Questão de Direito

Lei Geral de Proteção de Dados e Direitos Fundamentais

Lei Geral de Proteção de Dados e Direitos Fundamentais.

16/3/2021

A lei 13.709/2018 (Lei Geral de Proteção de Dados - LGPD) entrou em vigor em setembro de 2020 parcialmente, pois, somente em agosto de 2021, é que as sanções nela previstas terão vigência.

O art. 2º da LGPD, estabelece ser dado pessoal aquele que identifica uma pessoa física ou que torne possível identificá-la. Ou seja, além do nome, telefone, endereço, RG, CPF, por exemplo, são dados pessoais aqueles que, em um certo contexto, podem tornar uma pessoa identificável. Algumas informações como: origem étnica, religião, dado sobre saúde são consideradas pela lei como dados sensíveis, exigindo um tratamento especial. O art. 11 da LGPD estabelece, por exemplo, que o tratamento de dado sensível só pode ocorrer quando o titular consentir de forma expressa e destacada, para fins específicos.

Certos dados são considerados dados pessoais pela lei porque são utilizados para formação do perfil comportamental. Um caso verídico muito citado para exemplificar essa espécie de dados é o que envolve a empresa Target, uma das maiores varejistas dos Estados Unidos. A equipe de desenvolvimento de inteligência artificial da empresa notou que havia um certo padrão de consumo das clientes grávidas, tais como: a compra de loções e sabonetes sem essência, além de suplementos alimentares como cálcio, magnésio e zinco.

Com essa informação em mãos, a empresa enviava às clientes cupons de descontos e ofertas personalizadas para o período da gravidez em que se encontravam, tendo em vista o modelo preditivo construído. Todavia, houve o envio de cupons para a residência de uma adolescente que, até então, não havia revelado ao seu pai que estava grávida. Foi por meio do recebimento desses cupons que o pai veio a saber sobre a gravidez de sua filha, desencadeando um profundo debate sobre o uso ético das ferramentas de inteligência artificial e análise preditiva de dados comportamentais.

Vale salientar que "a rigor, o acesso e tratamento de dados pessoais da população em geral dá causa a repercussões não apenas econômicas, mas afeta também, profundamente, relações sociais e políticas, dado suas interações com temas aparentemente distintos entre si, com a qualidade do debate público, a liberdade de manifestação, a proteção da reserva pessoal e da privacidade, dentre outros temas fundamentais para o desenvolvimento humano."1

A LGPD estabelece regras para realizar o tratamento dos dados pessoais. E o que seria tratamento de dados? Seriam todas as atividades relacionadas ao ciclo de vida de um dado pessoal: coleta, uso, guarda, compartilhamento e exclusão.

Qual teria sido o grande catalisador para a promulgação da LGPD no Brasil e, também, na Europa (GDPR2)?  O caso da apropriação de dados realizada pela empresa Cambrigde Analytica, em 2018, que é considerado um dos maiores escândalos no mundo da tecnologia.3

Cambridge Analytica é o nome de uma empresa de marketing que teve acesso a dados de 87 milhões de usuários do Facebook indevidamente, por meio de um teste de personalidade do usuário.

A empresa usou essa informação privilegiada para direcionar anúncios no Facebook e fazia parte do SCL Group, que prestava serviços para os departamentos de defesa dos EUA e do Reino Unido. Sua área de atuação era a de "operações psicológicas", ou seja, a técnica de manipulação de opiniões.      

Nesse contexto, é que se destaca a decisão paradigmática do Supremo Tribunal Federal, na ADI 6837, de Relatoria da Min. Rosa Weber. Pois houve o rompimento com a forma com que a Corte vinha fazendo a interpretação da proteção constitucional dos dados pessoais.

Até então, o STF analisava a proteção de dados sob a ótica do princípio da privacidade. Como liberdade negativa, representando a demarcação da individualidade de um sujeito em face dos outros e do Estado, sendo regida pelo princípio da exclusividade, envolvendo três esferas: 1-) intimidade; 2-) vida privada; 3-) honra e imagem - direito à autodeterminação4.

