estratégia processual que apresenta maiores chances de êxito, mas, também, em alertar o cliente acerca dos riscos envolvidos.
Trata-se do dever profissional de informação1 disposto no artigo 9º do Código de Ética e Disciplina da OAB2, segundo o qual é dever do advogado “informar o cliente, de forma clara e inequívoca, quanto a eventuais riscos da sua pretensão, e das consequências que poderão advir da demanda”.
A tarefa nem sempre é simples. Afinal, o exame cuidadoso dos riscos exige o contínuo estudo e atualização, sobretudo do entendimento jurisprudencial que, não raro, altera perspectivas antes consideradas sedimentadas.
É o caso, por exemplo, da condenação em honorários no Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica (IDPJ).
Sabe-se que a todos é conferido o direito de “postular em juízo. Mas o jurisdicionado há de atuar sabendo que arcará com as despesas processuais na medida em que não tenha razão quanto à posição que defende no processo”3. Trata-se do princípio da causalidade: aquele que dá causa à propositura da demanda, responde pelas despesas ocasionadas pelo processo. Esta é a regra.
A fixação de honorários de sucumbência em incidente processual (dentre eles, o IDPJ), entretanto, não é a regra, mas a exceção.
O IDPJ consiste em incidente que objetiva discutir se é, ou não, caso da pessoa física (ou da pessoa jurídica, em caso de desconsideração inversa) responder com seu patrimônio próprio pelas dívidas da empresa devedora (ou do sócio devedor, na hipótese inversa).
A desconsideração, em si mesma, não é instituto novo. Contudo, a reforma da CPC, em 2015, dispôs sobre o procedimento a ser adotado para que o juiz decida a seu respeito, de modo a prestigiar o prévio contraditório. A lei passou a admitir sua instrumentalização pela via incidental, em apenso ao processo principal. A partir daí, surgiu a discussão acerca da (im)possibilidade de condenação em honorários à parte sucumbente no IDPJ.
Importante frisar que o debate mais acirrado diz respeito ao cabimento de condenação em honorários na hipótese de improcedência do incidente. Isso porque, já há entendimento pacífico sobre a viabilidade de fixação de verba sucumbencial nos “casos em que os incidentes são capazes de extinguir ou alterar substancialmente o próprio processo principal”4.
A fixação de honorários em caso de improcedência do IDPJ foi decidida em junho de 2020 pelo STJ, no bojo do Recurso Especial nº 1.845.536 – SC. Na hipótese concreta, a pessoa jurídica executada havia sido encerrada irregularmente e sem deixar bens passíveis de penhora, o que levou o exequente a instaurar o incidente contra seus sócios. O STJ, por entender que os sócios, mesmo vencedores do incidente, deram causa ao pedido de desconsideração, porque deixaram de encerrar a atividade empresária de forma regular, afastou a condenação em honorários, mesmo diante da improcedência do IDPJ.
Na ocasião, a relatora Min. Nancy Andrighi destacou que o princípio da sucumbência não se contrapõe ao princípio da causalidade, sendo necessária a “articulação”5 de ambos, para que se alcance a “razão de justiça distributiva”.
O Min. Marco Buzzi também já teve a oportunidade de enfrentar a matéria. Há poucos meses (em abril de 2023), ao julgar o Recurso Especial nº 2.054.280 – SP, concluiu pelo descabimento de condenação em honorários. Na origem, o incidente havia sido parcialmente provido: foi afastada a responsabilização das demais empresas do Grupo devedor e, em contrapartida, foram incluídos os sócios da executada na execução de título extrajudicial que tramitava em apenso.
A fundamentação adotada pelo Min. Relator, no entanto, fixou-se na ausência de previsão normativa para condenação sucumbencial em incidente (art. 85, §1º do Código de Processo Civil).
O Ministro destacou que o STJ “possui entendimento consolidado no sentido de que, por ausência de previsão normativa, não cabe condenação em ônus sucumbenciais em incidentes processuais, tais como o incidente de desconsideração da personalidade jurídica”6.
