Questão de Direito

Perda de tempo do consumidor...é indenizável?

Perda de tempo do consumidor...é indenizável?

29/7/2021

O tema Responsabilidade Civil é um dos mais desafiadores do nosso Direito. Trata-se daqueles temas que devem ser disciplinados de forma extremamente rente à realidade da vida. Portanto, pelo seu latente dinamismo, não é incomum que antigas definições sejam revisitadas sob um diferente prisma ou sejam concebidas novas teorias.1

Passa-se a falar por exemplo, em “novos danos”, de que antes não se cogitava! Isto justamente revela que as relações sociais hoje têm diferentes nuances. Passam-se a qualificar como antijurídicas certas situações fáticas anteriormente toleradas pelo direito. Neste contexto se destaca o denominado dano temporal, ou desvio produtivo do consumidor, de que aqui vamos tratar.

A percepção do tempo como recurso indispensável a toda e qualquer atividade humana parece bastante óbvia. Mas como reagem os Tribunais em face desta constatação? Como o tempo vem sendo tutelado pelo nosso ordenamento jurídico? Pode se falar em indenização pela perda do tempo?

A Teoria do Desvio Produtivo do Consumidor vem ganhando destaque nas demandas consumeristas. Pode se dizer que com ela, inaugurou-se a possibilidade de compensação pelo dano ao tempo no Direito brasileiro.

Mas, afinal, o que é o tempo? Marcos Dessaune observa com razão que "A intangibilidade, a ininterruptibilidade e a irreversibilidade são características do tempo que lhe tornam inacumulável e irrecuperável, ou seja, diferentemente dos bens materiais, trata-se de um recurso que não se pode acumular, tampouco recuperar durante a vida".2

O tempo é o nosso capital mais valioso, a nossa riqueza individual! Possibilita a produção de riquezas, a construção de relações interpessoais, a aquisição de conhecimento, a interação com o meio ambiente. É um recurso produtivo escasso de que dispõe o consumidor em suas relações de troca com os fornecedores.3-4

Para a Teoria do Desvio Produtivo do Consumidor, a noção de tempo que se considera é aquela pessoal ou subjetiva, como valor ou bem, o mais valioso e verdadeiro capital do homem, a medida suprema da riqueza humana: tempo visto como recurso produtivo limitado, inacumulável e irrecuperável do consumidor.

O que se pode concluir, então, sob o aspecto jurídico, é que o tempo pode ser definido como "o suporte indispensável ao exercício e à manifestação da personalidade de cada indivíduo. Como condição de promoção e realização da dignidade humana. Como recurso humano escasso, finito e irreparável e, por essa razão, inviolável."5

Assim, inegável que toda conduta ilícita é capaz de produzir, ao menos, desperdício de tempo daquele atingido pelo ato. Este já seria, em princípio, um prejuízo, em tese, apto a gerar direito à indenização.

Mas na relação consumerista, existem desvios tolerados e outros não tolerados, identificáveis caso a caso, sopesando-se a licitude ou ilicitude da conduta do fornecedor, bem como o eventual excesso da conduta. Isso porque, nem todo desvio será ensejador de reparação, vez que muitos são inerentes à vida em sociedade, aos desgastes comuns do dia a dia. Somente aqueles considerados intoleráveis é que podem gerar o eventual ressarcimento.

Nos nossos Tribunais, o dever de reparação do dano pelo tempo desperdiçado tem sido discutido e, quando reconhecido, enquadra-se como lesão ao patrimônio imaterial do indivíduo, ou seja, como dano moral.6

De todo o modo, o que se percebe é que a Teoria do Desvio Produtivo do Consumidor deve ser aplicada com a devida cautela, com a identificação de hipóteses nas quais o consumidor efetivamente despende tempo fora do comum e energias consideráveis para a resolução de determinada questão relativa ao descumprimento contratual.

Isso se vê pela recente postura dos nossos Tribunais, ou seja, é o que se observa como fundamento para a negativa da incidência da Teoria do Desvio Produtivo do Consumidor: "APELAÇÃO. AÇÃO INDENIZATÓRIA. RELAÇÃO CONSUMERISTA. (...) PEDIDO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS E FULCRADO NA TEORIA DO DESVIO PRODUTIVO DO CONSUMIDOR. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA. (...). Impende seja dito, no tocante à teoria do desvio produtivo do consumidor, que a jurisprudência o Superior Tribunal de Justiça vem modificando seu entendimento anterior, através de uma nova interpretação, segundo a qual referida teoria tem sido incorretamente utilizada para reparar situações comuns de aborrecimentos ou frustações que, apesar de lamentáveis, possuem caráter nitidamente patrimonial, sem que houvesse intensas repercussões no bem-estar do consumidor (resp 1.406.245/SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em  26.11.2019). Enfim, para configuração de danos morais exige-se mais do que transtornos e aborrecimentos previsíveis ao cotidiano da vida moderna, são situações que, fugindo à normalidade, interferem intensamente no comportamento psicológico da vítima, causando-lhe aflições e desequilíbrio em seu bem-estar, cuja demonstração inocorreu na fase probatória dos autos. (...)."7

Assim, ainda que seja razoável presumir o tempo desperdiçado pelo consumidor, nem sempre a perda deste tempo será indenizável. A perda de tempo, por si só, não caracteriza situação em que o próprio ato ou fato representaria ofensa a direito da personalidade a configurar hipótese do chamado dano in re ipsa.

É preciso que a parte lesada demonstre minimamente de que forma o fato, ou a perda de tempo dele decorrente, gerou efetivo prejuízo, não bastando, tão somente, mera alegação neste sentido.