Essa lógica de proteção de dados sob a ótica do direito de privacidade foi quebrada no julgamento da ADI 6837 que tratou da inconstitucionalidade da MP 954/2020. A MP determinava que as empresas de telefonia móvel e fixa compartilhassem com o IBGE sua base de dados de todos os assinantes, contendo nome, endereço, RG e número de telefone, para realização da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio. A justificativa seria o contexto da pandemia, pois ao invés do contato pessoal, a pesquisa seria feita por contato telefônico.

A AGU fez alusão a precedentes do STF que tratavam do direito à privacidade, para defender a constitucionalidade da MP 954. Segundo a AGU os dados transferidos pelas empresas de telefonia permaneceriam sob sigilo e, dessa forma, o preceito constitucional da privacidade estaria sendo observado. E mesmo que houvesse vazamento dos dados não haveria violação pois seriam dados cadastrais, como a lista de telefones das "páginas amarelas" que seriam públicas.

Foi concedida liminar pela Min. Relatora Rosa Weber suspendendo os efeitos da MP 954/2020. No julgamento para referendar a liminar concedida, a 1ª Turma do STF se manifestou por maioria (com exceção do Min. Marco Aurélio) pela inconstitucionalidade da MP.

É certo que, aqui, foi reconhecido um novo direito, considerando-o como atributo da personalidade5, pouco importando se a informação é  pública ou privada. E assim sendo, não há mais informações consideradas irrelevantes em se tratando da pessoa humana, devendo haver um devido processo legal que estabeleça os direitos e deveres no tratamento desses dados. A interferência na esfera pessoal tem que ser proporcional à finalidade, devendo ser a menor possível e garantindo-se a segurança da informação.

O STF estabeleceu, assim, um novo paradigma para o tratamento dos dados pessoais, que orientará todos os jurisdicionados na interpretação e aplicação da LGPD.

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1 MIRAGEM, Bruno. Curso de direito do consumidor. São Paulo: Editora Thomson Reuters Brasil, 2019.P. 159.

2 General Data Protection Regulation (Regulation EU 2016/679).

3 Cambridge Analytica: tudo sobre o escândalo do Facebook que afetou 87 milhões, artigo capturado em 14/03/2021 in https://olhardigital.com.br/2018/03/21/noticias/cambridge-analytica/

4 Tercio Sampaio Ferraz, "Sigilo de dados: o direito à privacidade e os limites à função fiscalizadora do Estado" in Revista da Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, 88, pp. 439-459. Rafael Mafei Rabelo Queiroz e Paula Pedigoni Ponce, "Tércio Sampaio Ferraz Júnior e Sigilo de dados: o direito à privacidade e os limites à função fiscalizadora do Estado: o que permanece e o que deve ser reconsiderado"; Internet & Sociedade n.1, v.1, fev/2020, p.64 a 90.

5 Bruno Ricardo Bioni, Proteção de Dados Pessoais, a função e os limites do consentimento, Rio de Janeiro: Forense, 2019.

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Colunistas

Maria Lúcia Lins Conceição é doutora e mestre em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Membro do Conselho de Apoio e Pesquisa da Revista de Processo, Thomson Reuters – Revista dos Tribunais. Advogada sócia-fundadora do escritório Arruda Alvim, Aragão, Lins & Sato Advogados.

Teresa Arruda Alvim é livre-docente, doutora e mestre em Direito pela PUC-SP. Professora Associada nos cursos de graduação, especialização, mestrado e doutorado da mesma instituição. Professora Visitante na Universidade de Cambridge – Inglaterra. Professora Visitante na Universidade de Lisboa. Membro nato do Conselho do IBDP. Honorary Executive Secretary General da International Association of Procedural Law. Membro Honorário da Associazione italiana fra gli studiosi del processo civile. Membro da Accademia delle Scienze dell’Istituto di Bologna, do Instituto Ibero-americano de Direito Processual, da International Association of Procedural Law, do Instituto Português de Processo Civil. Membro do Conselho de Assessores Internacionais do Instituto de Derecho Procesal y Practica Forense de la Asociación Argentina de Justicia Constitucional. Coordenadora da Revista de Processo – RePro. Relatora da Comissão de Juristas, designada pelo Senado Federal em 2009, que redigiu o Anteprojeto de Código de Processo Civil. Relatora do Anteprojeto de Lei de Ações de Tutela de Direitos Coletivos e Difusos, elaborado por Comissão nomeada pelo Conselho Nacional de Justiça, em 2019, (PL 4778/20). Advogada.