Questão de Direito

Feição subjetiva da actio nata e a prescrição: a exceção virou a regra?

Um dos temas mais presentes nas pautas dos Tribunais é a prescrição. Especialmente, sua aplicação prática nos casos que se apresentam ao Poder Judiciário.

12/9/2023

Um dos temas mais presentes nas pautas dos Tribunais é a prescrição. Especialmente, sua aplicação prática nos casos que se apresentam ao Poder Judiciário.

Para além da definição do prazo aplicável à hipótese retratada – tarefa que nem sempre é das mais fáceis, como acontece, por exemplo, com a altamente controvertida prescrição para as hipóteses de responsabilidade civil contratual e extracontratual – são intensos os debates a respeito do termo inicial para a fluência do prazo.

Obviamente, a definição desse marco dependerá da análise do caso concreto. Mas isso se torna muito mais complicado, quando se considera não haver, na jurisprudência, um consenso claro a respeito do mais adequado critério para sua eleição.

No ambiente legislativo, a questão parece ser muito tranquila. Nosso ordenamento adotou o critério da actio nata, materializado no art. 189 do Código Civil: "Violado o direito, nasce para o titular a pretensão, a qual se extingue, pela prescrição, nos prazos a que aludem os arts. 205 e 206".

É, portanto, a partir da violação do direito, objetivamente considerada, que surge o prazo prescricional para o exercício de determinada pretensão nele fundada.

O que se tem visto, contudo, é a crescente flexibilização desse critério objetivo, que acaba cedendo em face do que se denominou de feição subjetiva da actio nata, em que mais interessa saber quando o sujeito tomou conhecimento da lesão, ao invés de quando essa lesão efetivamente se operou no mundo dos fatos.

Para Pontes de Miranda, o nascimento da pretensão independe do conhecimento do titular do direito a respeito da "existência do direito, ou a sua natureza, ou a validade, ou eficácia, ou a existência da pretensão nascente, ou da sua extensão em qualidade, quantidade, tempo e lugar da prestação, ou outra modalidade, ou quem seja o obrigado, ou que saiba o titular que a pode exercer"1.

Antônio Luís Câmara Leal, de seu turno, adverte não parecer racional "que a prescrição comece a correr sem que o titular do direito violado tenha ciência da violação. Se a prescrição é um castigo à negligência do titular – cum contra decises homines, et sui juris contentores, odiosa exceptiones oppositae sunt, – não se compreende a prescrição sem a negligência, e esta, certamente não se dá, quando a inércia do titular decorre da ignorância da violação"2.

A jurisprudência, da mesma forma, não é uníssona a respeito do assunto. O STJ, por exemplo, reiteradamente considera a ciência do sujeito como o ato que deflagra a prescrição. Há, até mesmo, julgados conceituando a actio nata exclusivamente a partir de sua feição subjetiva3.

Seja como for, não parece adequado pretender excluir um ou outro critério do ordenamento. Certamente, haverá situações nas quais a adoção da feição puramente objetiva da actio nata será causa de grandes injustiças e vice-versa. Tudo dependerá do exame do caso concreto.

Mas não temos dúvidas de que há uma ordem lógica de preponderância a ser seguida, imposta pelo legislador: como regra, a prescrição se inicia com a lesão ao direito (feição objetiva). Excepcionalmente, poderá haver a relativização da regra geral, para considerar-se iniciado o prazo prescricional a partir da ciência do sujeito (feição subjetiva).

É que a prevalência do critério subjetivo pode dar ensejo a pretensões verdadeiramente imprescritíveis e, o que é ainda mais preocupante, autorizar a manipulação da prescrição, a partir da criação de marcos iniciais fictícios pelas partes.

Pretensão dessa natureza é incompatível com a finalidade da prescrição, que é a de garantir a segurança jurídica, a estabilidade das relações sociais e, de maneira mais ampla, a paz social4. Como ensina Teresa Arruda Alvim, seu objetivo é "colocar um fim a situações, cuja subsistência por tempo indeterminado perturbaria a estabilidade das relações jurídicas, situações essas que, às vezes, existem, mas não devem perdurar indefinidamente"5.

Por isso, não é possível "brincar" com a prescrição. O critério objetivo é, certamente, o mais seguro e confiável, enquanto o subjetivo, a depender do caso, pode ser fruto de uma ficção.

Nesse sentido, alerta Humberto Theodoro Júnior: "O afastamento desse objetivismo, para subordinar a contagem do prazo extintivo ao conhecimento da violação do direito por seu titular, somente pode, em princípio, ser autorizado pela própria lei. Banalizar na prática aquilo que, de acordo com a lei, deveria ser exceção de estrito cabimento, vulnera, profundamente, o espírito de um instituto vinculado à segurança jurídica, reduzindo muito o papel que a ordem jurídica lhe conferiu"6.

Essa preocupação tem conduzido o STJ a examinar a problemática com maior rigor, como, por exemplo, no julgamento do REsp 1.685.098/SP7, em que o Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, relator p/ o acórdão, fez importantes considerações sobre o assunto.

O caso envolvia pretensão indenizatória de herdeiros de determinado investidor, buscando o recebimento de dividendos oriundos de ações preferenciais escriturais adquiridas em 1974, supostamente não pagas. A prescrição foi afastada pelo Min. Moura Ribeiro, relator originário, justamente com base na feição subjetiva da actio nata, que faria com que o termo inicial do prazo fosse o momento em que os herdeiros buscaram a instituição financeira, a fim de obterem informações sobre os investimentos do falecido pai e marido.

