Um dos aspectos inovadores do atual regime processual é o procedimento destinado à produção antecipada da prova (art. 381 e ss.). A nota mais perceptível, em relação ao regime anterior, foi o desaparecimento do requisito da urgência para sua utilização. A prova passa a ser antecipável não apenas quando exista algum risco de perecimento para produzi-la (inc. I), mas também passa a ter lugar em pelo menos duas outras situações: quando a parte acredita que provar determinado fato poderia abrir caminho para solucionar consensualmente a controvérsia (inc. II); quando essa mesma prova possa ser decisiva para justificar ou evitar a instauração de demanda futura (inc. III).
Pode-se dizer que o procedimento perdeu o caráter acessório do regime anterior, ganhando status de direito autônomo.
Em termos estruturais, essa ferramenta se assemelha a um híbrido, que mistura as cautelares de produção antecipada de prova e de justificação do CPC/73, com pitadas da discovery do direito anglo-saxão.
Dos muitos aspectos que ainda suscitam dúvidas, o que nos interessa aqui diz respeito aos limites daquilo que pode ser objeto da antecipação de prova. De acordo com o CPC, no requerimento inicial o autor já precisa mencionar "com precisão os fatos sobre os quais a prova há de recair".
O que se tem visto na prática, porém, é que algumas vezes o procedimento não é instaurado para provar fatos específicos. Não há fato ou fatos previamente definidos como objeto da prova. Pelo contrário. O procedimento é utilizado para explorar todo um contexto ou situação fática, genericamente considerado, com a intenção de nele encontrar fatos que, aí sim, possam justificar a propositura de demanda futura.
Por exemplo: a parte justifica que pretende provar, antecipadamente, "a responsabilidade civil" do demandado num determinado episódio. Algo bem diferente e mais amplo do que produzir prova sobre um ou mais fatos, relacionados com aquele episódio e especificamente delineados (os quais, em demanda indenizatória futura, aí sim poderiam provar o dever de indenizar).
É como se o procedimento fosse utilizado para "pescar" fatos: caso apareçam, outra demanda seria proposta. Do contrário, tudo se encerraria por ali, sem maiores consequências para o autor da antecipação.
Daí a proximidade com abusos já percebidos (e coibidos) na utilização da discovery do direito anglo-saxão. Um deles é o emprego dessa ferramenta para realizar ampla perquirição em relação à parte contrária, na esperança de, por meio dela, descobrir informações que a prejudiquem. Em situações como essa, costuma-se impedir a produção da prova1.
Tal prática é conhecida como document hunting ou fishing expedition2.
Não por outra razão, o art. 382 do CPC prevê dois requisitos específicos, como condição de processamento da demanda. Cabe ao autor demonstrar as "razões que justificam a necessidade de antecipação da prova", assim como fazer menção precisa aos "fatos sobre os quais a prova há de recair".3 Em outras palavras, isso quer dizer que o procedimento não se presta a inquirições genéricas ou investigações. Seu caráter é objetivo e precisa ser delimitado com a indicação precisa dos fatos sobre os quais recairá a prova.
Daí também a severa limitação ao contraditório que o caracteriza. O procedimento não admite defesa nem recurso (art. 382, §4º)4, inclusive porque nessa oportunidade não caberá ao órgão judicial deliberar a respeito do fato em si, tampouco sobre suas consequências jurídicas (art. 382, §2º). Essa análise terá lugar apenas em outro processo. Embora aos interessados até seja facultada a possibilidade de também produzir prova, esta precisa estar relacionada ao mesmo fato (art. 382, §3º).
Por aí se percebe que todo o procedimento se estrutura em torno da produção de prova sobre fato determinado. Caso contrário, admitindo-se sua utilização para produzir prova sobre situação fática genérica, o procedimento acabaria se transformado em verdadeira antecipação da fase instrutória da futura demanda. E isso tudo com limitações ao contraditório e ao próprio controle da instrução pelo juiz (que, a partir das causas de pedir e pedidos, delimita a fase instrutória e indefere diligências inúteis).
Fosse possível essa amplitude, o procedimento acabaria se convertendo, na prática, num inquérito (e aí materializaria as figuras do document hunting ou fishing expedition). Claramente não é esse seu escopo.
Recentemente, aliás, o TJ/SP reconheceu essa impossibilidade e extinguiu procedimento de produção antecipada de prova, em razão da ausência de preenchimento dos requisitos dos artigos 381 e 382, do CPC. Ao perceber o manejo abusivo do procedimento, o tribunal registrou que, naquele caso concreto, era "como se o Autor (aqui Agravado) jogasse com a sorte: apresenta uma situação fática a partir de um relato fantasioso, pede a realização de todos os meios de provas possíveis e espera "pescar" algo por meio do procedimento de antecipação de prova. Caso não encontre, porém, não haverá consequências para si, já que não formulou, propriamente, pretensão a respeito"5.