Ainda que não se tratasse de precedentes vinculantes, esse era o contexto jurisprudencial até abril de 2023, com base no qual o advogado, ao traçar sua estratégia processual em relação à instauração do incidente, tinha razões para acreditar que não haveria risco de condenação ao pagamento de honorários de sucumbência7.
A nosso ver, a ausência de condenação em honorários, nos casos de improcedência do IDPJ, induz ao encorajamento da instauração desarrazoada do incidente, que deve ser medida excepcional.
Isso, porém, não é suficiente para conduzir imediatamente à conclusão de que deve haver a condenação sucumbencial. É imprescindível que, tal como flagrado pela Min. Nancy, a situação seja examinada de forma a articular a sucumbência e a causalidade. Afinal, “é justo que quem tornou necessário o processo suporte-lhe o encargo econômico”8.
Seja como for, o contexto jurisprudencial indicava que a improcedência do IDPJ não conduziria a parte perdedora à condenação em verba honorária.
Ocorre que, no recentíssimo julgamento do Recurso Especial nº 1.925.959 - SP9, a Terceira Turma do STJ, por maioria de votos, concluiu pela possibilidade de fixação de honorários de sucumbência em caso de improcedência do IDPJ. Originariamente, era relator do recurso, o saudoso Min. Paulo de Tarso Sanseverino, substituído pelo Min. Villas Bôas Cueva. Foi vencida, a Min. Nancy Andrighi.
O acórdão recém-publicado restou assim ementado:
RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. NATUREZA JURÍDICA DE DEMANDA INCIDENTAL. LITIGIOSIDADE. EXISTÊNCIA. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS DE SUCUMBÊNCIA. IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO. FIXAÇÃO. CABIMENTO. 1. O fator determinante para a condenação ao pagamento de honorários advocatícios não pode ser estabelecido a partir de critérios meramente procedimentais, devendo ser observado o êxito obtido pelo advogado mediante o trabalho desenvolvido. 2. O CPC de 2015 superou o dogma da unicidade de julgamento, prevendo expressamente as decisões de resolução parcial do mérito, sendo consequência natural a fixação de honorários de sucumbência. 3. Apesar da denominação utilizada pelo legislador, o procedimento de desconsideração da personalidade jurídico tem natureza jurídica de demanda incidental, com partes, causa de pedir e pedido. 4. O indeferimento do pedido de desconsideração da personalidade jurídica, tendo como resultado a não inclusão do sócio (ou da empresa) no polo passivo da lide, dá ensejo à fixação de verba honorária em favor do advogado de quem foi indevidamente chamado a litigar em juízo. 5. Recurso especial conhecido e não provido.
O fundamento central do acórdão consiste em reconhecer que a instauração do incidente objetiva a formação de um litisconsórcio (para incluir terceiros no polo passivo), razão pela qual, segundo o STJ, “deve ser aplicado o entendimento de que a extinção parcial do processo em virtude da exclusão de litisconsorte passivo dá ensejo à condenação do autor ao pagamento de honorários.”10
Em sessão de julgamento, o Min. Moura Ribeiro pontuou que a condenação em honorários restaria restrita aos casos de improcedência do IDPJ. Ressalvou que, nesse caso, a decisão interlocutória “teria natureza de sentença” (ou de interlocutória parcial de mérito), pois extingue a relação das partes convocadas a integrar a lide. Segundo o que se afirmou durante a sessão, em caso de sucesso, os advogados que instauraram o IDPJ já fariam jus a honorários no incidente, porque sua remuneração será (ou já terá sido) fixada por ocasião da ação principal. A situação seria diferente para aqueles que são incluídos, e precisam contratar advogado especificamente para sua defesa no incidente.
Nesse ponto, o acórdão11 parece deixar a critério do juízo o exame, caso a caso, de haver propriamente sucumbência, de molde a ensejar honorários, na hipótese de provimento do incidente.