Como se viu, no cenário brasileiro, a Teoria do Desvio Produtivo do Consumidor, começa a ser discutida. Contudo, não se deve aplicar a referida teoria a todas as situações em que o consumidor venha a perder tempo para solucionar o seu problema junto ao fornecedor do serviço. Há situações em que esse tempo gasto deve ser considerado mero aborrecimento ou simples inadimplemento contratual, devendo ser qualificado no caso concreto. A incidência das normas protetivas do consumidor não afasta, por si só, o ônus mínimo probatório para o reconhecimento da violação a um direito.

Assim, pode-se dizer, em conclusão, que deve ter havido efetivo menosprezo do fornecedor (falta de iniciativa para a resolução do problema) e a demonstração da possibilidade de que o tempo desperdiçado poderia ter sido poupado pela empresa (planejamento).

A aplicação desta teoria não pode ser transformada em meio que leva ao enriquecimento sem causa. Portanto, devem os tribunais ter muita cautela e serenidade ao aplicá-la. Todo cuidado é pouco!

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1 Seguindo as palavras de Bruno de Almeida Lewer Amorim, as "engrenagens do Direito revelam este constante movimento, ora progressivo, ora regressivo, de fatos da vida assumindo a alcunha de fatos jurídicos e de fatos jurídicos voltando a ser apenas fatos da vida. Tudo ao balanço e ao ritmo dos paradigmas científicos e das referências culturais, econômicas e idelológicas de uma dada sociedade em um dado momento histórico". AMORIM, Bruno de Almeida Lewer. Responsabilidade civil pelo tempo perdido. 1. ed. Belo Horizonte: Editora D'Plácido, 2018. p. 43.

2 DESSAUNE, Marcos. Desvio produtivo do consumidor: prejuízo do tempo desperdiçado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 108.

3 DESSAUNE, Marcos. Teoria aprofundada do desvio produtivo do consumidor: o prejuízo do tempo desperdiçado e da vida alterada. 2. Ed. Vitória/ES: Marcos Dessaune, 2017. p. 153-154.

4 Laís Bergstein, destaca a relevância do tempo no universo jurídico: "Se o tempo é um recurso indispensável ao desempenho de toda atividade humana, além de um valor finito, escasso e não renovável, que pode ter relevantes reflexos patrimoniais, ele invoca e passa a merecer a tutela jurisdicional." BERGSTEIN, Laís. O Tempo do Consumidor e o Menosprezo Planejado: O Tratamento Jurídico do Tempo Perdido e a Superação das suas Causas. São Paulo: Editora Thomson Reuters Brasil, 2019. p. 46.

5 AMORIM, Bruno de Almeida Lewer. Responsabilidade civil pelo tempo perdido. Belo Horizonte: Editora D'Plácido, 2018. p. 65.

6 "Apelação. Prestação de serviços de internet. Ação de declaratória de nulidade de dívida c.c. pedido de danos morais. Falha na prestação de serviços por parte da ré caracterizada. Cobrança indevida por serviços que foram devidamente prestados. Autora que foi privada de tempo relevante para se dedicar ao exercício de atividades que melhor lhe aprouvesse, diante da conduta desidiosa do fornecedor que lhe provocou injusta perda de tempo para solucionar problema de vício do serviço. Aplicação da teoria do "desvio produtivo do consumidor". Danos morais caracterizados. Sentença de parcial procedência parcialmente reformada. Recurso parcialmente provido. (g.n)" TJSP. Apelação Cível 1003285-42.2020.8.26.0047; Relator (a): Pedro Kodama; Órgão Julgador: 37ª Câmara de Direito Privado; Foro de Assis - 1ª Vara Cível; Data do Julgamento: 22/04/2021; Data de Registro: 22/04/2021.

7 TJRJ. 0013667-26.2020.8.19.0203 - APELAÇÃO. Des(a). MARIA HELENA PINTO MACHADO - Julgamento: 17/03/2021 - QUARTA CÂMARA CÍVEL. Também no mesmo sentido: TJRS. Apelação Cível, Nº 70082962473. Julgado em: 12-12-2019.

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Maria Lúcia Lins Conceição é doutora e mestre em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Membro do Conselho de Apoio e Pesquisa da Revista de Processo, Thomson Reuters – Revista dos Tribunais. Advogada sócia-fundadora do escritório Arruda Alvim, Aragão, Lins & Sato Advogados.

Teresa Arruda Alvim é livre-docente, doutora e mestre em Direito pela PUC-SP. Professora Associada nos cursos de graduação, especialização, mestrado e doutorado da mesma instituição. Professora Visitante na Universidade de Cambridge – Inglaterra. Professora Visitante na Universidade de Lisboa. Membro nato do Conselho do IBDP. Honorary Executive Secretary General da International Association of Procedural Law. Membro Honorário da Associazione italiana fra gli studiosi del processo civile. Membro da Accademia delle Scienze dell’Istituto di Bologna, do Instituto Ibero-americano de Direito Processual, da International Association of Procedural Law, do Instituto Português de Processo Civil. Membro do Conselho de Assessores Internacionais do Instituto de Derecho Procesal y Practica Forense de la Asociación Argentina de Justicia Constitucional. Coordenadora da Revista de Processo – RePro. Relatora da Comissão de Juristas, designada pelo Senado Federal em 2009, que redigiu o Anteprojeto de Código de Processo Civil. Relatora do Anteprojeto de Lei de Ações de Tutela de Direitos Coletivos e Difusos, elaborado por Comissão nomeada pelo Conselho Nacional de Justiça, em 2019, (PL 4778/20). Advogada.