O Min. Cueva destacou que a regra, no ordenamento, é a de que "o prazo prescricional começa a fluir independentemente do conhecimento da pretensão por seu titular". A feição subjetiva teria espaço apenas em duas hipóteses: (i) quando assim prever de forma expressa a lei; ou (ii) "nas excepcionalíssimas situações em que possível constatar que, pela própria natureza das coisas, seria impossível ao autor, por absoluta falta de conhecimento de "défice à sua esfera jurídica", adotar comportamento outro que não o de inércia".

A caracterização da segunda hipótese, ademais, "impõe a quem lhe aproveita, a incumbência de produzir a prova, senão inequívoca, ao menos dotada de verossimilhança, do momento a partir do qual lhe foi possível vislumbrar a existência ou a possibilidade de existência de lesão a um direito juridicamente tutelado".

No caso examinado na ocasião, essas premissas conduziriam ao reconhecimento da prescrição, pois seria "descabido presumir que o investidor (titular de ações no período referente a 1974 até o seu falecimento) desconhecesse que teria direito ao pagamento periódico de dividendos, sendo incumbência dos autores da demanda a demonstração de que o falecido esposo/pai - verdadeiro titular das ações - estava verdadeiramente impossibilitado de tomar conhecimento da lesão narrada na inicial".

Em ainda outra ocasião, desta vez em causa envolvendo violação a direito de imagem, a Min. Maria Isabel Gallotti afastou a feição subjetiva da actio nata, registrando que a adoção da "ciência da parte autora como o marco inicial da prescrição, no caso concreto, a meu ver, é o mesmo que afastar a possibilidade de prescrição por completo. Entendo que, no caso concreto, deva ser aplicada regra geral de que a prescrição começa a correr da efetiva violação ao direito, do uso indevido da imagem, evento que marca suficientemente o efetivo prejuízo/dano".

Não faltam exemplos em que, da mesma forma, a prevalência da actio nata na feição subjetiva teria esse efeito prejudicial e indesejado, de obstar a prescrição, subvertendo a finalidade do instituto.

Por isso, impõe-se, mesmo, restringir a feição subjetiva da actio nata a situações excepcionais e em caráter subsidiário ao critério objetivo. E, mesmo nas situações em que isso se mostre possível, é essencial exigir mais daqueles que pretendem se beneficiar da feição subjetiva da actio nata, ou seja, que efetivamente justifiquem os motivos pelos quais não tinham meios para ter ciência da lesão ao direito (o que não pode ser confundido com a inércia em fazer uso dos meios disponíveis).

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1 DE MIRANDA, Pontes. Tratado de Direito Privado - Parte Geral, Tomo VI, 1ª ed., Campinas, Editora Bookseller, p. 153/154.

2 LEAL, Antônio Luís Câmara. Da Prescrição e da Decadência, Rio de Janeiro: Forense, 1959, p. 31

3 "O início do prazo prescricional, com base na Teoria da Actio Nata, não se dá necessariamente no momento em que ocorre a lesão ao direito, mas sim quando o titular do direito subjetivo violado obtém plena ciência da lesão e de toda a sua extensão". (STJ. AgInt no AREsp 1.500.181/SP. Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze. 3ª Turma. J. em 22.06.2021).

4 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado – Parte geral, t. VI (Exceções. Direitos mutilados. Exercício dos direitos, pretensões, ações e exceções. Prescrição). Atualização de Otávio Luiz Rodrigues Junior, Tilman Quarch e Jefferson Carús Guedes. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais/Thomson Reuters, 2012, p. 219.

5 ALVIM, Teresa Arruda. Prescrição e Decadência. Revista de Processo. Vol. 29/1983 | p. 57 - 71 | Jan - Mar/1983. Doutrinas Essenciais de Direito Civil | vol. 5 | p. 679 - 698 | Out/2010.

6 JÚNIOR, Humberto Theodoro. Prescrição e decadência. Rio de Janeiro: Forense, 2018. p. 34.

7 STJ. REsp 1.685.098/SP. Rel. p/ acórdão Min. Ricardo Villas Bôas Cueva. 3ª Turma. J. em 10.03.2020.

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Colunistas

Maria Lúcia Lins Conceição é doutora e mestre em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Membro do Conselho de Apoio e Pesquisa da Revista de Processo, Thomson Reuters – Revista dos Tribunais. Advogada sócia-fundadora do escritório Arruda Alvim, Aragão, Lins & Sato Advogados.

Teresa Arruda Alvim é livre-docente, doutora e mestre em Direito pela PUC-SP. Professora Associada nos cursos de graduação, especialização, mestrado e doutorado da mesma instituição. Professora Visitante na Universidade de Cambridge – Inglaterra. Professora Visitante na Universidade de Lisboa. Membro nato do Conselho do IBDP. Honorary Executive Secretary General da International Association of Procedural Law. Membro Honorário da Associazione italiana fra gli studiosi del processo civile. Membro da Accademia delle Scienze dell’Istituto di Bologna, do Instituto Ibero-americano de Direito Processual, da International Association of Procedural Law, do Instituto Português de Processo Civil. Membro do Conselho de Assessores Internacionais do Instituto de Derecho Procesal y Practica Forense de la Asociación Argentina de Justicia Constitucional. Coordenadora da Revista de Processo – RePro. Relatora da Comissão de Juristas, designada pelo Senado Federal em 2009, que redigiu o Anteprojeto de Código de Processo Civil. Relatora do Anteprojeto de Lei de Ações de Tutela de Direitos Coletivos e Difusos, elaborado por Comissão nomeada pelo Conselho Nacional de Justiça, em 2019, (PL 4778/20). Advogada.