Seja como for, não se pode negar que o julgamento do Recurso Especial nº 1.925.959 – SP deve ser fator a ser levado em consideração na análise da estratégia acerca da instauração do IDPJ.
Espera-se que o STJ uniformize seu entendimento a respeito da questão e (re)estabeleça a segurança jurídica. Até lá, algumas dúvidas ficarão no ar: pleitear a desconsideração da personalidade na petição inicial será a estratégia menos onerosa? Os critérios para a fixação de honorários em caso de improcedência do IDPJ serão os mesmos da ação principal? E no caso de os advogados dos terceiros, que foram citados no IDPJ, serem os mesmos do devedor principal, farão jus a honorários pela improcedência do incidente, ainda que continuem atuando no processo principal?
As respostas virão com o tempo. Enquanto isso não ocorre, cabe aos advogados o dever de alertar seus clientes acerca do risco de virem a ser condenados a pagar honorários em IDPJ. Afinal, a orientação jurídica acerca dos riscos econômicos do processo, em regra, é determinante para definição da estratégia processual.
Na fixação da estratégia, é necessário que se leve em conta que a desconsideração da personalidade jurídica tem caráter excepcional (porque a regra é a autonomia patrimonial entre a pessoa jurídica e seus sócios), devendo ser manejada com ponderação, quando se vislumbra efetivamente a situação de desvio de finalidade ou confusão patrimonial.
Seja qual for o cenário, o operador do direito deve estar sempre atento às alterações legislativas, doutrinárias e, é claro, jurisprudenciais – que, diga-se de passagem, são mais frequentes do que gostaríamos.
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1 TUCCI, José Rogério Cruz e. O advogado e o dever profissional de informação. Acesso em 17/09/2023.
2 “Art. 9º O advogado deve informar o cliente, de modo claro e inequívoco, quanto a eventuais riscos da sua pretensão, e das consequências que poderão advir da demanda. Deve, igualmente, denunciar, desde logo, a quem lhe solicite parecer ou patrocínio, qualquer circunstância que possa influir na resolução de submeter-lhe a consulta ou confiar-lhe a causa.”.
3 TALAMINI, Eduardo. Os fundamentos constitucionais dos honorários de sucumbência. A&C - Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo Horizonte, n. 62, p. 73-97, dez. 2015.
4 Embargos de Divergência em Recurso Especial nº 1366014/SP, Corte Especial, Rel. Min Napoleão Nunes Maia Filho, j. 29.3.2017.
5 Recurso Especial nº 1.845.536 – SC.
6 RECURSO ESPECIAL Nº 2054280 - SP (2023/0041926-8).
7 Vide AgInt no REsp 1.852.515/SP, de relatoria do e. Ministro Moura Ribeiro (DJe de 27/08/2020), AgInt nos EDcl no REsp 1.767.525/RJ, também de relatoria do e. Ministro Moura Ribeiro (DJe de 11/12/2020), AgInt no REsp 1.933.606/SP, de relatoria do e. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino (DJe de 24/02/2022) e AgInt no REsp 2.013.164/PR, igualmente de relatoria do e. Ministro Moura Ribeiro (DJe de 11/11/2022).
8 TALAMINI, Eduardo. Os fundamentos constitucionais dos honorários de sucumbência: breve nota. Cadernos jurídicos, Curitiba, v. 31, p. 01-04, julho/2012.
9 Julgado no dia 12/09/2023.
10 Recurso Especial nº 1.925.959 – SP.
11 Consta do acórdão do Recurso Especial nº 1.925.959 – SP: “Já em caso de deferimento do pedido de desconsideração (direta ou inversa), com o efetivo Redirecionamento da demanda contra o sócio ou a pessoa jurídica, conforme o caso, o eventual sucumbimento destes somente poderá ser aferido ao final, a depender do juízo de procedência ou improcedência da pretensão contra eles direcionada”.