Questão de Direito

Aplicação subsidiária do CPC no âmbito do processo penal – O terceiro e a multa aplicada pelo descumprimento de ordem judicial

Trata-se do PL 49/23, que altera o art. 15 do CPC para autorizar expressamente a aplicação supletiva e subsidiária do CPC ao CPP.

29/8/2023

O Migalhas, em seu informativo 5.672, noticiou que a CCJ da Câmara aprovou projeto de lei que autoriza a aplicação subsidiária do CPC no âmbito do processo penal, de maneira semelhante ao que ocorre atualmente nos processos eleitorais, trabalhistas ou administrativos. Trata-se do PL 49/23, que altera o art. 15 do CPC1 para autorizar expressamente a aplicação supletiva e subsidiária do CPC ao CPP.

Essa “interação” entre os regimes jurídicos, contudo, já tem ocorrido ainda que o art. 15 do CPC não faça, em sua atual redação, menção expressa ao processo penal.

É o que se passa, por exemplo, em relação à medida de exibição de documento por terceiro e à possibilidade de imposição de multa no caso de descumprimento da ordem judicial. Embora não haja previsão expressa dessas medidas no CPP, ambas têm sido aplicadas no curso de investigação criminal, por interpretação analógica dos artigos 77, 380, 401 e 537 do CPC.

De acordo com o STJ, a aplicação subsidiária do CPC no processo penal é permitida com fundamento no art. 3º do CPP2:

“Inicialmente, vale lembrar que as normas de processo civil aplicam-se de forma subsidiária ao processo penal. Nesse sentido, observe-se o teor do art. 3º do Código de Processo Penal. A jurisprudência desta Corte, seguindo a doutrina majoritária, admite a aplicabilidade das normas processuais civis ao processo penal, desde que haja lacuna a ser suprida. Importante ressaltar que a lei processual penal não tratou, detalhadamente, de todos os poderes conferidos ao julgador no exercício da jurisdição. (...) Assim, quando não houver norma específica, diante da finalidade da multa cominatória, que é conferir efetividade à decisão judicial, imperioso concluir pela possibilidade de aplicação da medida em demandas penais. Note-se que essa multa não se confunde com a multa por litigância de má-fé, esta sim refutada pela jurisprudência pacífica desta Corte3”.

No que se refere à aplicação da multa pecuniária ao terceiro chamado a colaborar em procedimento criminal, há quem sustente tratar-se de multa coercitiva típica do âmbito do direito processual civil, verdadeira astreinte (art. 537, do CPC). Há, porém, quem defenda que a multa teria caráter punitivo, mais próximo ao instituto do contempt of court, visando a assegurar a necessária força imperativa das decisões judiciais (art. 77, do CPC).

Independentemente da sua natureza jurídica, nos parece que a sua execução deve seguir as regras do processo civil.

O STJ, porém, possui decisões entendendo que:

i) não seria necessária a inscrição do débito na dívida ativa não tributária e a instauração de ação autônoma de execução da multa. Isso porque, não havendo um procedimento legal específico para aplicação de multa a terceiros, o magistrado poderia, em razão do poder geral de cautela, avaliar qual a medida mais adequada, se o bloqueio de ativos ou se a inscrição do débito em dívida ativa (REsp n. 1.853.580/SC, relator Ministro Nefi Cordeiro, relator para acórdão Ministro Ribeiro Dantas, Terceira Seção, DJe de 20/8/2020); e que

ii) a execução das astreintes poderia ser feita de forma “imediata”, operando-se o bloqueio de ativos, sendo que esta medida estaria sujeita ao contraditório diferido (REsp n. 1.568.445/PR, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, relator para acórdão Ministro Ribeiro Dantas, Terceira Seção, DJe de 20/8/2020).

Ou seja, no caso de investigação criminal, a multa imposta ao terceiro seria “autoexecutável”, no próprio juízo penal, num procedimento sui generis, em que a expropriação patrimonial seria imediata. Diz-se que, não fosse assim, ficaria comprometida a própria força imperativa das decisões judiciais no processo penal.

Em nosso entender, esse posicionamento é equivocado vez que suprime garantias constitucionais fundamentais do devido processo legal, como os princípios do contraditório e da proporcionalidade. Tais princípios estão retratados no processo civil por meio da garantia de que os atos executórios devem se dar da forma menos onerosa ao “devedor” (art. 805).

A execução das multas processuais, quando aplicadas com fundamento na legislação processual civil, obviamente, deve seguir a lei processual civil. Não pode ser executada com base em um procedimento sumário, com supressão de garantias processuais.

Segundo pensamos, se, de acordo com o art. 51 do Código Penal4, a execução da própria pena de multa, contra o condenado, deve ocorrer na forma prevista no art. 2º da lei Federal 6.830/19805, que dispõe sobre a dívida ativa da Fazenda Pública, não há razão que justifique a adoção, em relação à aplicação da multa coercitiva a terceiro, de regime mais rigoroso que aquele conferido ao próprio réu do processo penal.