O mesmo tribunal também indeferiu a antecipação da prova porque a pretensão veiculada (ampla prova pericial sobre contratos bancários) poderia ser mais adequadamente formulada por meio de ação ordinária e, o mais importante, "sem qualquer ofensa ao contraditório"6.
A partir desse cenário percebe-se que a antecipação de prova exige a prévia delimitação do fato a ser provado. Não apenas por força da literalidade do texto normativo (que é claro, em diversas passagens, em relação a isso), mas, também, pela própria estrutura do procedimento: as limitações procedimentais são viáveis e fazem sentido apenas se houver a prévia e adequada limitação do fato a ser provado.
Por isso o procedimento não pode ser transformado em inquérito investigatório. Assim como também não pode ser utilizado para a busca de fatos desconhecidos pelo interessado, como se por meio dele estivesse "pescando" algum elemento de prova para apoiar sua pretensão. A falta da adequada delimitação desvirtua o procedimento, exigindo a ampliação do contraditório (onde o legislador claramente quis limitá-lo) e até antecipando a instrução que deveria ocorrer apenas no bojo da futura demanda (e com os limites lá definidos pelas causas de pedir e pedidos). Em nosso sentir, todos são desdobramentos incompatíveis com a disciplina do CPC.
__________
1 "Judges and prothonotaries may properly exercise their discretion not to compel production of documents that, although technically relevant, would have no benefit to the party seeking production. The court will not allow discovery to be used as a fishing expedition, nor will it require a party to answer a question outside of its means of knowledge (...) Discovery is meant to be an intermediate process between pleading and trial and not an end in itself". BEACH, Greg; PARKER, Marissa; DREW, Catherine. Navigating Discovery/Disclosure in Patent Litigation in Canada, the United States, and the United Kingdom. In Canadian Intellectual Property Review vol. 31, 2016, p. 115. Disponível aqui. Acesso em 26.02.21.
2 O STF reconhece e se opõe a essa prática: "não é possível a geração de RIF por encomenda (fishing expedition) contra cidadãos em relação aos quais não haja alerta emitido de ofício pela unidade de inteligência ou qualquer procedimento investigativo formal estabelecido pelas autoridades competentes". RE nº 1.055.941, Rel. Min. Min. Dias Toffoli, Dje 06/10/2020.
3 "É certo que a necessidade da prova – não apenas da antecipação – depende da exposição de um substrato fático mínimo e coerente com a medida que se quer produzir. A prova, independentemente do momento em que produzida, tem por objeto fatos. Eventual deficiência na narrativa dos fatos que se quer investigar interfere com a antecipação porque, na verdade, prejudica a admissibilidade da prova". YARSHELL, Flávio Luiz. In Breves Comentários ao Novo Código de Processo Civil. São Paulo: RT, 2015. p. 1.031.
4 O dispositivo deve ser interpretado restritivamente, a fim de permitir o controle de questões processuais. Colhe-se, do TJ/SP: "(...) a finalidade da norma é obstar a utilização de defesa ou recurso que envolvam matéria de mérito, por extrapolar a competência do juízo do procedimento de produção antecipada de provas, conforme §2º do art. 382 do NCPC (...) Todavia, não há como se vedar o exercício do contraditório e da ampla defesa, no que diz respeito a temas processuais e condições da ação, por exemplo, que possam prejudicar a própria adequação e validade da via processual" (AI nº 2259025-62.2019.8.26.0000, Rel. Alexandre Lazzarini, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, J. em 14/05/2020, Dje 15/05/2020). Neste mesmo sentido entende Maria Lúcia Lins Conceição: "Esse dispositivo, contudo, deve ser interpretado de forma sistemática com os demais preceitos do NCPC, que garantem o exercício do contraditório. O requerido, por certo, poderá alegar questões de ordem pública, tais como a ilegitimidade das partes, a inadequação do meio de prova pretendido pelo requerente para demonstração do fato (falta de interesse de agir), ou a existência de ação anterior com idêntico objeto, em que a prova já tenha sido produzida". Provas. In: Temas Essenciais do Novo CPC. Revista dos Tribunais, São Paulo. 2016. P. 239 e 240.
5 TJSP, AI n.º 2188216-13.2020.8.26.0000 – 26ª Câmara de Direito Privado. Rel. Des. Felipe Ferreira, Dje 01.02.2021.
6 TJSP. Apelação nº 1009988-29.2017.8.26.0100, Rel.ª Des.ª Cristina Medina Mogioni. DJe 06.12.2017.