Seguimos, nesse aspecto, o entendimento adotado pelo Min. Rogério Schietti Cruz, ainda que em voto vencido, no julgamento do REsp n. 1.853.580/SC, no sentido de que:

“(...) a fixação de astreintes não consubstancia medida cautelar típica do processo penal e não constitui instrumento ou produto do crime. Possui natureza processual civil, pois objetiva assegurar o acatamento da deliberação judicial. Isso acaba por repercutir no procedimento em que haja o propósito de executá-las provisoriamente, o qual deve se orientar pelo CPC. Portanto, penso que a competência para requerer o levantamento desse valor refoge à competência do Juízo criminal.

(...) se a própria condenação por crime não permite a sumária invasão patrimonial com a finalidade de satisfazer uma obrigação imposta por decisão com trânsito em julgado, admitir a execução imediata das astreintes, por mais que se proceda com algum objetivo de interesse público, vai de encontro à lógica do sistema.

Uma coisa é a fixação da quantia para coagir a parte; outra é a cobrança desse valor, cujo procedimento deve observar o devido processo legal”.6

O regime previsto no CPC, uma vez que o CPP nada dispõe a respeito, deve ser integralmente adotado tanto na aplicação da multa como, também, na sua cobrança (seguindo-se, por exemplo, a regra que determina que a execução seja feita pelo meio menos gravoso para o devedor, art. 805 do CPC).

Ao terceiro, contra quem se impôs a multa pelo descumprimento de eventual obrigação de exibição, em procedimento investigatório, deve ser assegurada a ampla defesa e contraditório (art. 7º, do CPC), mediante intimação para realizar o pagamento do valor da multa ou oferecer garantia, antes que qualquer medida constritiva venha a ser proferida em seu desfavor. E essa garantia poderá, inclusive, consistir em seguro garantia judicial, conforme autorizam, expressamente, os arts. 835, §2º e 848, parágrafo único, do CPC.

É indiferente o fato de a multa ter sido proferida no bojo do processo civil, inquérito policial ou de ação penal, porquanto a sua natureza jurídica não sofre qualquer alteração por se tratar de um ou de outro procedimento.

O que não é possível é aplicar o CPC de forma seletiva, aportando ao processo penal apenas aquilo que é favorável ao autor.

__________

1 Art. 15. Na ausência de normas que regulem processos eleitorais, trabalhistas ou administrativos, as disposições deste Código lhes serão aplicadas supletiva e subsidiariamente.

2 Art. 3o  A lei processual penal admitirá interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais de direito.

3 REsp n. 1.568.445/PR, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, relator para acórdão Ministro Ribeiro Dantas, Terceira Seção, julgado em 24/6/2020, DJe de 20/8/2020. E, também, em situações diversas: STJ - AgRg no RHC: 119377 SP 2019/0311417-4, Relator: Ministra LAURITA VAZ, Data de Julgamento: 13/10/2020, T6 - SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 23/10/2020; STJ - HC n. 513.374/MG, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 18/6/2019, DJe de 1/7/2019. STJ - EREsp: 1218726 RJ 2013/0105328-9, Relator: Ministro FELIX FISCHER, Data de Julgamento: 22/06/2016, S3 - TERCEIRA SEÇÃO, Data de Publicação: DJe 01/07/2016.

4 Art. 51. Transitada em julgado a sentença condenatória, a multa será executada perante o juiz da execução penal e será considerada dívida de valor, aplicáveis as normas relativas à dívida ativa da Fazenda Pública, inclusive no que concerne às causas interruptivas e suspensivas da prescrição.

5 Art. 2º - Constitui Dívida Ativa da Fazenda Pública aquela definida como tributária ou não tributária na Lei nº 4.320, de 17 de março de 1964, com as alterações posteriores, que estatui normas gerais de direito financeiro para elaboração e controle dos orçamentos e balanços da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal.

6 REsp n. 1.853.580/SC, relator Ministro Nefi Cordeiro, relator para acórdão Ministro Ribeiro Dantas, Terceira Seção, DJe de 20/8/2020.

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Colunistas

Maria Lúcia Lins Conceição é doutora e mestre em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Membro do Conselho de Apoio e Pesquisa da Revista de Processo, Thomson Reuters – Revista dos Tribunais. Advogada sócia-fundadora do escritório Arruda Alvim, Aragão, Lins & Sato Advogados.

Teresa Arruda Alvim é livre-docente, doutora e mestre em Direito pela PUC-SP. Professora Associada nos cursos de graduação, especialização, mestrado e doutorado da mesma instituição. Professora Visitante na Universidade de Cambridge – Inglaterra. Professora Visitante na Universidade de Lisboa. Membro nato do Conselho do IBDP. Honorary Executive Secretary General da International Association of Procedural Law. Membro Honorário da Associazione italiana fra gli studiosi del processo civile. Membro da Accademia delle Scienze dell’Istituto di Bologna, do Instituto Ibero-americano de Direito Processual, da International Association of Procedural Law, do Instituto Português de Processo Civil. Membro do Conselho de Assessores Internacionais do Instituto de Derecho Procesal y Practica Forense de la Asociación Argentina de Justicia Constitucional. Coordenadora da Revista de Processo – RePro. Relatora da Comissão de Juristas, designada pelo Senado Federal em 2009, que redigiu o Anteprojeto de Código de Processo Civil. Relatora do Anteprojeto de Lei de Ações de Tutela de Direitos Coletivos e Difusos, elaborado por Comissão nomeada pelo Conselho Nacional de Justiça, em 2019, (PL 4778/20). Advogada.